Sob Trump, Fullbright passa a censurar projetos

No primeiro semestre do ano passado, a pesquisadora Lorena Martoni entrou em contato com o também pesquisador Marco Antônio Alves. Os dois são professores de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Lorena queria submeter um projeto a uma chamada para um programa de cátedra de curta duração, o Fulbright Specialist Program, que financia a visita de professores especialistas norte-americanos para o Brasil a fim de desenvolver atividades acadêmicas.
Os dois professores formularam juntos um projeto que se propunha a discutir a Teoria Crítica na Teoria do Direito, abrangendo temas como Direitos Humanos, Democracia e questões de gênero e raça e a relação desses fatores com o encarceramento em massa. O convidado seria Bernardo Harcourt, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Columbia, em Nova York, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris. Harcourt é um teórico crítico com especialização na área de punição, vigilância, teoria jurídica e política e economia política. Assim que o projeto foi aprovado pela Fulbright Brasil, em setembro de 2024, os dois iniciaram o contato com o Harcourt. O americano aceitou o convite, mas devido a problemas de agenda, a negociação se arrastou pelos meses seguintes.
Censura
No início deste ano, porém, Lorena recebeu uma ligação da gerente da Fulbright Brasil. “Evidentemente constrangida, ela disse que, pela primeira vez, questões políticas do Governo nos EUA estavam afetando internamente a instituição e que ela tinha recebido algumas diretrizes sobre expressões usadas no projeto”, conta Lorena, que, em seguida, recebeu um novo documento. Em amarelo, estavam destacadas as expressões que não poderiam mais ser usadas: “Civil and Human Rights Law” (Direitos Humanos e Civis), oppression of gender, class and race” (discriminação por gênero, classe ou raça) e “global emergence of the far-right” (avanço global da extrema direita), “crisis of democratic principles” (crise de princípios democráticos) e “promotion of social justice both locally and globally” (promoção de justiça social local e globalmente).
“Chegaram a admitir que o projeto ficaria descaracterizado, mas argumentaram que, para salvar o financiamento, algumas expressões tinham que sair. Me orientaram a reescrever o projeto, sem aquelas palavras e submeter de novo à plataforma”, continua Lorena. “Nós decidimos fazer essa adaptação, conforme fomos orientados, mas também decidimos nos manifestar e tornar isso público”, completa.
Enquanto os pesquisadores reescreviam o projeto sem as expressões vetadas, o professor Harcourt recebeu um e-mail da Fulbright com a informação de que o projeto havia sido cancelado. “Nada foi dito para nós e o último contato que recebemos dizia que tínhamos até o dia 14 de março para reenviar o projeto com as alterações solicitadas”, conta Marco. “Estamos na dúvida sobre nossa situação, se o projeto foi mesmo cancelado em definitivo e não nos avisaram ainda, ou se apenas o projeto anteriormente aprovado foi cancelado e eles aguardam a nova versão para dar prosseguimento”, completa.
A britânica The Lancet, uma das mais respeitadas revistas científicas do mundo, abordou a censura na Ciência em um editorial publicado no início de fevereiro, que condena veementemente as ações de Trump. “A liberdade de expressão foi restringida. O uso de certos termos é banido nos sites do governo dos EUA, incluindo “gênero”, “transgênero”, “LGBT” e “não-binário””, diz o texto. “Na The Lancet, o impacto já foi sentido. Revisores estão se recusando e autores estão se auto censurando. As instituições de saúde podem estar hesitantes em criticar a nova administração publicamente, mas essa timidez é um erro. As ações de Trump devem ser denunciadas pelo dano que estão causando”, defende a revista.
A assessoria de imprensa da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, que responde pela Fulbright, afirmou que “no momento, a Embaixada e Consulados dos Estados Unidos no Brasil estão revisando os programas e parcerias para garantir que sejam eficazes e estejam alinhados com a política externa dos EUA e de acordo com a agenda America First”.
Cortes
No mês passado, a pesquisadora Ester Sabino, do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), levou um susto ao enviar a ordem de pagamento das despesas de janeiro decorrentes de pesquisas que realiza sobre doença de Chagas. O trabalho é financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) desde 2022. “Eles fazem essa chamada e a gente submete a proposta. Nós fomos contemplados entre cinco ou seis no mundo inteiro”, conta a pesquisadora. Hoje, uma das frentes da pesquisa é o estudo do benzonidazol, único medicamento contra a doença e sobre o qual ainda se sabe muito pouco.
O NIH, um dos principais financiadores federais de pesquisas em saúde, mantém estudos sobre tratamentos do câncer, transplantes e vacinas. Entre eles está o projeto de Ester, uma parceria de três universidades de Minas Gerais, um dos poucos contemplados fora do eixo Estados Unidos-Europa no último edital dos Centros de Pesquisa em Medicina Tropical (TMRCs), um programa do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas (NIAID) — que faz parte do NIH —, voltado para o estudo de doenças tropicais negligenciadas. Mas o NIH já havia anunciado logo no início do governo Trump um corte bilionário.
O trabalho de Ester chegou a ser interrompido, mas o pagamento foi feito depois que a Justiça americana deu parecer favorável a procuradores de Massachusetts e de outros 21 estados, que processaram o governo pedindo na Justiça que a medida do NIH fosse bloqueada. “Eu fiquei uns 15 dias sem saber o que eu ia fazer da vida, mas depois que saiu a decisão judicial enviei novamente a ordem de pagamento e fizeram o repasse”, conta a pesquisadora.
Em depoimento a uma publicação da Associação de Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma professora do Instituto de Física, que preferiu não ser identificada, contou que estava de malas prontas para passar um ano em uma universidade dos EUA como visitante, com bolsa de pós-doc da National Science Foundation (NSF). A docente já tinha pedido afastamento das funções no Brasil quando foi informada de que o financiamento havia sido suspenso. “A bolsa fazia parte de um projeto da NSF e esses projetos estão passando por revisão para se adequarem às ordens do novo governo.”
O editorial da The Lancet também lamenta uma lista de medidas, como o desmonte da USAID, e ordens de paralisação nos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e cortes que resultaram na não publicação do Morbidity and Mortality Weekly Report pela primeira vez em 60 anos. O texto classifica as ações de Donald Trump como “um ataque abrangente e prejudicial à saúde do povo americano e daqueles que dependem da assistência externa dos EUA”. E continua: “também são um ataque à comunidade de saúde e pesquisa médica. A capacidade dos pesquisadores de trabalhar foi severamente limitada ou interrompida completamente”.
Questionada sobre a insegurança causada pelas medidas de Trump aos pesquisadores, a professora Ester responde: “Para nós é uma dificuldade grande, principalmente porque você não consegue recursos de uma hora para outra. Você tem que esperar a época de submeter seu projeto, ele tem que ser analisado pelos pares daquela agência. Então não posso fazer uma outra agência de repente cobrir esse recurso. Então atrapalha muito. Chegamos a pedir doações”, conta.
Mas reconhece que, embora o prejuízo dos pesquisadores seja grande, não é o maior. “Eu acho que o maior prejuízo é social quando uma agência não funciona. Porque o National Institute of Health é o máximo da Ciência mundial. E quando você atrapalha esse estudo, não é só o meu, são muitos que estão sofrendo com essas novas regras, com pessoas sendo demitidas. Eu não consigo pensar em nenhuma área da medicina que não tenha um projeto importante que foi feito lá. Então, vários tratamentos para câncer são desenvolvidos na rede, várias vacinas. É uma instituição chave de pesquisa para todo mundo, não só para os americanos. E realmente vai ser uma pena se essa instituição não continuar trabalhando do jeito que trabalhava”, lamenta.