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O teatro da Companhia Ensaio Aberto e sua sede restaurada no porto do Rio

Tuca Moraes em cena em monólogo baseado em Clarice Lispector. Próximo espetáculo da companhia será ‘Morte e Vida Severina’

O espetáculo está prestes a começar. O diretor, Luiz Fernando Lobo, recebe a plateia e acomoda cada pessoa nas poltronas dispersas em cena. Todos se sentam ao redor da atriz Tuca Moraes, que observa o movimento em silêncio. Tuca e o público dividem o palco. Em um jogo de improviso, a atriz se aproxima dos espectadores e se deixa levar por palavras que surgem, mergulhando no abismo literário de Clarice Lispector e voltando dele com um trecho da obra de Clarice para cada um.

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Em cartaz no Rio de Janeiro até o dia 22 de fevereiro, Palavras convida o público a uma imersão no universo da autora de A Hora da Estrela, Água Viva, A Paixão Segundo G.H., Felicidade Clandestina e tantos outros. Tuca, atriz e fundadora da Companhia Ensaio Aberto junto com Lobo, é guiada no espetáculo não só por palavras e trechos da obra da escritora, mas também por sensações, sentimentos e pelo inesperado da plateia como uma mulher cega que começou a responder com outras palavras ou alguém que não a olha nos olhos. Nenhum espetáculo é igual ao outro, cada um cria um momento teatral único onde nada se repete — nem texto, nem luz, nem trilha sonora.

Em um mundo onde teatros fecham ou agonizam, estar em um novo espaço cênico, vê-lo nascer onde o Rio de Janeiro começou a se formar, na Zona Portuária, é quase uma epifania. Palavras inaugura uma nova sala teatral na cidade, a Sala Sérgio Britto, em homenagem ao ator e diretor que morreu em 2011, aos 88 anos. O espaço fica no Armazém da Utopia, sede da Companhia Ensaio Aberto, fundada há 33 anos e que se mudou para o local em 2010.

O Armazém da Utopia acaba de ser completamente restaurado e reinaugurado após uma imensa obra que custou R$ 36 milhões, recurso obtido de um edital público do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e com os patrocinadores Shell e Instituto Vale. Além da Sala Sérgio Britto, a companhia inaugurou em sua sede, na Avenida Rodrigues Alves, o Teatro Vianninha, um teatro found space com arquibancada retrátil e que homenageia o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho.

A coletânea As Palavras e o Tempo, que traz 4,5 mil frases de toda a obra de Clarice, foi o gatilho para Tuca e Lobo pensarem o espetáculo. “Fiquei louca com esse livro. A obra da Clarice é enorme, e as frases, mesmo fora de seu contexto, têm uma dimensão absurda. O Luiz me perguntou o que eu queria fazer. Eu queria algo intimista, acolhedor, um diálogo sincero com as pessoas, algo que fosse o oposto do que a pandemia fez com a gente”, conta Tuca.

Quando eles começaram a pensar na dramaturgia, Tuca entendeu que o espetáculo tinha os pilares do trabalho da Ensaio Aberto. “É um espetáculo onde podemos experimentar muito e ir bem longe com muitas formas de fazer o nosso teatro, trazendo conceitos como o teatro inacabado, o conceito do público ou espectador, a quebra da quarta parede. São conceitos da nossa tradição do teatro épico que Palavras esgarça até o último grau.”

Já no primeiro ensaio, Luiz pediu à Tuca que esquecesse toda a dramaturgia que ela tinha pensado, e que trabalhasse um fluxo de palavras, seguindo o processo de escrita de Clarice, no qual o fluxo do inconsciente era muito grande. “Vimos que era um processo muito interessante e, ao mesmo tempo, um grande desafio. Porque desconstruía o teatro preciso e científico que forma o teatro épico. A música não se repete, a luz também não. A gente nem chama de espetáculo. Para nós é um encontro”, diz Tuca.

Encenado em 2022, quando o Brasil voltou ao mapa da fome, ‘Morte e Vida Severina’ reestreará em 29 de março

Encenado em 2022, ‘Morte e Vida Severina’ reestreará em 29 de março no Armazém da Utopia

Palavras é um exercício de coragem: da atriz, do diretor, do espectador. Como escreveu Clarice em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, “se não há coragem, que não se entre”. E ao entrar no Armazém da Utopia, encontra-se um espaço construído com coragem de sobra. Durante o governo de Jair Bolsonaro, eles chegaram a enfrentar uma ordem de despejo. A alegação para a ação foi de que o imóvel pertencia ao Pier Mauá, empresa que administra o Terminal Internacional de Cruzeiros do Porto do Rio de Janeiro. Mas o espaço é cedido pela Prefeitura do Rio em acordo definitivo com o grupo, e um desembargador derrubou a ordem de despejo.

Além dos teatros, muito focados em atrair um público periférico e que não costuma frequentar a cena teatral da cidade – e que, para isso, a companhia desenvolveu o que chama de Ciência do Novo Público –, o novo Armazém da Utopia agora tem o Café Bertold Brecht, espaços de trabalho para os funcionários da companhia, salas de ensaio e estudo para o elenco, acervo de todos os espetáculos da companhia com mais de 5 mil itens de objetos de cena e figurinos, apartamentos para artistas visitantes, tudo à beira do cais e a poucos minutos da Praça Mauá. 

Desde sua fundação, a Ensaio Aberto propõe um teatro que recupere “a vocação de trabalhar desafios gerais, sentimentos gerais, esperanças gerais, complexos, contraditórios, desiguais”, como definiu o poeta Pedro Tierra. Uma companhia que, “como o próprio nome já indica, explora a ideia do ensaio como experimento e por ela pauta a sua intervenção na cena brasileira”, segundo a pesquisadora de teatro Iná Camargo Costa, professora aposentada da Universidade de São Paulo.

Foi para cumprir esse propósito que o projeto de restauro e modernização foi pensado. Não há nada parecido no país com o que a Ensaio Aberto acaba de fazer – algo que só encontra paralelo na Cartoucherie, como é conhecida a sede em Paris da Théâtre du Soleil, a companhia fundada em 1964 por Ariane Mnouchkine e Philippe Léotard.

Neste sábado, dia 8, os atores da companhia começaram a ensaiar o próximo espetáculo. Eles estreiam em 29 de março Morte e Vida Severina, poema de João Cabral de Melo Neto, publicado em 1955, sobre a fome e a seca no sertão, e com música de Chico Buarque. A montagem que a companhia fez do espetáculo em 2022, com um grupo musical tocando ao vivo a trilha de Chico, foi considerada uma obra prima por público e crítica, com todas as apresentações lotadas. Depois de Morte e Vida, a companhia irá remontar Olga, sobre Olga Benário Prestes, em seguida O Dragão, do dramaturgo e escritor russo Eugène Schwartz, e, em 2026, a companhia estreará um novo espetáculo, A Santa Joana dos Matadouros, de Brecht.

Os ingressos de Morte e Vida ainda não estão à venda. Para quem quiser ver Palavras que em maio fará seis apresentações no Théâtre de la Concorde, em Paris –, só há entradas (à venda por R$ 50 a inteira) para duas apresentações: 15 e 22 de fevereiro.

 

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