Trump e o Brasil democrático
Hoje é o primeiro dia do segundo mandato de quatro anos de Donald J. Trump na presidência dos Estados Unidos. Como é que a gente lida com isso? O Partido Democrata tomou, coletivamente, uma decisão. Vai deixá-lo começar seu governo sem grandes obstruções. Isto quer dizer o seguinte: os indicados aos ministérios e agências de regulamentação deverão ser aprovados sem muito atrito.
Vejam, tem uns nomes bem esquisitos, tá? O indicado para o Ministério da Saúde é Robert Kennedy Jr, que promove abertamente desinformação sobre vacinas. É um negacionista. O cara é completamente pirado e quem diz isso são seus irmãos, sua família toda. Crescer com o pai e o tio vítimas de assassinatos políticos brutais não deve ser fácil, mesmo. Mas este é um completamente fora do eixo.
O secretário de Defesa é Pete Hegseth, cujo grande mérito é que era comentarista da FoxNews. Quem vai cuidar da seguridade social, Medicare e Medicaid, é outra estrela da televisão, o doutor Mehmet Oz. Ele tem um daqueles programas com plateia, cheio de casos meio sensacionalistas de meio de tarde. A procuradora-geral da República, que tem um papel nos Estados Unidos que se mistura com o do ministério da Justiça, é Pam Bondi, que ocupava o cargo equivalente na Flórida. É uma Barbie. Trump gosta de estar cercado por louras. Ela foi advogada de Trump. Tinha a missão de investigar Trump, na Flórida, mas não o fez ao receber uma doação do presidente.
Lá nos Estados Unidos, o Senado faz uma sabatina de cada ministro e precisa aprová-los. E os democratas tomaram a decisão de topar a turma. Seu princípio é o seguinte: Donald Trump foi eleito pelo Colégio Eleitoral mas também pelo voto popular. Os eleitores americanos não fizeram só isso. Também deram maioria para o Partido Republicano na Câmara e no Senado.
É importante fazer um contraste, também. Os trompistas gritaram fraude eleitoral, invadiram o Capitólio para impedir que Joe Biden fosse reconhecido presidente eleito. Trump não estava lá para dar posse a Biden. Então os democratas escolheram fazer o contrário. Reconheceram a vitória de Trump e não foi só Joe Biden que estava na posse. Também estavam lá os dois ex-presidentes democratas vivos, Barack Obama e Bill Clinton. Com toda pompa e circunstância.
O ponto aqui é um, fundamentalmente: reconhecer o desejo popular.
Mas e a partir daí? Os ministros que Trump deseja, por mais bizarros que sejam, serão reconhecidos. Foi dada a posse ao novo presidente como se ele fosse um presidente normal. Ele não é um presidente normal, mas o mais importante é ressaltar o contraste entre como uns tratam a democracia e como outros não tratam.
Mas, de novo, e a partir daí? O que pensa e o que pretende fazer o Partido Democrata? Porque, vejam, os democratas tinham certeza de que seria muito difícil para Trump vencer. A elite do jornalismo político americano acreditava que seria muito difícil. Aí aconteceu o contrário. Aí aconteceu o susto. Uma vitória incontestável.
Aqui no Brasil, gente demais está agindo como os democratas agiam lá. O problema se resume a desinformação. O cientista político Steven Levitsky, autor de Como as Democracias Morrem, resumiu a coisa ao seguinte: os americanos acharam o preço dos ovos mais importante do que a democracia. Pode ser.
Mas tem lição pra a gente aprender. Lições importantes.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Turma, vem cá. Eu acho que a esquerda está cometendo alguns erros graves tanto táticos quanto mesmo de compreensão do problema oferecido pela extrema direita. O episódio da semana passada, a Crise do PIX, foi um dos mais evidentes a respeito disso. Esta vai ser a conversa dominante, aqui, nos próximos dois anos. Porque a democracia brasileira segue em risco, como a americana também. Não é uma conversa popular. A maior parte dos veículos jornalísticos digitais vão pruma ponta ou outra. Uns dizem que o governo está certo em tudo e tentam ficar explicando o fenômeno do pobre de direita. Outros são apologistas do bolsonarismo. E o que a maioria das pessoas quer é ouvir a reafirmação de suas crenças. Os algoritmos empurram todos para este lado da busca do conforto, sabe? Aquele quentinho do eles são o mal, nós o bem. O que a gente faz aqui não é aquilo que os algoritmos gostam mais. A gente questiona e vamos continuar questionando. Vamos continuar tentando entender. E precisamos da sua assinatura. Se você considera que o que fazemos é importante, precisamos do seu apoio. Assine o Meio.
E este? Este aqui é o Ponto de Partida.
De todas as ameaças de Donald Trump, incluindo coisas como invadir a Dinamarca, o Canadá e o Panamá no mesmo mandato, uma é de dar medo real. A de expulsar dos Estados Unidos todos os imigrantes ilegais. É muito importante a gente entender do que ele está falando concretamente. O governo americano trabalha com o número de doze milhões de pessoas.
Como é que se expulsa doze milhões de pessoas de um país? Bem, primeiro é preciso localizá-las. Como se faz isso? Com denúncias. Vizinhos vão denunciar, familiares vão denunciar, professores na escola, colegas de trabalho. Vai ser preciso estimular uma máquina de denúncias. Aí a polícia vai bater à porta dessas milhões de pessoas. “Junte todas suas coisas e venha com a gente agora.” Alguns têm filhos americanos. Alguns não falam a língua de seus países originais, vieram tão jovens que sequer sabem o que é ser de outro país.
Mas não importa. “Junte todas suas coisas e venha com a gente agora.” Mas venha pra onde? Porque cada pessoa precisará passar por um processo burocrático. Checar documentação, por exemplo. Ter certeza de que é ilegal mesmo, afinal vai haver falsas acusações. Então será preciso levar esses milhões para algum espaço onde possam ser concentradas.
Toda essa descrição desde o processo de denúncia até o destino das pessoas é a descrição da Alemanha nazista. A única diferença é que no fim as pessoas serão extraditadas em massa. De resto é igual. Se este governo cumprir sua promessa, vai ser muito, muito barra pesada. Fascismo no talo da definição.
Mas e aí? Digamos que Donald Trump não tenha sucesso em transformar os Estados Unidos numa grande plutocracia fascista e, daqui a quatro anos, haverá eleição. De um lado, muito provavelmente, o vice-presidente J. D. Vance, que aliás é ótimo escritor, vai ser candidato. Do outro estarão os democratas. Como eles ganham?
Uma alternativa é seguir insistindo na ideia de que os americanos estão sendo desinformados pelas redes sociais. Quase nenhum democrata repete mais isso. Porque o principal efeito das redes sociais é o de polarizar, polarizar com intensidade. É o de apagar o centro. O meio. O de eliminar vozes moderadas. Seu efeito de desinformação é bastante menor.
Muita gente aqui no Brasil ainda repete que a Cambridge Analítica era uma máquina poderosa de desinformação. A Cambridge Analytica não manipulava eleitores. Ali pelos idos de 2016, a empresa vendeu para inúmeras campanhas políticas a promessa de que conseguia manipular psicologicamente as pessoas. Era estelionato. Os manipulados eram seus clientes que caíam nessa. Mas isto só ficou claro com as pesquisas sobre o tema feitas nos anos seguintes. Deu-se de barato, também, que manipulação russa teve efeito na eleição de Donald Trump para a presidência em 2016. A tentativa de manipulação houve. Mas os cientistas políticos que se debruçaram sobre a questão, nos anos seguintes, não conseguiram estabelecer elo entre ação e consequência. Trump venceu porque os eleitores o escolheram.
O problema da desinformação existe. Mas quem presta atenção nos estudos a este respeito sabem que desinformação é mais um sintoma do que a causa do problema. As pessoas que acreditam e repassam desinformação já estão convencidas. Aqui no Brasil, gente demais está achando que, num mundo sem mentiras, Bolsonaro e Trump não teriam voto. O problema não é esse. O problema é que a direita está mais em contato com a vida, os dramas e os valores das classes médias baixas do que os progressistas. É disso que a gente não consegue fugir.
Identitarismo, olhar de cima pra baixo, desprezo. Tudo isso entra na conta. É hora de fazer um mergulho profundo para ouvir motoristas de Uber, feirantes, donos de padaria, gente que toca negócios e batalha na vida muitas, muitas horas por dia nas periferias urbanas. É hora de olhar para essas pessoas com empatia, com respeito. Tanto aqui quanto lá, metade do país vota em líderes antidemocráticos. Para reverter este processo só existe um caminho. Atrair uma quantidade grande destes eleitores para outros candidatos.
Vai acontecer quando alguém for capaz de desenhar uma possibilidade de país que interesse a elas. Prometer o que não estão procurando não vai mudar o voto de ninguém. De novo: democratas e jornalistas, nos Estados Unidos, não viram essa vitória de Trump se desenhando na frente deles. Liam pesquisas, conversavam entre si, concordavam em tudo. E não viram o trem vindo a seu encontro. É hora de se perguntar se não está acontecendo o mesmo aqui. Os trezentos milhões de views do Nikolas Ferreira deviam ser sinal disso.