Desacelerar é a solução para recuperar a saúde mental na vida e no trabalho?

Em 2024, o Dicionário Oxford definiu “brain rot”, algo como “cérebro podre”, como expressão do ano. Para a instituição, esse termo explica a degradação do estado mental ou intelectual de alguém, principalmente como resultado do consumo excessivo de conteúdos banais nas redes sociais. Além de afetar o senso crítico, as redes sociais estão frequentemente ligadas a problemas de saúde mental.
Há algum tempo, o autocuidado está na pauta, sobretudo com o avanço no número de diagnósticos de doenças psíquicas. A pesquisa Covitel 2024 apontou que 26,8% da população brasileira, algo em torno de 56 milhões de pessoas, sofrem de algum transtorno mental. No SUS, os atendimentos por ansiedade cresceram 14,3% no ano passado, chegando a 671.305 registros entre janeiro e outubro.
Se o aspecto humano não convence, há o fator econômico: ainda no ano passado, o Brasil teve quase meio milhão de afastamentos de trabalho por problemas psicológicos, o maior número dos últimos dez anos e um aumento anual de 68%. Esses afastamentos custaram quase R$ 3 bilhões ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O Ministério do Trabalho decidiu atualizar a NR-1, norma que define as diretrizes sobre saúde no ambiente corporativo. Agora, empresas podem ser multadas por práticas que possam piorar as condições mentais de seus trabalhadores, como metas abusivas, jornadas exaustivas, assédio moral e falta de suporte psicológico aos funcionários.
Mulheres são as mais afetadas e representam 64% dos afastamentos, muitas vezes sobrecarregadas justamente pela dupla jornada e pela responsabilidade financeira de suas famílias. Globalmente, a OMS estima que os transtornos mentais causam a perda de 12 bilhões de dias úteis por ano, um prejuízo de US$ 1 trilhão. Transtornos como ansiedade e depressão não apenas reduzem a qualidade de vida e promovem sofrimento, mas também aumentam o risco de doenças do coração, diabetes e outras condições físicas.
Com a rotina constantemente marcada pela pressa, surgem movimentos que pregam o contrário: desacelerar sem abrir mão das obrigações profissionais e pessoais. É o caso do Instituto Desacelera, surgido a partir do Guia Desacelera SP, de 2016. Sua criadora, Michelle Prazeres, disse que o projeto é um ecossistema de cerca de 100 parceiros, entre pessoas, organizações, empresas e iniciativas, que estão promovendo a desaceleração em São Paulo. “A gente trabalha com algumas frentes, mas uma delas é pesquisa e produção de conhecimento sobre a cultura da produtividade. Temos também uma frente de formação, que são cursos, palestras, processos formativos dentro de empresas e organizações, mas também com pessoas”, diz.
O Instituto Desacelera promove todos os anos o “Dia da Consciência do Tempo” em 24 de julho. A data é propositalmente irônica com o fato da escrita ser 24/7 — em contraponto à ideia de estar disponível 24 horas por dia, sete dias por semana. Para Prazeres, os afastamentos de trabalho registrados no ano passado estão ligados com o próprio ambiente corporativo. “O mundo do trabalho é uma das engrenagens da cultura da aceleração. Por dois motivos, um deles é essa história de que o trabalho de alguma forma se espraiou para os outros campos da vida, então a gente fica 24 horas por dia, sete dias por semana disponível para o trabalho. E um segundo aspecto, de levar essa lógica do desempenho para outros campos da vida. É como se a gente nunca parasse de desempenhar, como se a gente nunca parasse de performar, porque a gente transfere a lógica do trabalho para os afetos, para os hobbies, para as outras coisas que a gente faz. E fica querendo desempenhar, competir, render e dar resultados em outros setores da nossa vida que não necessariamente deveriam ser governados por essa dinâmica. E isso tem bastante a ver com as síndromes da contemporaneidade, especialmente ansiedade, depressão, burnout, stress”. Prazeres ainda aponta que o Brasil tem agravantes históricos e culturais, vindos da cultura escravocrata, que associava descanso à preguiça e desvalorizava o tempo livre.
Com esses fatores, a Organização Mundial da Saúde aponta, já há alguns anos, o Brasil como o país com mais incidência de ansiedade patológica em sua população. O cenário se agravou após a pandemia, e os efeitos desse contexto sanitário ainda são percebidos. É como se a “bateria social” ainda não tivesse sido recarregada completamente. Soma-se a isso as perdas de vidas, além do contexto econômico e social do país.
Desde então, a inflação segue alta, sobretudo a dos alimentos, que avançou 7,69% no ano passado e já subiu quase 1% em janeiro e 0,70% em fevereiro. Apesar da atividade estar aquecida, a falta de garantias futuras quanto ao emprego e a renda estimulam a ansiedade. São também, pelo menos, 73 milhões de endividados no país. As tensões globais de 2025, somadas às incertezas políticas e econômicas, tornam difíceis uma mudança no panorama. A tendência é de uma inflação que siga pressionada e de um custo de vida mais difícil às famílias.
Ademais, a desigualdade social afeta não apenas o acesso à saúde e lazer de qualidade, mas também modifica a experiência do tempo. “Enquanto alguns podem se permitir momentos de descanso, outros precisam trabalhar mais para sobreviver”, reforça a criadora do Instituto Desacelera.
Se o problema é coletivo, há saída individual?
Ao passo que é ruim não ter um olhar para as pessoas, não é possível nem saudável individualizar um problema que transcende o indivíduo. Há cinco vezes mais queixas de saúde mental entre jovens de 18 a 24 anos agora do que na geração de seus avós, o que aponta tanto para a discussão mais aberta e menos rotulada, mas também para um agravamento do problema.
Michelle Prazeres explica que a aceleração vem de três forças: do trabalho e da mencionada ideia de que precisamos ser produtivos o tempo todo; do consumo, com sua noção ilusória de que comprar mais significa viver melhor; e da tecnologia, a partir sobretudo dos smartphones, que capturam a atenção e aceleram ainda mais a experiência do tempo. A conexão e facilidade do acesso à internet se torna também um ciclo de urgência constante.
Ela propõe que, para combater essa lógica, é preciso entender os contextos individuais e coletivos para desmistificar discursos como “todo mundo tem as mesmas 24 horas” e criar espaços regenerativos, que resgatem conexões humanas, rituais e momentos de pausa. Não é possível, portanto, estabelecer medidas, ações e intervenções que sirvam a todas as realidades e vivências. “Não dá para eu prescrever cinco minutos de meditação todos os dias para todas as pessoas, entendendo que nem todo mundo vai ter condição de fazer isso”. Enfrentar essa crise passa, segundo a pesquisadora, por garantir o direito ao descanso e à desconexão.
Um dos maiores autores que se propõem a pensar a contemporaneidade na lógica do cansaço e do excesso de produção é o sul-coreano radicado na Alemanha Byung Chul Han. A exaustão, segundo ele, está relacionada a diversos fatores, um deles é a “atualidade totalizada”. Isso seria um estado de hiperatividade constante, sem pausas, rupturas ou intervalos. Uma eterna aceleração. As informações, benéficas na maior parte do tempo, sufocam pelo seu excesso e passam a confundir. Há um prejuízo à memória, pois a linearidade do tempo fica comprometida.
“A gente está permanentemente em ação, mas não em movimento. Movimento aponta para alguma direção, o movimento é orientado por algum sentido, alguma bússola, ele indica algum caminho e esse excesso de atividade não necessariamente aponta para nenhum caminho”, afirma Michelle Prazeres. “Então a gente está cansado, exausto, exaurido, mas sempre com a sensação de que não está indo para canto nenhum”, completa.