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O fascismo se apresenta

Vamos dizer, apenas por hipótese, que a síndrome de Asperger de Elon Musk o tenha levado a um gesto desajeitado que se assemelhava a uma saudação romana. Uma saudação fascista. Meu pai e irmão caçula têm Asperger, conheço o desajeito nas relações sociais desde pequeno. E, olha, às vezes rolam mesmo uns erros brutais de cálculo. A pessoa com Asperger é pega de surpresa pela maneira como todo mundo em volta reage ao que ela fala ou faz a toda hora. Então vamos dar de barato isso, que Elon Musk em seu desajeito social fez um troço que foi mal interpretado. Tá. Uma vez.

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Aí Stephen Bannon fez o mesmo gesto na CPAC, a grande reunião da nova direita americana, na semana passada. Depois foi Eduardo Verástegui, na mesma CPAC, um ator mexicano jurando fidelidade a Donald Trump e prometendo que vai livrar seu país dos comunistas, dos socialistas e da cultura woke. Vocês conhecem o tipo, né? Brasileiro patriota leal a Trump, mexicano patriota leal a Trump. Enfim. O ponto é: mais dois fizeram o gesto no mesmo contexto. Grandes eventos trumpistas. Se uma vez é acidente, difícil defender que não seja de propósito nas outras.

O que está acontecendo aqui? Tanto Bannon quanto Verástegui fizeram, propositalmente, uma saudação fascista para ser gravada e distribuída como meme nas redes sociais.

A questão, aqui, não é apenas se a vertente mais radical da nova direita é fascista ou não. Este é outro debate. A questão é por que eles estão forçando a comparação. Qual é o objetivo. Uma das respostas possíveis e também a mais preocupante. Para o público com quem falam, tá tudo bem. A palavra “fascismo”, para um pedaço das sociedades, não é mais tabu político.

O crescimento da AfD na Alemanha é outro indício disso. Porque a AfD é diferente do bolsonarismo, do trumpismo, mesmo da direita italiana de Giorgia Meloni. A AfD mexe com os símbolos do nazismo o tempo todo. Não disfarça. Veja, os símbolos nazistas, as insígnias nazistas, são ilegais na Alemanha. Então o que os militantes da AfD fazem? Usam a bandeira do Império alemão, aparecem com cruzes celtas, aparecem com camisetas e faixas com frases como Alemanha para os alemães, Nós somos o povo. Tudo isso é um jeito indireto de lembrar os nazistas. E, em alguns casos, políticos da AfD usaram até o termo Varterland, “Pai Pátria”. Os nazistas tinham essa coisa de ao invés de se referir à “Mãe Pátria”, como a maioria dos patriotas, tratavam de “Pai Pátria”, o “Pai País”.

E este discurso da AfD contamina. Na sexta, um cara assistindo à ópera Berlim, Berlim, em Leipzig, se ergueu e estendeu o braço em Sieg Heil quando apareceu uma suástica no palco. A peça se passa na Alemanha daquele tempo. Durante o fim de semana, outro sujeito, na estação de trem da cidade, também saiu dando seus sieg heils. É aquela coisa. O gesto é ilegal, as pessoas chamaram a polícia. A questão é o ambiente. Está sendo criado um ambiente de uma tolerância maior.

As pessoas, principalmente pessoas públicas em eventos políticos, querem dizer o que com isso? Com o fazer do gesto? É o prazer de chocar? É o envio de uma mensagem que informa “voltamos”? Estão testando as águas da cultura? Porque, vejam, em 2016, quando Donald Trump chegou ao governo americano pela primeira vez, tinha quem o chamasse de fascista mas era minoritário e havia muitos argumentos contra. Existia, na verdade, uma imensa pressão para se dizer que chamar de fascista era exagero. Agora tem um bando de gente no entorno do trumpismo querendo provocar esta comparação.

A Janela de Overton é o termo que usamos para aquilo que é considerado aceitável no debate público. Abrir a Janela de Overton é o ato de fazer com que uma ideia antes percebida como inaceitável seja, primeiro, vista como de mau gosto. Depois excêntrica. Aí esquisita. Então assim-assim. Até que um dia acordamos e a coisa nem parece tão mal.

Um dos comentaristas no chat do Central Meio de hoje fez o seguinte comentário: “a democracia é uma ilusão. O povo, a massa, nunca teve o poder não mão. É você que escolhe quem vai te dominar a cada 4 anos. ??Se o povo realmente tivesse o poder, não existiriam elites concentrando poder e dinheiro.”

Talvez este camarada, o que escreveu isso aí, não saiba. Mas este discurso é fascista. E, neste exato momento, os Estados Unidos estão rompendo com uma tradição liberal de mais de século.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Gente, a base da democracia é o pluralismo. Não há um povo, uma coisa homogênea que pensa igual. Somos pessoas. Cada pessoa com seu olhar, cada grupo com sua visão de mundo. Gente intelectualmente honesta, perante os mesmos fatos, pode tirar conclusões diferentes. A gente apagou isso da nossa vida. Seja honesto! Quem já leu isso em comentários nas redes por aí? Seja honesto! Ou seja, se você pensa diferente é porque está sendo desonesto. Então às vezes parece que estamos cercados. Que somos inimigos por discordarmos. Que somos autoritários por pensarmos diferentemente. Democracia é o contrário disso, democracia é justamente o regime que parte do princípio de que discordaremos e está tudo bem. A gente precisa voltar a viver num mundo em que podemos discordar e ainda assim dividirmos um chope. É nisso que a gente acredita, aqui no Meio. Se é num mundo assim que você deseja viver, se está procurando um lugar em que possa respirar, ser sente estar sob pressão por todo lado, aqui é o meio do caminho. Assine. Seja bem-vindo.

E este? Este aqui é o Ponto de Partida.

O que é este governo Donald Trump? Está cortando dinheiro da USAID, a agência que distribuía recursos internacionalmente para ONGs, principalmente. Está tirando recursos de instituições educacionais, universidades principalmente, de acordo com o currículo delas. Se ensinam coisas que o trumpismo considera antiamericanas, tiram a grana. Estão cortando, também, dinheiro para pesquisa e desenvolvimento tecnológico.

Os americanos investem em ONGs pelo mundo há muitas décadas. A lógica já era incipiente no governo Jimmy Carter mas se tornou política de Estado a partir da presidência de Bill Clinton. Liberais acreditam que um mundo com mais democracias com economias de mercado é melhor para todo mundo. Por quê? Democracias com economias de mercado investem pesado em comércio umas com as outras e isso é bom para todos. E democracias não fazem guerra umas com as outras. Duas democracias em conflito resolvem seus problemas com diplomacia. Não quer dizer que os americanos não tenham relações diplomáticas com ditaduras. Claro que têm. Mas existe faz um tempo a compreensão de que, idealmente, quando mais democracias, melhor para eles. É, por assim dizer, a doutrina Fukuyama. E isso se ancora na ideia de que democracias nascem de baixo para cima, da sociedade para o governo. Por isso o investimento e ONGs. Por isso os dinheiro de Open Society, de Fundação Ford e por aí vai. É ali o primeiro lugar em que o governo Trump cortou. No dinheiro da USAID. Ou seja: o princípio básico, liberal, que norteia a diplomacia americana desde a queda do Muro de Berlim caiu. E caiu numa semana.

Junte isso aos cortes em educação e pesquisa e qual é a leitura? O governo Trump acredita que nem internamente, nem externamente, o Estado deve financiar produção de conhecimento e construção de relações que não estejam em acordo com a visão que eles têm de mundo. Ou pensa como Trump ou o governo não vai ajudar. Na verdade, o governo vai trabalhar para atacar, diminuir, se possível eliminar. Narciso acha feio o que não é espelho.

Os Estados Unidos são uma democracia que se volta contra o pluralismo. Contra a ideia, fundamental, de que numa sociedade haverá pessoas que pensam diferentemente. Vamos voltar àquele comentário no Central Meio de hoje? “A democracia é uma ilusão. O povo, a massa, nunca teve o poder não mão.” Na verdade, quem tem poder é uma elite.

Isso não é verdade. Uma democracia, uma democracia liberal, se propõe a fazer algo particularmente difícil. Compreendendo que a sociedade é plural, compreendendo que a sociedade não é formada por um único povo uniforme, homogêneo, mas sim por muitas pessoas com origens diferentes, histórias de vida distintas, níveis educacionais que variam. Ou seja: é inevitável. Haverá muitas correntes de opinião. Quando alguém fala “a democracia é uma ilusão porque o povo não manda realmente”, essa pessoa não está percebendo que a ilusão aí é outra. A ilusão é o povo. Não há um povo. Há pessoas, pessoas diferentes. Quando alguém está falando em nome “do povo”, de um só povo homogêneo em suas opiniões, aí esta pessoa não está falando de uma democracia liberal.

O governo Trump está rompendo com os princípios mais básicos do liberalismo político. Está apontando para um Estado com ideias oficiais aprovadas que são as únicas que serão financiadas pelo Estado. Não é um Estado ausente, é um Estado que guia. Enquanto isso, gente próxima do trumpismo está por aí lançando o braço à frente, inclinado, abrindo a janela de Overton.

Um Estado autoritário, que controla o que pode ser estudado, que põe dinheiro em quem pensa igual e tira de quem pensa diferentemente. Um governo que dá de ombros para a aliança estratégica com a Europa firmada após a Segunda Guerra Mundial. Que tolera a expansão imperialista russa e decide negociar metade da Ucrânia sem consultar os ucranianos.

Esta Casa Branca de Donald Trump não tem nada a ver com os Estados Unidos do pós-Guerra. Não é o país de John Kennedy mas também não é o país de Ronald Reagan. Não é o país de Bill Clinton, não é o país de Barack Obama, não é nem mesmo o país de George W. Bush ou até Richard Nixon.

É outro país que segue outra lógica. Na qual os partidários do presidente estão sugerindo com seus gestos alguma coisa aí. A dúvida é uma só: esse negócio dura? Eu acho que não. Espero não estar errado.

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