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Uma História Sem Fim, mas com começo e Meio

“Nenhum período entregou tanto para o Brasil como a Nova República”, pontua em diversas ocasiões Pedro Doria, apresentador do documentário Democracia: Uma História sem Fim. Desde 1985, sobretudo com a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil conseguiu incluir política e socialmente uma parcela muito grande da população.

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Mas, afinal, de que estamos falando, quando falamos de democracia? Esse problema é apresentado no filme não como uma questão acadêmica, supostamente distanciada das demandas reais da população, mas como uma polissemia que tem capacidade de dividir ainda mais o país. Isso porque, apesar de ser amplamente estudada pela ciência política e por outras ciências humanas, cada corrente acaba expandindo ou reformulando o que significa estar numa democracia e os seus limites.

Para os manifestantes dos atos golpistas do 8 de janeiro, por exemplo, havia a necessidade da invasão da sede dos Três Poderes para se proteger o regime democrático. Nikolas Ferreira e Eduardo Bolsonaro, por exemplo, afirmam que o Brasil vive um regime de exceção. Nesse sentido, todos se dizem favoráveis à democracia — ao menos no discurso. Mas a democracia liberal precisa de diversos preceitos para existir e não há, hoje, dúvidas de que o Brasil vive um regime democrático. Ainda que por pouco tenha escapado de uma mudança de rotas em 2022.

Em apenas um quarto do tempo desde a Independência, o Brasil viveu num ambiente democrático. O Brasil vive agora o maior período com eleições e imprensa livres de sua história. Antes,  o filme considera verdadeiramente democrático o período que vai do fim do Estado Novo à ditadura militar.

Dirigido por Ricardo Rangel, escrito por Sérgio Rodrigues e produzido por grande parte da equipe do Meio, o documentário de pouco mais de uma hora pincela a cronologia política do Brasil desde 1985, com entrevistas e depoimentos de especialistas, além da explicação de conceitos e a análise dos principais momentos da Nova República. É o primeiro documentário autoral, disponível no catálogo de streaming, acessível a todos os assinantes premium. Foi gravado em três das principais capitais do país: Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, com imagens exclusivas e reconstituição de imagens históricas.

O documentário teve duas sessões de lançamento. A primeira no Rio, no Estação NET Gávea e, em São Paulo, no Reag Belas Artes. Parte dos entrevistados esteve presente. E um debate, aberto às perguntas do público, aconteceu nas duas localidades.

“Democracia é uma promessa. Ela vem com uma lista de direitos, que são direitos das pessoas. E ela promete que esses direitos valem para todos. Só que no mundo de verdade não é assim. Mas a democracia também entrega algumas ferramentas, você pode se juntar com outros para se manifestar, você pode dizer o que pensa, você pode votar, pode ser votado. É um eterno jogo: essa promessa da democracia não é cumprida? Eu preciso usar as ferramentas da democracia para fazer com que seja cumprida”, disse Pedro Doria.

Desde 1985 o jogo é jogado. A partir dali, anos para se esperançar. Aliás, a esperança é um sentimento fundamental na democracia. E então surge a Esperança, personagem do documentário feita com uso de inteligência artificial. Sua história, uma ficção, não deixa de ser baseada em diversas outras realidades.

Esperança nasceu no dia da Promulgação da Constituição de 1988, em 5 de outubro. Filha de pais trabalhadores e pobres. Sua infância, apesar disso, foi saudável, muito por conta da criação do Sistema Único de Saúde, o SUS. A garota também teve acesso à educação básica, que incluiu muitas pessoas em pouco tempo. Isso teve como efeito colateral, também, uma defasagem grande com relação ao ensino privado, problema ainda não superado. Em muitas escolas falta o básico, ainda que existam bons exemplos.

Na história metafórica, o pai de Esperança morre e sua mãe se vê sozinha para criar a garota. Mas a criação de políticas sociais robustas, ilustrada sobretudo com o Bolsa Família, combinada com o fim da hiperinflação, aumentou o poder de compra e garantiu o básico àquela família. Se a menina se formou no ensino básico, depois ainda pôde cursar o ensino superior, como tantos que puderam se aproveitar da alta de matrículas das universidades públicas ou até mesmo do ProUni e das cotas, no ensino privado. Mas, nem tudo foram flores.

O cientista político Christian Lynch lembra que a democracia é uma “história sem fim” por estar inscrita no movimento histórico e da humanidade rumo ao próximo patamar de maior liberdade e de igualdade. “Mas essa história não é linear, tem recuos, avanços e resistências. Cada conquista encontra um empecilho”.

Em 2013, sob o governo de Dilma Rousseff, manifestações se espalharam por todo o país. O Brasil sediaria a Copa no ano seguinte e investiu muito dinheiro na construção da infraestrutura para o megaevento. Apesar da diminuição na pobreza, a qualidade de vida passava longe da perfeição. Longas jornadas no transporte público caro e ineficaz, um sistema de saúde presente, mas sobrecarregado, e a sensação de estagnação foram somadas ao fato de que os representantes estavam cada vez mais descolados dos representados.

O deslocamento da população para a classe média trouxe também novas demandas e novos sentidos. Objetivos e subjetivos. Se por um lado a democracia barra tentativas autoritárias, por outro faz com que as mudanças aconteçam de forma mais lenta. E mesmo com pressão popular, nem todas as demandas são atendidas. O documentário cita como exemplo a segurança pública. Boas ideias como o Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP, teimam em não sair do papel e em boa parte do país a sensação de insegurança é não só presente, como marcante.

Em 2014, a eleição foi tensa, marcada por pesados ataques de parte a parte e Dilma Roussef foi reeleita por uma margem pequena de votos. Ali se consolidava um problema político, que culminou no impeachment em 2016, mas também econômico, com a forte recessão em 2015 e 2016, e democrático. O ceticismo se espalhou para outros partidos que não o PT e, em 2018, com o país ainda mais dividido, Jair Bolsonaro foi eleito.

Na época do impeachment, manifestantes pró e contra o afastamento da então presidente foram a Brasília. Cada grupo se denominava os verdadeiros defensores da democracia. A polícia teve que impor um muro (literal) para que as divergências não se transformassem em confronto físico. O muro metafórico continuou e continua até hoje. Famílias se desfazem, pais brigam com filhos, irmãos perdem contato, amigos de anos se afastam.

Em um cenário de polarização, com os três poderes da República em tensão fica evidente que as demandas não diminuíram em grandeza inversamente proporcional às benfeitorias de diversos governos. Soma-se isso ao contexto internacional tenso e a busca por sentido político – e por que não, de vida – se torna um constante afirmar, desconstruir e reconstruir identidades. Um horizonte de nacionalidade se perde, porque como a democracia, a própria noção do que o Brasil é, também está em disputa. “No Brasil, até o passado é incerto”, diz uma frase atribuída a Pedro Malan.

No jornalismo, também é difícil consolidar um espaço aberto de debate sem pender para a polêmica vazia. A polêmica viraliza muito mais que a troca franca de ideias para encontrar consensos e dissensos. A história sem fim da democracia, lembra o documentário, pode até não acabar, mas o Brasil pode se tornar cada vez menos coeso e os seus problemas mais difíceis de serem remediados.

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