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Ande duas casas para aprender história

Rio de Janeiro, 1904: a cidade passa por um intenso processo de urbanização liderado pelo prefeito Pereira Passos. A prefeitura promove a demolição de cortiços e habitações populares para abrir avenidas e ampliar espaços públicos. O processo, que ficou conhecido como “bota abaixo”, revolta a população. Milhares de pessoas, essencialmente negras, são desalojadas e se mudam para os morros e periferias. Simultaneamente, doenças como febre amarela, peste bubônica e varíola se tornam endêmicas. Para combatê-las, o sanitarista Oswaldo Cruz implementa medidas rigorosas de higiene e a vacinação obrigatória contra a varíola. A obrigatoriedade gera resistência popular. O descontentamento, se acumula ao das remoções das famílias do centro da cidade e resulta na Revolta da Vacina, reprimida pelo governo.

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O cenário descrito acima também está sobre a mesa de um casal morador da Tijuca, na zona norte do Rio: o professor Rodrigo Elias, 46, e a jornalista Angélica Fontella, 37. Mas lá não está representado em palavras. Um tabuleiro colorido divide a capital fluminense em regiões com áreas a serem reconstruídas. Espalhados em volta dele, há cartas ilustradas com personagens como o próprio Oswaldo Cruz; o engenheiro Paulo de Frontin, que liderou a construção da avenida Central; o ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas do governo do então presidente Rodrigues Alves, Lauro Muller, responsável pela modernização do porto do Rio de Janeiro; Tia Ciata, uma das mais importantes líderes da cultura afro-brasileira no Rio de Janeiro, entre muitos outros. Cada personagem tem pontuações particulares em quesitos como engenharia, saúde pública, prestígio e capacidade de financiamento. Também é possível construir edifícios, como o Museu de Belas Artes e o Teatro Municipal. Além disso, pequenas peças simbolizam revoltas populares e pestes, que atrapalham o objetivo final: urbanizar a cidade do Rio de Janeiro.

Num trabalho caprichoso e detalhado, Rodrigo transformou um de seus períodos favoritos da história no jogo de tabuleiro. “Eu gosto muito desse período do século 20 por vários motivos. Tem a questão política, a estética da arquitetura, a arte, a literatura e tudo mais. Eu acho que é um período rico de personagens”, conta o professor. “Então fui ver o que havia lá fora sobre jogos de transformações urbanas importantes. E encontrei vários”. Sentado à mesa diante do tabuleiro de Rio de Janeiro, 1904, como ele chama a própria criação, Rodrigo vai tirando de uma pilha na cadeira ao lado as inspirações para o jogo. Em um deles, o desafio é administrar Paris, comprando edifícios e lucrando com aplicações e investimentos. Em outro a missão é construir Nova York em 1901. Nos dois casos, os personagens fictícios. “E aí pensei ‘vou fazer um jogo sobre aquele período no Rio de Janeiro, mas vou colocar personagens da época, questões da época’”, conta.

 

“Rio de Janeiro, 1904” é o segundo jogo desenvolvido por Rodrigo sobre um período histórico brasileiro. Durante a pandemia de Covid-19, em 2020, ele e Angélica, trancados em casa como quase todos nós, encontraram nos jogos de tabuleiro um novo hobby. E, como o isolamento durou muito mais que o esperado inicialmente, partiram da jogatina para a produção dos jogos. “A gente percebeu que havia jogos voltados à história nos Estados Unidos e na Europa”, conta Angélica. “Tinha sobre a Segunda Guerra, o nazismo, a Guerra Fria, o Watergate, mas não existia um jogo sobre o golpe de 64 no Brasil, então decidimos fazer”, completa.

Aumento de interesse

Rodrigo e Angélica engrossam uma estatística que vem sendo muito celebrada por editoras no Brasil: o aumento do interesse por jogos de tabuleiro. Uma das principais fabricantes desses produtos no país, a MeepleBR, observa esse fenômeno desde 2013, mas viu a procura disparar em 2020, exatamente quando Rodrigo e Angélica começaram a produzir o próprio entretenimento. “Em 2020 a pandemia foi um fator impulsionador para o mercado. Com a restrição de circulação e contato, alternativas de lazer doméstico foram altamente demandadas e, desde então, experimentamos um novo crescimento mundial”, conta o CEO da empresa, Diego Bianchini. A empresa diz que cresceu 300% em faturamento desde 2020.

De acordo com o último censo Ludopedia, que reúne números sobre jogos de tabuleiro e RPG no Brasil, com dados de 2020, a maior parte do público consumidor tem entre 25 e 45 anos, 70% pertence às classes A e B e escolaridade varia entre curso superior incompleto, completo ou pós-graduação. “Porém, após pandemia, notamos uma aumento no público geral, majoritariamente jovens”, relata Bianchini, que diz ainda que a empresa triplicou o catálogo. A alta ainda levou a empresa a investir na produção e distribuição internacional de jogos produzidos no Brasil, com a tradução de pelo menos três jogos nacionais para até 15 idiomas.

Na sala de aula

Ao ser questionado se pretende aproveitar a onda para lançar comercialmente os jogos desenvolvidos em casa, Rodrigo diz não descartar, mas também não contar com a possibilidade por considerar que o processo de seleção das editoras é longo e demorado. Mas, professor de História que é, planeja uma parceria com a professora de Ciências da escola municipal onde leciona para a implementação de oficinas de criação de jogos pelos alunos. “A ideia é que a produção deles envolva qualquer temática, não necessariamente com temas do currículo escolar. Porque no processo de fazer, cortar, medir, numerar, calcular, o aluno já vai trabalhar habilidades interessantes em termos pedagógicos”, planeja.

Entusiasmado com a ideia, Rodrigo conta que em conversas com outros professores da rede pública, um relato é recorrente: os alunos adoram jogar cartas. “Todos os dias nas secretarias tem um monte de baralhos apreendidos por professores e inspetores”, conta. Eu pergunto se a ideia dele é legalizar a jogatina nas escolas. Ele ri enquanto Angélica intervém: “mais que isso, vai institucionalizar”, e Rodrigo rebate: “vou resignificar”.

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