Essas penas estão corretas?
Débora Rodrigues Santos foi condenada, na semana passada, a 14 anos de prisão pelo Supremo Tribunal Federal. Ela é cabeleireira e tem dois filhos, um de 6, o outro de 11 anos. Foi ela a moça que escreveu, em batom, “Perdeu, Mané” na estátua A Justiça, de Alfredo Ceschiatti. Era um dos grandes escultores modernistas e esse é seu trabalho mais conhecido. Está fincada na frente do Supremo. Débora fez parte do ataque às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. A condenação ainda não é definitiva. O ministro Luiz Fox pediu vistas, então algo pode mudar. Por enquanto, está nesse pé.
Ela foi condenada porque cometeu, segundo a Corte, cinco crimes distintos. Abolição violenta do Estado Democrático de Direito, que leva a penas de 4 a 8 anos. Tentativa de golpe de Estado, reclusão de 4 a 12 anos. Associação criminosa armada, que dependendo da circunstância vai de um a quatro anos. Como havia pessoas armadas durante a insurreição, e ela evidentemente estava associada a essas pessoas, taí o artigo do código penal. Ela cometeu também o crime de dano qualificado, que é depredar bem público ou de valor artístico, uma pena que inclui detenção de seis meses a três anos além de multa de acordo com o dano. O STF calculou o prejuízo entre dois e três milhões de reais. Por fim, deterioração de patrimônio tombado, de um a três anos e multa. Dosimetria de pena é daqueles mistérios do Direito, mas vamos lá. Até agora, dois ministros do Supremo fizeram suas contas e chegaram à conclusão de que, na soma geral, contando cada crime, ficou nisso. 14 anos de reclusão. Depois de doze anos e seis meses, pode pedir para cumprir o resto em casa.
O médico Antônio Teobaldo Magalhães de Andrade estuprou uma paciente, dentro de um posto de saúde em Joinville, em 2011. Ficou foragido por anos. Em fevereiro, o STJ o condenou a doze anos e cinco meses de reclusão em regime fechado. O mecânico Júnior Januário da Silva assassinou sua ex-companheira, Ana Carolina dos Santos, a facadas. Isso foi em Goiás. A vítima já tinha uma medida protetiva que obrigava o ex-marido a manter distância, não adiantou. Foi condenado pelo tribunal do júri em dezembro a 12 anos de reclusão por homicídio qualificado. Sim, inclui na dosimetria o agravante por ser feminicídio. Leonardo Rodrigues Jure estrangulou e matou o pai de sango Michael Andreoli em 2018. Os dois tinham um caso. Ele foi condenado a 14 anos de reclusão.
Mas vamos falar de alguns casos mais conhecidos? Elize Matsunaga, que matou o marido, o empresário Marcos Kitano, depois esquartejou seu corpo para escondê-lo, foi condenada a 16 anos e três meses de prisão. Dois anos mais do que Débora. Paula Thomaz, que assassinou com o ex-marido a atriz Daniella Perez, foi condenada a 15 anos de reclusão. Um ano mais do que Débora.
Nenhuma dessas penas é pequena, tá? Ficar uma década e meia na cadeia é uma barra pesadíssima. Mas crimes como estupro e homicídio com brutalidade são mesmo crimes da mais alta gravidade. E o que o Supremo Tribunal Federal está dizendo é que o crime de Débora, assim como o de pelo menos outras doze pessoas, tem esse tamanho de gravidade. É equivalente a matar e esquartejar o marido, ou então a estuprar uma paciente anestesiada.
Vocês acham que é? Mesmo. Senta aí. Pensa. É equivalente?
Se a Débora que ativamente participou do 8 de outubro pegou 14 anos de prisão, o general Braga Netto vai pegar quantos? 20 anos? E o ex-presidente Jair Bolsonaro? 22 anos? Ou seja, ter o poder da presidência da República, ser general de Exército, ex-ministro de Estado, candidato a vice-presidente da República e planejar um golpe de Estado, botar em marcha um plano de golpe de Estado, ativamente trabalhar para que ocorra um golpe de Estado, promover uma campanha dentro do Exército de pressão para que o alto-comando embarque num golpe de Estado, é 40% mais grave do que pixar “Perdeu, Mané”, numa estátua enquanto participa de um avanço contra prédios públicos.
Os black blocs que ativamente depredaram patrimônio público, em 2013, foram condenados a penas que variam de 5 a 7 anos de detenção. É uma pena rigorosa, tá? De novo. É uma pena dura. Cinco, sete anos numa cadeia, um dia após o outro. Ninguém quer isso na vida. E vocês sabem como são as cadeias brasileiras. Jair Bolsonaro vai ficar, como Lula ficou, numa cela de Estado maior. Uma sala confortável, com banheiro, televisão na qual pode espetar um pendrive com programas que as visitas trazem, ar-condicionado. Braga Netto? Augusto Heleno? Mesma coisa. Vão ter celas bem bacanas. A turba do 8 de janeiro? Eles vão ficar no inferno prisional brasileiro.
Paulo Galo, o sujeito que ateou fogo na estátua do Borba Gato, em São Paulo, foi condenado a três anos em regime aberto e aí a pena foi substituída por serviços comunitários. Tudo bem, a estátua é horrorosa e não pode ser comparada, artisticamente, com o trabalho de Alfredo Ceschiatti. Mas é patrimônio público e o sujeito levantou um fogaréu do lado de um posto de gasolina. Ele pôs em risco uma explosão imensa em São Paulo que poderia ter matado gente. E meu ponto, aqui, nem é que a condenação seja desmedida. Porque, na boa? Parece adequada.
Estamos julgando algo muito, muito importante. Houve uma real tentativa de golpe de Estado. A melhor maneira de fazer este julgamento é com os critérios da democracia. Vamos ter uma conversa sobre isso? Sobre o que é Justiça numa democracia? Sobre como democracias se defendem?
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
John Rawls, um dos grandes filósofos da democracia contemporânea, fazia o seguinte argumento sobre a essência da Justiça. Uma sociedade justa precisa equilibrar liberdade, igualdade e equidade no tratamento dos cidadãos. Inclusive dos transgressores. Ou seja, precisa tratar todo mundo com o mesmo critério. Quem depreda patrimônio público, quem se organiza com pessoas para cometer crimes, precisa ser tratado da mesma forma. O crime de Débora não é igual ao de Paulo Galo ou mesmo dos black blocs por uma razão evidente: o objetivo de quem avançou contra os palácios dos três Poderes era derrubar a República. Então o que ela fez não foi só depredação, ele trabalhou por um golpe de Estado.
Mas ela era, também, uma soldado raso desinformada sem qualquer acesso ao comando da organização. Ela não participou de planejamento algum. O que ela fez foi, estando imersa num universo de desinformação, se juntar à turba. E não é possível que não seja um atenuante o fato de que, sabemos, esse mundo bolsonarista de desinformação traga as pessoas. Engole elas. É um processo de lavagem cerebral.
Quem conhece gente que vive no universo do bolsonarismo sabe que as pessoas se descolam da realidade. Muitos daqueles ali são pessoas com nível baixo de educação formal que só consomem conteúdo produzido naquele mundo e se convenceram, no meio daquela insanidade, de que estavam lutando por uma causa santa. Fanatismo, irracionalidade e uma boa dose de delírio entram nessa conta. Este é um problema real que temos. Dentro da sociedade. Ele não vai ser resolvido apenas com punição. Isso não quer dizer que quem comete crime tem de ser absolvido. Mas quer dizer que precisamos separar com clareza os manipuladores dos manipulados.
Um dos pontos importantes que o Rawls fazia é que Justiça está acima do clamor público. Ou seja, a opinião coletiva da sociedade é irrelevante entre os critérios que um juiz deve usar. Por quê? Porque os direitos de cada pessoa numa democracia estão acima da turba. Quem cede à turba são os demagogos autoritários. Não é a Justiça. Quando o Rawls dizia que Justiça e vingança não podem ser confundidos é por isso. O objetivo da pena, num sistema de Justiça democrático, é retribuição justa e reeducação. Reeducação principalmente. Não é aniquilar o oponente. Essa moça é uma cabeleireira do interior de São Paulo imersa num ambiente de desinformação que, sim, manipula as pessoas. É evidente que ela cometeu um crime. Mas este crime realmente é equivalente, na sua gravidade, ao de Elize Matsunaga ou Paula Thomaz?
A questão da proporcionalidade na punição é muito simples. Um sistema de Justiça, numa democracia, precisa se distinguir de uma operação de vingança contra os inimigos políticos. Se ele não parece justo ele deixa de ser percebido como Justiça. Penas excessivas fazem a Justiça parecer um braço de um grupo político. A Justiça precisa ser percebida como tratando a todos pelos mesmos critérios. Algumas destas condenações do 8 de janeiro não parecem tratar a brasileiros distintos com um critério de equidade.
Veja: crimes foram cometidos. O objetivo daquelas pessoas era derrubar o governo eleito. Débora não foi condenada apenas por escrever em batom numa estátua. Mas é importante que nós compreendamos, também, que a distância entre ela e Jair Bolsonaro é muito grande. A distância entre ela e qualquer um dos generais golpistas é muito grande. Ela é um peão. Nós precisamos, sim, punir golpistas. Esta punição inclui, sim, todos os peões. Mas com a distância necessária.
Jair Bolsonaro e seus generais cometeram o crime mais grave que se pode cometer contra a República e devem ser punidos de acordo. Com todo o rigor. Eles são os manipuladores. Eles são os que controlavam o sistema de desinformação. Eles são os golpistas. Nós temos, na sociedade, esta crise de desinformação. Uma parte relevante de nós vive num universo conspiracionista, uma realidade paralela e fantasiosa. As condenações com este nível de pena ajudam a extrema direita mais do que servem à democracia. Débora é uma imbecil que se deslumbrou num momento de loucura. Ela precisa ser punida, sim. Mas ela não é uma esquartejadora. O crime que ela cometeu não é o mesmo que o assassinato mais grave, do pior estupro.