Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

É sempre um homem

Estou lendo um livro muito interessante, é o último do jornalista britânico Will Storr. Se chama The Status Game. O jogo do status. Por alguma razão misteriosa, as editoras brasileiras ainda não descobriram o Storr, mas ele é um daqueles jornalistas que pegam ciência de ponta, principalmente esse encontro entre psicologia e sociologia e antropologia, e traduzem pro público leigo de um jeito que pouca gente consegue. E, enquanto estava lendo a edição do Meio de Sábado, isso logo depois de ter assistido a dois vídeos do Porta dos Fundos feitos por encomenda do STF, não consegui não ligar as três peças.

PUBLICIDADE

Nós temos um problema no Brasil e este problema são os homens em geral. Mas vamos ser ainda mais específicos. São os homens periféricos. Os homens periféricos são a ameaça à democracia.

Tá. Provocação feita. Agora vamos costurar isso aqui.

É engraçado como a gente não está acostumado a ouvir essa construção, né? “Homem periférico”. A gente está acostumado a ouvir “mulher periférica”, “brasileiros periféricos”, “evangélicos periféricos”. Falamos de “pretos e pardos periféricos”. Mas raramente ouvimos sobre os homens. É como este corte representasse um tabu. Quem vive nas periferias urbanas interessa à esquerda na forma de muitas categorias: como trabalhadores, como brasileiros, como não-brancos. Mas quando a gente fala de homens aí vai dando um desconforto, uma vontade de chamar de machista, de retrógrado. De abusador.

Okay, gente. Antes de eu criar uma resistência ao que vou falar, deixa eu trazer alguns dados aqui. Não existe vagão feminino, no metrô do Rio, à toa. Na hora do rush, quando os trens estão lotados, toda sorte de homens se aproveita para dar uma encoxada, dar uma esfregada, e isso quando é leve. Porque, sim, tem história muito pior. E, quando falo toda sorte de homens, não é só o office boy. É também o sujeito de terno e gravata. Mulheres consistentemente, em todas as classes sociais, recebem salários inferiores aos de homens em funções equivalentes. Há exceções, mas são exceções, não regra. A representatividade política de mulheres, no Brasil, é ridícula. Uma das minhas opiniões mais radicais é a seguinte: por mim, na Câmara dos Deputados, haveria cota. Mas é cota de verdade, tá? Mulheres precisam ocupar metade da Câmara. E acho muito ruim o presidente Lula não ter usado seu poder de indicar ministros para o Supremo para aumentar, ao invés de diminuir, a presença feminina na Corte.

Não é só isso. O Brasil registro, em 2023, um estupro a cada seis minutos. 89% das vítimas eram mulheres. Estes são os registrados. Não entra na conta os que não foram denunciados. 33% das mulheres brasileiras já sofreram violência física que veio do parceiro ou de um ex-parceiro. Um terço de toda a população. Este não é um problema só nosso, brasileiro, os números da América Latina são até um maiores do que os nossos, mas quando a gente compara com os países da OCDE, a maneira como o Brasil trata mulheres é uma vergonha.

Só que vamos encarar os fatos. Em 2018, Jair Bolsonaro recebeu 60% dos votos de homens em todo o Brasil. Em 2022, ele recebeu 65% dos votos de homens. Bolsonaro perdeu para Lula, aquela eleição, por duas razões. A classe média urbana de Centro e Centro-Direita, que votou pelo antipetismo em 2018, se dividiu e um naco relevante votou em Lula por antibolsonarismo. Só que não foi só isso. Nas periferias urbanas houve uma mudança muito grande no voto feminino. Por causa da Covid, por causa da inflação, e por causa do medo das consequências do armamentismo contra suas famílias, as mulheres periféricas votaram contra Bolsonaro. Não votaram a favor de Lula, de quem discordam em questões de comportamento. É só que, bem, o que tinham contra Bolsonaro era muito maior do que tinham contra Lula. E os homens periféricos, como se comportaram em 2022? O voto em Bolsonaro aumentou. Aumentou, principalmente, entre homens jovens, trabalhadores informais, homens evangélicos e aqueles que consideram que a insegurança aumentou. Porque, olha, a insegurança aumentou. Eles, diferentemente das mulheres, acham que o armamentismo é uma solução. Em 2022, na eleição que ele perdeu, Bolsonaro consolidou e ampliou ligeiramente seu eleitorado masculino nas periferias das grandes cidades. O voto em Bolsonaro aumentou entre homens porque ele convenceu homens periféricos de é o melhor para o país.

Então, aí, é uma questão pragmática. A gente tem duas opções. Uma é ir agora pra redes sociais e começar a bater nesse bando de misógino, nesses sujeitos desprezíveis porque, afinal, não é todo homem, mas é sempre um homem. Só que tem uma alternativa. É descobrir se dá pra conversar. Se dá para, ainda que seja aos poucos, ir entendendo em que lugar estão estes homens periféricos, como se sentem, será que não tem alguma coisa que dê para fazer por eles. Para que mudem.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

No sábado, o Guilherme Werneck escreveu a capa da edição especial do Meio para assinantes. Ele usou um formato diferente. Chamou três grandes especialistas. A Izabella Kalil, antropóloga, e possivelmente uma das pessoas que melhor compreende esse Brasil periférico. O Vinicius do Valle, cientista político, um dos criadores do Observatório Evangélico. E o Renato Meirelles, fundador do Instituto Locomotiva, criador do DataFavela, um daqueles sujeitos que sabe o que este pedaço do Brasil pensa. Aí o Gui fez menos uma entrevista e mais um botou os três para conversarem sobre estes homens. O que pensam, o que sentem, quais seus valores. A gente fala pouco demais deles que, em São Paulo, votaram em peso no Pablo Marçal. A gente precisa entender esses caras. Vale muito ler. É só assinar o Meio. Vai. Baratinho. Um chope por mês.

E este? Este é o Ponto de Partida.

Eu adoro o Porta do Fundos. É. Gosto mesmo sem o Tabet, mas como vou sentir falta do Peçanha. Acho engraçado, acho inteligente, e descobri no Porta um monte de humoristas que gosto de acompanhar. E, olha, nem é só pra rir. Pelo humor de muitos ali a gente também aprende muito sobre o comportamento do brasileiro. Humorista bom tem esse olho de ressaltar certos traços nossos e jogar na nossa cara. Eles foram chamados pelo STF para fazer uma série de vídeos que popularizem o conhecimento sobre os direitos de mulheres. São coisas como não existe mais aquela aberração da legítima defesa da honra, que uma mulher fez no passado não importa num julgamento de assédio. E é importante, mesmo, divulgar esse tipo de coisa. O problema é o seguinte: os vídeos são para falar com quem? Se é com as mulheres, possivelmente funcionam. Mas tratam os homens com tanta condescendência que é difícil acreditar que toquem em alguém.

E este não é um problema do Porta dos Fundos. É um problema do mundo em que o Porta está inserido. Que é o meu mundo. Que, possivelmente, é o mundo de muitos de vocês. O de um Brasil que estudou mais e que é progressista, não importa se liberal ou se de esquerda. Nós pertencemos a um ambiente que se habituou a olhar para homens de classe média baixa com desprezo. São bárbaros, reacionários, na ante-sala do fascismo. Bem, bolsonaristas, marçalistas, eles são mesmo. Mas serão sempre? Se forem sempre, danou-se. A extrema direita seguirá forte, com eleitorado forte, daqui por diante. Ou a gente aprende a falar com eles, a falar com respeito, a falar com empatia, ou ferrou. Até porque, olha, a maioria destes homens não são estupradores em potencial. É só gente ralando para construir uma vida, é só gente preocupada com suas famílias.

E é aí que entra o problema do status. Se você vai para o fundamental um, meninos e meninas estão lá na escola direitinho. Quando chega no fundamental dois, a coisa começa a apertar e os meninos vão sendo cobrados cada vez mais a contribuir com uma grana em casa. Em 2022, 84% das mulheres concluíram o ensino médio até os 19 anos. E 74% dos homens. Em 2023, quase 60% dos matriculados em universidades eram mulheres. A cada ano tem aumentado faz 25 anos. As notas das mulheres que deixam o ensino médio, em compreensão da leitura e redação, vêm sendo consistentemente maiores do que a dos meninos.

Sabe o que isso quer dizer? Elas argumentam melhor. Elas estão mais preparadas. Olha, essa diferença ainda não é refletida no mercado de trabalho. Os números estão melhorando, mas não no mesmo ritmo que o desempenho educacional demostra. Na Zona Sul do Rio, em Higienópolis ou na Vila Madalena, em Brasília, essa diferença não dá pra notar. Mas, olha, vai pra Zona Oeste carioca ou pra Zona Leste paulistana. Lá você vê em cada conversa duma moça de 20 com um rapaz de vinte. Eles sentem. Os pais dessas moças, que vêm de uma cultura mais conservadora, mesmo, em que o pai fala e quer ser ouvido com respeito, vão recebendo umas respostas das suas filhas para as quais eles não têm o que dizer.

Nós somos bichos que dependemos de status. É evolucionário. Status é ser respeitado no grupo ao qual você pertence. Se você é respeitado, é visto como sábio, como forte, como alguém com quem se pode contar, sua vida é mais fácil. O grupo de impulsiona pra frente, até emocionalmente. Se você é visto com desdém, como ignorante, como atrasado, se você sofre uma perda de status, o valor que você dá a si mesmo cai. Isso gera ressentimento. E ressentimento é o que alimenta demagogos populistas e autoritários.

A gente não tem escolha. Precisamos de programas de Estado voltados para homens jovens periféricos. Mas não é só isso. A gente precisa começar a falar com esses caras com respeito. Precisamos ter a coragem de olhar no olho e sentir empatia. E sentir a dor deles. Parece uma bobagem. E, no entanto, se não fizermos estamos, nós mesmos, chocando o ovo da serpente.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.