Agora é com o Supremo
Um dos momentos mais surpreendentes da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid trata da reunião dos comandantes das três Armas com o então presidente Jair Bolsonaro. Naquele dia, isso foi em sete de dezembro de 2022, Bolsonaro apresentou ao general Freire Gomes, ao brigadeiro Baptista Júnior e ao almirante Almir Garnier uma versão da minuta do golpe. Ou seja, de um decreto que decretava estado de Defesa no entorno do prédio do TSE que ia levar à anulação das eleições presidenciais.
Pois é, neste momento o almirante Garnier, o comandante da Marinha, se virou e se pôs à disposição de Bolsonaro. O comandante da Marinha topou o golpe. Isso é um pedaço da história que a gente já sabia. O que veio à tona hoje, no depoimento do Cid, foi que o general Freire Gomes ficou irritadíssimo na hora. “Você não tem efetivo, você quer botar na minha conta?”, ele perguntou. Ou seja, a Marinha não tem quase nenhum equipamento, quase nenhum soldado, quem dá golpe de Estado tradicionalmente é o Exército, mas aí o sujeito faz uma de bonito quando todos sabiam que o golpe aconteceria ou não dependendo de apenas um homem ali. Ele. Freire Gomes. Comandante do Exército.
O Supremo Tribunal Federal terá este ano uma das missões mais importantes de toda sua história. É muito mais do que simplesmente fazer o primeiro julgamento sério sobre uma tentativa de golpe de Estado na história do Brasil. É mais do que permitir que nós, no Brasil, vivamos nosso momento 1985 da Argentina, em que pela primeira vez generais com muitas estrelas se organizem para derrubar a democracia e sejam finalmente punidos por isso. O Supremo precisará explicar ao Brasil o que houve.
Convencer a todos os bolsonaristas de que o crime aconteceu é impossível. Mas nem todo mundo que votou em Jair Bolsonaro é bolsonarista. Muita gente simplesmente é de direita ou é antipetista. A maioria dos brasileiros não acompanha política a fundo, não compreende bem o que uma democracia é. É fundamental um papel didático, por parte do Supremo, para explicar o que aconteceu. E isso não tem nada de trivial.
Quem entra nas redes sociais percebe logo como a coisa está sendo contada. Coitados dos desavisados do oito de janeiro, estavam só revoltados, eram uns pobres coitados. Aquilo não foi golpe. Aquilo no máximo foi depredação.
É por causa disso que tem um bando de bolsonarista por aí dizendo que a denúncia da Procuradoria Geral da República é uma peça de ficção, que não prova nada. Eles apostam que as pessoas não vão ler jornal, não vão acessar sites de notícias, vão só ver uns vídeos nas redes sociais. Quem sabe, este vídeo aqui?
Esta é uma confusão recorrente e importante por uma razão muito simples. O 8 de janeiro é só um detalhe no processo todo. O que prova que o ex-presidente Jair Bolsonaro tenha participado de uma tentativa de golpe de Estado não tem nada a ver com o 8 de janeiro. Na verdade, e é difícil entender por que, o pedaço do relatório da Polícia Federal sobre o 8 de janeiro é claramente o mais frágil. E é o que ameaça o processo.
Então nosso assunto hoje são dois. O primeiro: por que a Justiça recebeu informação o suficiente que permite comprovar que Jair Bolsonaro tentou um golpe de Estado? E, depois, o segundo. Que ponta solta é essa que ficou na investigação sobre o 8 de janeiro?
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Gente, a base da democracia é o pluralismo. É compreender que vivemos num mundo em que pessoas intelectualmente honestas, perante os mesmos fatos, podem tirar conclusões diferentes. A gente apagou isso da nossa vida. Seja honesto! Quem já leu isso em comentários nas redes por aí? Seja honesto! Ou seja, se você pensa diferente é porque está sendo desonesto. Então às vezes parece que estamos cercados. Que somos inimigos por discordarmos. Que somos autoritários por pensarmos diferentemente. Democracia é o contrário disso, democracia é justamente o regime que parte do princípio de que discordaremos e está tudo bem. A gente precisa voltar a viver num mundo em que podemos discordar e sermos amigos. É nisso que a gente acredita, aqui no Meio. Se é num mundo assim que você deseja viver, se está procurando um lugar em que possa respirar, ser sente estar sob pressão por todo lado, aqui é o meio do caminho. Assine. Seja bem-vindo.
E este? Este aqui é o Ponto de Partida.
Três peças na investigação da Polícia Federal sustentam que houve uma tentativa de golpe de Estado. A primeira é o depoimento do ex-comandante do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes. A segunda é o do ex-comandante da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Júnior. E, por fim, tem a terceira. A minuta de golpe de Estado que foi encontrada na casa do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres.
Essa minuta era um decreto que fazia uma intervenção no Tribunal Superior Eleitoral, anulava as eleições presidenciais de 2022, aquela que Lula venceu, e instaurava um comitê de gestão de crise para cuidar de tudo. Comitê, não, né? Uma junta. O general Augusto Heleno, o general Braga Netto e, ele, sempre ele, Filipe Martins. O representante principal do nacional-olavismo naquele Palácio do Planalto.
Esta minuta era o golpe. Tirava do jogo o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, ignorava as eleições e pronto. O Brasil, a partir de 1º de janeiro de 2023, não estaria mais sob a Constituição Federal de 1988. O regime teria caído.
O documento ganhou contexto quando os dois comandantes de Exército e Aeronáutica explicaram à Polícia Federal que o presidente Jair Bolsonaro lhes apresentou o texto pedindo sua ajuda. Por quê? Ora, aquele decreto cairia em dois segundos no Supremo Tribunal Federal. Um presidente da República pode assinar o papel que quiser, mas temos lei, temos Justiça, e se o texto do decreto não tem valor legal, cai. Então é preciso força, força armada, para impor uma decisão ilegal.
Este é o ponto da ruptura constitucional. É o ponto em que a Justiça é calada pela ponta das baionetas. Ou dos tanques.
Ocorre que o general e o brigadeiro disseram não. O almirante é quem disse sim. “Você não tem efetivo, você quer botar na minha conta?” Reclamou o general. Pois é. Foi ali que o presidente forçou para que o golpe acontecesse mas não conseguiu.
O crime de tentativa de golpe de Estado se dá quando alguém põe em marcha um plano para subverter o regime democrático. Bolsonaro envolveu militares para que pressionassem o alto-comando, preparou os termos jurídicos para dar forma, trabalhou duro. Não conseguiu. Mas tentou. Crime configurado.
O oito de janeiro o que é? Bem, o mesmo Anderson Torres, aquele ministro da Justiça que tinha em casa a minuta, virou em janeiro secretário de Segurança do Distrito Federal. Ele tirou a Polícia Militar da obrigação de proteger o palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Desarticulou a PM e, na véspera daquele domingo, viajou para a Flórida onde estava Bolsonaro. Durante toda a semana, foram distribuídas mensagens de Festa da Selma. Ou da Selva, para reunir muita gente. As tropas do Comando Militar do Planalto, que também deviam garantir a segurança dos três Poderes, desapareceram. Por quê? Quem desarticulou?
O objetivo ali, possivelmente, era forçar o governo Lula a decretar uma garantia da lei e da ordem e botar a segurança do Distrito Federal nas mãos do Exército. Não se fez isso. Foi Ricardo Capelli assumir, numa intervenção, a segurança do DF e imediatamente a PM agiu. O que deixa claríssimo que era só dar a ordem. Que ninguém no governo de Brasília deu.
O problema é que o relatório da Polícia Federal não consegue fazer o elo entre os organizadores do golpe e o movimento de 8 de janeiro. Não dá conta de mostrar toda a organização que aconteceu para que aquela insurreição explodisse. Ao fazer isso, fica parecendo que são dois incidentes distintos. Uma explosão de insatisfação popular de um lado, o planejamento de golpe de Estado do outro.
Importa? Não importa muito. Que Jair Bolsonaro botou em marcha uma tentativa de golpe de Estado está claríssimo. As informações são mais do que suficientes para que ele e alguns generais sejam condenados. O testemunho de dois comandantes de Armas são das coisas mais contundentes que se pode esperar. Mas é uma pena. Porque se houvessem amarrado com o 8 de janeiro a história ficaria muito mais bem contada.
O julgamento precisa explicar com clareza o que Bolsonaro fez. Quem organizou a pressão sobre os generais. Essas histórias precisam ser contadas para todo o Brasil. De preferência com o general Freire Gomes e o brigadeiro Baptista Júnior confirmando os depoimentos que já deram perante as câmeras.
É preciso mostrar o que aconteceu. Para que o Brasil consiga começar a deixar a febre que nos acometeu, a gente precisa que essa história seja contada. O papel do Supremo não é apenas julgar e julgar dentro da lei, dentro da Constituição. O papel do Supremo será o de explicar.
É um século e meio de golpes militares. É hora da gente sair dessa.