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‘O puro suco do Carnaval carioca’

Fotos: Andre Arruda

Num quarto sem ar-condicionado nos fundos de uma casa no subúrbio de Marechal Hermes, Jairo Gomes Junior, o Jairinho Madruga, glittera com paciência as máscaras das fantasias de Bate-bolas. Uma por uma. A glitteração é a parte nobre do ofício artesanal das fantasias. É basicamente o processo de acabamento manual de passar cola sobre desenhos rascunhados e aplicar purpurina, bater o excesso, esperar secar e repetir a operação, camada por camada. Jairinho é o principal pintor de máscaras do universo Bate-bola carioca, que reúne dezenas de milhares de pessoas pelos subúrbios, longe da fama dos blocos-empresa e da elite do grupo especial da Sapucaí.

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“A máscara é a alma do Bate-bola. Não entendo quem sai de Bate-bola e não usa máscara.” Jairinho, além de artesão, é colecionador de máscaras. “Tenho umas 300, talvez; até um exemplar dos anos setenta, bem surradinha, relíquia.” As máscaras se espalham pelas paredes do seu ateliê, decorado por uma grande bandeira da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel.

A origem do Bate-bola é difusa e imprecisa. O indício mais aceito é um paradoxo que nasce na república de Weimar, a Alemanha pré-nazista. Em 1934, trabalhadores alemães que vieram ao Rio de Janeiro construir o hangar dos dirigíveis Zeppelin, em Santa Cruz, zona oeste da cidade, saíam em grupos fantasiados de palhaços, os Clóvis, pelas ruas do centro. As bolas eram bexigas de boi, vindas dos matadouros da região. O costume de bexigas de animal tem referência na Europa do século 16 e as fantasias remetiam aos costumes da commedia dell’arte italiana, o pierrô, o arlequim e a colombina, trio imortalizado na marcha rancho Máscara Negra, de Zé Ketti e Pereira Matos, gravada em 1967. As bexigas eram enchidas com líquidos variados, de perfumes a misturas excrementosas, fazendo vítimas nas festas. Presume-se que a origem do termo Clóvis venha dessa época. Palhaço em alemão, como em inglês, é clown e a derivação em português acompanha a morfologia adaptada da onomatopeia. O Clóvis, porém, aglutina o fenômeno grupal do fantasiado mascarado do carnaval carioca, já presente em crônicas e raras fotos desde o início do século XX, mas sem a definição coletiva atual.

O fantasiado mascarado é uma figura comum no imaginário festivo brasileiro, proeminente no norte-nordeste do país, com os Mascarados Fobós de Óbidos, no Pará, os Fofões do Maranhão, os Caretas de Maragogipe na Bahia, os pernambucanos Caretas de Triunfo, Papangus de Bezerros e os Caboclos de Lança, da zona da mata. Os Caboclos de lança foram conhecidos nacionalmente no clipe Maracatu Atômico, de Chico Science (1968-1997) e a banda Nação Zumbi, na versão da música de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. Em Portugal, na cidade de Podence, no norte do país, os Caretos, declarados património cultural imaterial da humanidade pela UNESCO em 2019, poderiam desfilar como Bate-bolas no carnaval do Rio.

A jornada do Bate-bola, do seu possível início dos anos 1930 até os anos 1970, é pouco documentada. Esse aspecto precário de registros iconográficos, oposto ao farto material disponível das escolas de samba e bailes oficiais, se deve ao seu caráter principal, o de ser uma manifestação periférica e suburbana. Nesse meio tempo, em 1954, Armando Valles Castanye, um artista plástico catalão nascido em 1924, chegava em São Paulo para trabalhar numa fábrica de bonecas. O negócio não deu certo, e Armando foi parar no Rio de Janeiro quatro anos depois. Viu o carnaval e teve a ideia de confeccionar máscaras. Nascia a Condal, a mítica fábrica de máscaras que vestiu por mais de meio século o carnaval carioca e boa parte do nacional. Sediada na cidade de São Gonçalo, vizinha de Niterói, a máscara Condal foi a marca do Clóvis tradicional, com sua tela fina de metal pintado, capuz e cabelo esvoaçante, com o design inspirado no carnaval europeu. Com o advento da resina plástica, Armando começou a fabricação em série, fazendo mais de 200 mil unidades por mês e diversificando os temas, de famosos a monstros.

Aquelas máscaras que vendiam em camelôs, papelarias e lojinhas, de políticos, de FHC a Lula, passando por Sarney a Obama, de celebridades como Michael Jackson a heróis de quadrinhos? Tudo Condal. Tive uma do Capitão América. Armando morreu em 18 de julho de 2007, aos 82 anos. Em 2019 é aprovado o projeto de lei municipal nº 1849/2016, que marca a data de nascimento de Armando Valles, 27 de novembro, como o Dia dos Clóvis (Bate-bola) e Originalidades do Carnaval. Na justificativa do projeto, o texto diz que ‘’no final da década de 50, no carnaval do Rio de Janeiro, (Armando) deparou-se com alemães (que trabalhavam numa fábrica de Zeppelins em Santa Cruz, Rio de Janeiro, brincando e fantasiados de Clown (palhaço em inglês) Daí o surgimento da palavra Clóvis.’’ O hangar foi inaugurado em 1936… coisas da política. Mas a homenagem é justa. Em fevereiro de 2019, a Condal fecha definitivamente, sem texto de despedida.

O Bate-Bola atualmente tem cinco estilos básicos: Pirulito, Bola e Bandeira, Sombrinha e adereço, Capa e Zona Oeste. O Pirulito é o Clóvis que faz parte do inconsciente coletivo suburbano, de macacão, máscara e bola para bater no chão e assustar. A partir dos anos 1990, sem uma data precisa, a fantasia começou a evoluir para o que se convencionou chamar de bate-bola rodado, com muito tecido e detalhamento nos moldes, cores e acabamentos. O macacão cedeu lugar a meiões coloridos, mangas compridas e “casacas”, coletes com os temas das “turmas”, os coletivos desses brincantes.

O estilo Zona Oeste é um termo genérico para as grandes fantasias, também conhecidas como “carro alegórico”, trajes imensos, pesando quase 30 kg. O bate-bola de capa é basicamente uma fantasia de macacão, máscara e chapéu com uma verdadeira asa sustentada por tubos de pvc, cuja envergadura passa dos quatro metros, com frente e verso pintados à mão. A maioria das turmas é bola e bandeira e sombrinha e adereço. Dizem que a bola foi substituída pelo adereço, que pode ser um leque, uma maquete, um boneco, para afastar a ideia de violência e agressividade, por muitos anos ligadas aos Bate-bolas.

Um dos mais tradicionais coretos (encontros de turmas) de bate-bolas do Rio, a praça de Marechal Hermes, não acontece desde 2018 devido ao confronto armado entre elementos de duas turmas. Violência, aliás, é assunto tabu. Como um parente problemático, evita-se falar. “Graças a Deus, virou a chave. Hoje tem Bate-bola até na novela das sete. Há dois anos não tem ocorrência policial. Bate-bola é o puro suco do carnaval carioca”, diz Anderson “Buda”, cabeça (líder) da turma Fascinação de Oswaldo Cruz.

O Bate-bola era um reduto masculino até pouco tempo. Há 12 anos, Vanessa Amorim, a Vavá, criou as Brilhetes, uma dissidência da turma Brilho, de Anchieta. “A gente vem pra desconstruir esse mundo machista, quebrando barreiras. O pessoal fica surpreso quando vê que somos mulheres. As mulheres antes vinham atrás, carregando bandeiras, trazendo os filhos, carregando bebida. Ainda tem preconceito, mas vamos conquistando nosso território.”

O universo Bate-bola é a segunda economia do carnaval depois das escolas de samba. São cerca de 600 turmas, até em municípios vizinhos do Rio. A confecção de fantasias já tem profissionais que vivem exclusivamente desse mercado. A maior turma do Rio, a Bem Feito de Campo Grande, tem cerca de 500 componentes e sua saída acontece num sítio alugado para o evento. A saída de uma turma não é um evento simples: são contratados DJs, paredões de som, equipes de filmagem e o voo de drone é quase obrigatório. E fogos, muitos fogos de artifício e até chamas reais, como a turma Bolo Doido de Deodoro, que alugou a máquina de labaredas que o Botafogo usa em seu estádio.

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