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Democracia nos EUA?

O que está acontecendo nos Estados Unidos é qualquer coisa de surpreendente. Trata-se do desmonte mais claro de uma democracia, em menos tempo, que jamais vimos neste período de ameaça. E não é um ataque interno a qualquer democracia. Estamos falando da mais antiga democracia em operação contínua no mundo. Ainda assim, este segundo mandato do presidente Donald Trump, é importante perceber, é muito diferente do primeiro. E nos serve de alerta para os riscos que correríamos num segundo mandato de Jair Bolsonaro.

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Mas, vamos lá: o que exatamente, concretamente, configura um ataque à democracia? Vamos pinçar alguns exemplos concretos?

Donald Trump assinou uma ordem executiva, é algo tipo nossa medida provisória, que encerra o direito à cidadania de todos os que nascem nos Estados Unidos. Por decisão do presidente, se os pais são imigrantes ilegais, a criança nascida no território do país não tem direito à cidadania. Onde está o problema? É muito simples. O que define quem tem direito a cidadania é a Constituição americana, mais especificamente a 14a emenda. Ou seja: Trump partiu do princípio de que ele pode assinar um papel e tornar nula, assim, uma cláusula da Constituição. Essa ordem foi imediatamente considerada ilegal, aberrantemente ilegal, pelos tribunais. Por enquanto, parou aí. Mas, em muitos outros casos, o governo está simplesmente ignorando ordens judiciais. Ainda não sabemos como esta situação vai seguir.

Esse é um exemplo bobo e possivelmente o mais evidente deles. Porque, em essência, ele mostra muito da personalidade de Trump como presidente. É um sujeito que olha para a Constituição e simplesmente dá uma ordem para ignorar o que ela diz.

O que é uma democracia? Você sabe responder isso? Uma explicação possível é assim. Um povo que tem uma cultura em comum, fala uma mesma língua, compartilha de uma mesma identidade, se reúne e combina que vai tocar sua autogestão. Sem tirano. Como esse povo faz isso? Escolhe representantes e esses representantes chegam a um a acordo a respeito de um pacote de leis básicas. Essas leis determinam como o país se organiza politicamente. Determinam qual o direito que cada pessoa tem, que todos têm rigorosamente os mesmos direitos. Aí determinam como o governo se organiza. Três poderes: um faz as leis, o outro faz o Estado funcionar, administra, e o terceiro julga se alguém obedeceu as leis ou não. Legislativo, Executivo, Judiciário. Essa lei básica também estabelece como funcionam as eleições, de quanto em quanto tempo elas acontecem, e quem é responsável por organizá-las. Aí vem um último aspecto dessa lei básica desse país onde vive esse povo que decidiu se autogerir.

A gente sabe que as pessoas vão discordar. Que pessoas diferentes vão ter opiniões diferentes e que vai dar trabalho chegar a acordos. Então como fazemos para, quando um grupo chegar ao governo, não sair atropelando o outro grupo, o que perdeu a eleição? Tem alguns jeitos. Começa com a garantia de que todo mundo tem o mesmo direito. Mas também organizamos o governo para que um pedaço da gestão das coisas, sabe, as escolas, o meio ambiente, a moeda, a gestão das coisas precisa ser independente de quem governa. A ideia é ter um pedaço, a burocracia do Estado, que administra do mesmo jeito, pra todo mundo, não importa se quem está no governo é vermelho, é azul, ou se é roxo. Essa lei básica que traz todas essas instruções constitui politicamente o país. É por isso que a chamamos Constituição. A Constituição está acima de todo mundo, inclusive dos três poderes. Quem dá poder e estabelece o limite dos poderes, numa democracia, é a Constituição.

Donald Trump é um presidente americano que baixa uma ordem executiva flagrantemente vetando um artigo da Constituição. É esse o nível do problema nos Estados Unidos. E, olha, ele não para aí.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Você sabe que as pessoas estão cansadas da briga política. Não sabe? Aposto que você sente isso. A polarização sufoca o debate. Você levanta um ai, um “se” contra o líder de uma das pontas e, pronto. O mundo cai abaixo. É difícil conversar quando as pessoas sequer escutam. E, no entanto, a maioria das pessoas, a maioria dos brasileiros, não têm nem Lula, nem Bolsonaro, como seus líderes ideais. Estamos todos coletivamente cansados deste tipo de polarização que leva a brigas tão intensas. A gente precisa ser capaz de sair dessa. A conversa sobre política precisa voltar a ser um papo entre amigos que discordam, riem, erguem um chope e voltam a conversar. Quando foi que perdemos isso? Nós, por aqui, estamos cansados, muito cansados, desta briga constante, dos rompimentos em família, entre colegas, entre gente que se gosta. Se você quer um ambiente assim, onde conseguimos voltar a conversar todos, o Meio é seu lugar. Assine. Precisamos espalhar essa ideia. E bem-vindo.

Aliás… Este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Donald Trump baixou outras ordens executivas. Uma delas, por exemplo, mudou a classificação de dezenas de milhares de funcionários públicos federais. Lá, alguns dos funcionários públicos têm estabilidade no emprego, outros não. Ele pegou um monte deles e passou para a categoria de quem pode ser demitido. Por quê? Para poder, evidentemente, demitir e botar naqueles cargos gente da turma deles.

O que quer dizer você substituir funcionários públicos concursados por gente de confiança do político de ocasião? É tirar, justamente, a característica de ter um pedaço do Estado que administra do mesmo jeito, pra todo mundo, não importa se quem está no governo é vermelho, é azul, ou se é roxo. É vc justamente usar uma vitória eleitoral para atropelar a opinião de quem não votou em você.

Porque, vejam, numa democracia, os eleitores que perdem a eleição seguem tendo pleno direito de serem governados. Presidentes, quando tomam posse, numa democracia, governam para todos. Não só para os seus.

Trump demitiu 17 inspetores gerais. O trabalho desses inspetores é acompanhar o funcionamento de cada um dos ministérios. É um pouco como se fosse o TCU, aqui no Brasil. Só que não é um órgão só que inspeciona apenas as contas do governo para ver se os pagamentos estão obedecendo as leis. Não, é mais do que isso: os inspetores gerais têm o poder de observar se os ministérios estão seguindo todas as regras necessárias. Eles vigiam para corrupção, para abusos de poder, tudo. E são independentes do governo. Não podem ser demitidos pelo presidente justamente por terem essa independência. E foram demitidos porque Trump não quer gente dizendo que seu governo não pode tomar certas ações.

Aí tem Elon Musk. Ele assumiu o controle do banco de dados do Tesouro americano. Tipo: ele e um grupo de programadores bloquearam o acesso de funcionários públicos ao prédio do Tesouro e assumiram o controle de tudo o que o governo paga e deixa de pagar. Fizeram cópia de todos os registros. É uma violação imensa tanto de leis que garantem privacidade quanto de todos os protocolos de segurança digital do governo porque, veja: nem Musk, nem estes programadores, têm qualquer cargo oficial no governo. Não são funcionários do governo. Imagina alguém, que não tem qualquer credencial, botar as mãos para ler em todos os dados do governo federal? Imagina a loucura? Nos Estados Unidos, está acontecendo. E isso quer dizer, também, que ele está bloqueando inúmeros pagamentos de todo mundo de quem não gosta. Entidades diversas. Não importa se são pagamentos devidos ou pagamentos obrigatórios. Olha, neste caso teve decisão judicial dizendo que tinha de parar com isso imediatamente. A decisão foi ignorada.

A agência de proteção do consumidor, que é tipo uma Anatel de lá só que voltada para os consumidores, foi simplesmente fechada. O governo tem autoridade para fechar uma agência regulatória? Não. Só o Congresso pode fazer isso. Mas não importa. Afinal, eles agora têm o poder de pagar o que querem.

O vice-presidente J. D. Vance tuitou: “juízes não podem controlar o poder legítimo do Executivo”. A secretária de imprensa, a porta-voz do governo, afirmou para os jornalistas que que “juízes de primeira instância não podem tomar o poder do presidente”. Este é o clima na Casa Branca.

São dois meses de governo, gente. A coisa está muito barra pesada porque está sendo muito rápido. Ainda não está claro se vai ser assim por quatro anos. Se for, se Donald Trump seguir neste ritmo, o Estado americano será completamente transformado. O que sair do outro lado não será uma democracia liberal. Mas o que acontece, no mundo, se as duas maiores potências econômicas forem ditaduras? A pergunta era surreal há pouco tempo. Chegamos a um ponto em que ela não é mais.

Sei que muita gente não gosta dos Estados Unidos. É justo, fazer o quê? Mas o país, por seu poder militar, por seu poder econômica, tem muita influência em como o planeta se organiza. Se a democracia americana se desmontar, muitas outras são imediatamente colocadas em risco. Inclusive a nossa.

Não esqueçam de um detalhe: o governo Joe Biden deixou explicitamente claro, para o Exército brasileiro, que um golpe de Estado não seria tolerado no Brasil. O quanto isso influenciou nossos generais? Vá saber.

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