Thiago Amud celebra a exuberância elegante da música brasileira em ‘Enseada Perdida’
Se você recebesse a confirmação de que ninguém menos que Chico Buarque e Caetano Veloso gravariam composições suas, com você no comando das gravações, o que faria? Thiago Amud fez a única coisa possível. Transformou a oportunidade em um novo disco, Enseada Perdida, seu quinto, lançado hoje pela gravadora Rocinante em todas as plataformas.
Quem conseguiu a façanha foi Zeca Veloso, que fez o frevo Cidade Possessa chegar até Chico Buarque e mostrou Cantiga de Ninar o Mar a Caetano, seu pai. Com os dois gigantes interessados, Thiago foi costurando as canções que tinha para chegar ao álbum, que traz uma unidade interessante, a despeito da diversidade de vozes e estilos que percorre.
“Não são canções que compus ao longo de um tempo curto, algumas delas já existiam há mais de ano quando comecei a fazer o disco, outras foram compostas mais recentemente, mas algumas coisas estavam na minha cabeça, coisas de ordem muito pessoal, muito íntima”, conta Amud. Essa nova leva de canções é feita principalmente no período de sua volta ao Rio de Janeiro, sua cidade natal, após ter passado três anos em Belo Horizonte, para onde foi durante a pandemia de Covid-19.
“Ainda estou reaprendendo a viver na cidade, e essa volta para o Rio de Janeiro me desafiou, tem me desafiado a reencontrar com coisas do meu passado, da minha história, da minha família, da minha formação. Então, nesse sentido, esse talvez seja o meu álbum mais íntimo, talvez o mais lírico, em contraposição a uma coisa mais épica”, diz Thiago, se referindo à opulência sonora de seus primeiros álbuns.
Enseada Perdida se relaciona mais com seu disco anterior, São, gravado com uma banda mais enxuta e com arranjos mais minimalistas. O novo trabalho não pode ser chamado exatamente de minimalista, mesmo que tanto as composições como os arranjos sejam bastante sintéticos. Nesse sentido, o novo trabalho se alinha a uma tradição bossa-novística, não pensando a bossa nova como estilo musical, mas como um procedimento artístico de síntese do samba.
Podemos usar como exemplo desse raciocínio a faixa de abertura. Baía de Janeiro é um samba enredo com uma narrativa que parte dos conflitos que estão nas origens da cidade de São Sebastião, com tamoios e temiminós e o líder guerreiro Araribóia, e desfila pelo tempo até projetar um futuro utópico onde “Um dia o sangue da refinaria/Deve coagular/Um dia o mangue abraçará a bacia/Do Rio Jequiá/Golfinhos serão mais de trinta/Da Ilha até Guapimirim”.
Mesmo ao conservar toda a estrutura de um samba enredo moderno e ao trazer uma percussão bastante rica, a cargo do Mestre Dudu, o arranjo como um todo é contido, levado mais pelas cordas — violões de seis e sete cordas, cavaco, banjo –, pelo coro e pelas quatro flautas e três saxofones (alto, tenor e barítono), o que faz com que o desfile transcorra de forma mais suave sem perder a tão necessária polirritmia.
É interessante como ele concatena dois universos líricos bem distintos no álbum. Há um mais narrativo e exterior. Ele está em Baía de Janeiro, no frevo gravado pelo Chico e em Penteu, com a letra escrita por Amud a partir da personagem reacionária da tragédia grega As Bacantes, de Eurípedes. Penteu, nesse caso, funciona como símbolo da ascensão da direita reacionária mundo afora e América acima.
Já o outro trata da busca daquilo que é mais dionisíaco, representado por canções como Dela, Orgia, O Raio.
A riqueza do disco está justamente como esses dois mundos se amalgamam em belos arranjos para diferentes gêneros, que vão dos já citados samba enredo e frevo até ramunha, toada, rock e o cubano dansón. E também em como Amud vai construindo essas canções. Ele parte de voz e violão e, depois, em um segundo momento, senta e escreve os arranjos no Sibelius, um programa de notação musical. “Isso me colocaria perto daquilo que se convencionou chamar, de um modo problemático, de música clássica, do músico erudito”, diz.
Durante as gravações, cada canção ganhou arranjos próprios, com vozes, metais e cordas. Já as bases foram gravadas por dois núcleos de músicos, com a produção de Alê Siqueira. O primeiro tem o baixista Bruno Aguiar, o percussionista Luizinho do Jêje e o pianista Marcelo Galter. Já o segundo traz Elísio Freitas na guitarra, Vovô Bebê no baixo e Lourenço Vasconcellos na bateria. Tudo com o violão de Amud ao centro e uma série de convidados ilustres como Sérgio Krakowski no pandeiro, Claudia Castelo Branco no piano preparado e Joana Queiroz no clarinete, só pra citar alguns.
Quase todas as canções do álbum são de Amud, mas algumas parcerias dão um sabor especial para o disco. É o caso da melodia amazônica que Luiza Brina traz para a letra de Oração à Cobra Grande ou da música intrincada de Penteu, composta por Sylvio Fraga.
De certa maneira, ouvir esse conjunto de canções de Enseada Perdida é mergulhar na riqueza oceânica da música brasileira e e se deixar levar por um lirismo muito particular, que discute o mundo contemporâneo olhando para passado e presente, para o íntimo e o político.