Trump é cirista!
Às vezes a gente precisa ter um certo jogo de cintura, algum senso de bom humor para encarar o buraco no qual o mundo está se metendo. Dia desses, o Márcio Pochmann, presidente do IBGE, um dos desenvolvimentistas em cargo mais importante do Brasil, publicou um longo tuíte sobre como Raul Prebish e Celso Furtado deviam estar dando voltas no túmulo por causa das tarifas do presidente americano Donald Trump. A premissa de Pochmann é a seguinte: o que Trump está fazendo é aplicar as ideias da Cepal, da Comissão Econômica para América Latina e Caribe, nos Estados Unidos.
Olha aqui: o Pochmann está corretíssimo. A coisa não é perfeita, mas de maneira geral a lógica que move Trump é realmente a mesma. O que o Pochmann não diz, porque ele não acredita nisso, porque ele discorda disso, é que as ideias da Cepal nunca deram certo. Mas essa é outra discussão.
A Cepal nasceu como uma das comissões originais da ONU. Estávamos nos anos 40, no pós-guerra, e o desafio das Nações Unidas era como fazer o mundo sair daquele horror para uma melhor. Prebish havia sido presidente do Banco Central da Argentina e foi chamado para dar estrutura para a Cepal e construir um modelo de política econômica para desenvolver a região. Ele não estava sozinho. Ao seu braço direito, o economista brasileiro Celso Furtado. No esquerdo, o chileno Aníbal Pinto. Eram vários nomes importantes incluindo um jovem sociólogo chamado Fernando Henrique Cardoso.
A conclusão à qual o Prebish e o Furtado chegaram era a seguinte: os países subdesenvolvidos, era assim que se chamavam na época, estavam presos numa lógica comercial em que exportavam matéria prima bruta e importavam bens manufaturados. A solução que eles propunham era bastante direta: elevar tarifas de importação e controlar importações para permitir que países latino-americanos substituíssem produtos importados por produção interna. Ou seja, e assim era a lógica, o Estado tinha de entrar pesado na economia. O objetivo era fazer com que ficasse muito difícil para os consumidores comprar produtos estrangeiros, o que abriria espaço para que a indústria local se desenvolvesse.
Sabe, essa não é, nem nunca foi, uma lógica de esquerda. Getúlio a adotou num governo à esquerda, Juscelino Kubitschek a adotou num governo conservador, Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel a adotaram na ditadura militar. Houve um certo consenso de que essa política levaria ao desenvolvimento da indústria brasileira.
Olha, não aconteceu. Claro, a turma saca exemplos do bolso como a Embraer. Justo. Verdade. É uma empresa formidável. Mas, na boa? A gente faz carro muito pior do que europeus, americanos, coreanos, japoneses e agora até chineses. São ruins. A gente faz máquinas de lavar ruins. Secadoras ruins. Microondas ruins. Qualquer um que já teve um equipamento desses vindo de fora sabe como os troços duram muito mais. As peças encaixam melhor, parecem mais sólidas. Porque o problema dessa lógica é que você produz um efeito pernicioso: você mata concorrência. Ao proteger a indústria brasileira, ao tornar muito caros os equivalentes estrangeiros, você tem como resultado fábricas que põem no mercado produtos que quase nunca podem ser exportados por não terem qualidade para competir lá fora e que são consumidos internamente porque a coisa de boa qualidade, ora, não tem carteira que pague.
A CEPAL propunha uma fórmula com três itens: substituição de importações por equivalentes nacionais, interferência pesada do Estado na economia e o governo segurando com mão firme o câmbio. Por que? Porque se a moeda brasileira valesse menos que o dólar, o produto brasileiro ia ficar mais barato lá fora e, o estrangeiro, ainda mais caro aqui dentro. O resultado, depois de algumas décadas, é que teríamos uma indústria equivalente à lá de fora.
Anos 50, anos 60, anos 70, anos 80, não aconteceu. Gente como o Pochmann diz que estava acontecendo mas o neoliberalismo, esse vilão terrível, se intrometeu. Bem, seguimos mesmo uma lógica liberal na economia no governo Collor, no governo Itamar, no governo FH e até no primeiro governo Lula enquanto Antonio Palocci foi ministro da Fazenda. Qual foi o resultado? A maior ascensão social jamais registrada na história brasileira. Pois é. Nunca antes na história do Brasil. Aí Lula pegou Guido Mantega e mergulhou na lógica cepalina. Dilma meteu o pé no acelerador. O que aconteceu com a economia? Veja, não é que gente como o Pochmann, o Ciro Gomes, a própria Dilma, não tenham explicações. Sei lá. O neoliberalismo sempre atrapalha, essas coisas.
Mas agora estamos perante um experimento natural incrível. A maior economia do planeta quer se reindustrializar e quer fazer isso como? Seguindo a fórmula cepalina. Pesada intervenção estatal na economia, substituição das importações e, tem alguns economistas falando, disputa pelo valor da moeda. Do dólar.
Ter uma conversa honesta sobre isso vai ser difícil. Sabe por quê? Porque muita gente vê o que quer ver, não o que está lá. Pochmann olhou e viu o que está lá. Cepal. Quanta gente na esquerda desenvolvimentista vai reconhecer que Donald Trump está implementando a política econômica que eles defendem? E o contrário também é verdade, tá? Quanta gente na direita vai admitir que de liberal esse governo Trump não tem rigorosamente nada? Que não tem Paulo Guedes nenhum, o que tem é Raul Prebish?
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Você sabe que as pessoas estão cansadas da briga política. Não sabe? Aposto que você sente isso. A polarização sufoca o debate. Você levanta um ai, um “se” contra o líder de uma das pontas e, pronto. O mundo cai abaixo. É difícil conversar quando as pessoas sequer escutam. E, no entanto, a maioria das pessoas, a maioria dos brasileiros, não têm nem Lula, nem Bolsonaro, como seus líderes ideais. Estamos todos coletivamente cansados deste tipo de polarização que leva a brigas tão intensas. A gente precisa ser capaz de sair dessa. A conversa sobre política precisa voltar a ser um papo entre amigos que discordam, riem, erguem um chope e voltam a conversar. Quando foi que perdemos isso? Nós, por aqui, estamos cansados, muito cansados, desta briga constante, dos rompimentos em família, entre colegas, entre gente que se gosta. Se você quer um ambiente assim, onde conseguimos voltar a conversar todos, o Meio é seu lugar. Assine. Precisamos espalhar essa ideia. E bem-vindo.
Aliás… Este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Peter Navarro, o cérebro por trás da nova política comercial americana, se queixa faz anos que um dólar forte abate a manufatura americana. Ele se queixa de que a independência do FED, o Banco Central americano, dá poucos instrumentos para o governo, para a Casa Branca, combater isto. Em 2019, Navarro argumentou que Washington deveria trabalhar mais ativamente para desvalorizar o dólar. Hoje pela manhã, Donald Trump afirmou que não se deixará pressionar pelo Mercado.
É. O mercado malvado. Eu fico aqui pensando na Faria Lima, nos operadores de mesa, aqueles mais bolsonaristas, aqueles da estátua de Paulo Guedes, como é que eles estão lidando com o noticiário. Como a Casa Branca não pode dar pitaco na taxa básica de juros, está usando política tarifaria.
Pois bem, hoje à tarde Trump recuou em relação a todo mundo menos a China. Os americanos e os chineses estão jogando truco. Cada um bota uma taxa mais alta e vão nessa. Com o resto do mundo, a Casa Branca recuou. O presidente declarou que, para a maioria do mundo, as tarifas vão ficar em 10% por 90 dias enquanto negociações estão em curso. Mas olha que interessante: a bolsa de valores começou a subir pelo movimento de alguns antes de Trump anunciar o recuo. Existe uma suspeita grande de insider trading. Ou seja, de que tinha gente que sabia que Trump ia anunciar este recuo e começou a comprar na baixa imediatamente. Enquanto, claro, a maioria dos americanos com dinheiro investido se ferrava. Isso é crime. Crime feio. Tem uma investigação que vai começar por aí.
Enquanto isso, está todo mundo desesperadamente tentando compreender qual o objetivo de Donald Trump. Daqui a um ano e meio, saberemos o que esta política fez com a economia mundial, com a economia americana, com a economia brasileira. Será que, aí, poderemos enfim ter uma conversa honesta sobre que tipo de política econômica implementar?
É muito interessante ver tudo de cabeça pra baixo por causa disso, sabe? Porque bolsonaristas e desenvolvimentistas terão de encarar Donald Trump pelo que ele é, não pelo que gostariam que fosse. Isso ao menos reseta a conversa. Isso, ao menos, nos põe num lugar em que podemos entender na prática o que funciona e o que não funciona.
A alternativa é sair cantando por aí o Subdesenvolvido. Não conhece? Pois é. O Brasil é uma terra de amores, Alcatifada de flores, Onde a brisa fala amores Em lindas tardes de abril.
É isso, gente. O mundo parou de fazer sentido. Vamos nessa.