BBB: Big Brother e Bauman
O cortejo seguiu até ela passar por aquela porta de onde não voltaria mais. Um grupo de homens e mulheres choravam desconsolados e incrédulos de que não contariam mais com as conversas, o carinho e a companhia daquela senhora que, por um tempo, fez parte de uma fase importante da vida de cada uma delas. Todos voltavam para dentro da casa, onde, relembrando os bons momentos em que passaram juntos, buscavam se conformar e acreditar que aquela que se foi estaria numa situação melhor ao lado de seus entes queridos. Afinal, a vida continua. A cena descrita poderia ser muito bem o momento de despedida de uma família ao lidar com a morte de um de seus membros. Mas, na verdade, é apenas o resumo do que aconteceu após a eliminação de Naiá no Big Brother Brasil 9.
Forte e visivelmente inspirado no clássico de George Orwell, o livro 1984, o reality show de maior sucesso no país começa sua edição comemorativa de 25 anos na próxima segunda-feira. Mas, ao contrário da figura do Grande Irmão (Big Brother), que mantém toda a população sob controle, impedindo a fuga de qualquer desertor daquele modelo político, o programa de origem holandesa realizado em diversos países ao redor do mundo tem o objetivo oposto, de expulsar da “casa mais vigiada do Brasil” pelo menos um participante a cada semana.
Criticado anos a fio por uma parcela significativa da população, que via no formato apenas um mix deletério de futilidade e entretenimento vazio, programas baseados em reality se tornaram cada vez mais populares no Brasil e no mundo, ganhando diferentes versões e plataformas, entre eles, A Fazenda, na TV Record, e o The Circle, muito conhecido na Netflix, além do próprio BBB, na Globo. Mas, diferentemente do que pode sugerir o senso comum, esse show também pode ser estudado dentro das ciências humanas, como fez o sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
Em Medo Líquido, Bauman defende que o dia do Paredão, quando um brother ou uma sister é eliminada do programa, é extraordinário para muitos por três motivos, dependendo do ponto de vista: revelação do destino, que culmina na saída de alguém do jogo; libertação, causada pela expulsão inevitável; e absolvição, quando os erros cometidos são perdoados.
Exclusão como morte
Os contos morais de outras épocas tinham como tema as recompensas reservadas aos virtuosos e as punições esperadas aos pecadores. Mas, no mundo líquido pós-moderno, programas como o BBB trazem outras verdades aos participantes e seu público, como a punição como regra e a recompensa, uma exceção. Esses novos contos falam da iminência inescapável da eliminação, na qual os humanos são quase impotentes na busca por fugir desse destino. Bauman, então, conclui que os contos morais de nosso tempo “são ensaios gerais diários da morte travestida de exclusão social, na esperança de que, antes que ela chegue em sua nudez, nós nos acostumemos com sua banalidade”.
De acordo com o sociólogo, o “medo original”, ou seja, o medo da morte é uma ideia inata que compartilhamos com os outros animais graças ao instinto de sobrevivência que auxiliou as espécies sobreviventes ao longo da evolução. Mas, o ser humano é o único animal que tem consciência de que vai morrer. Assim, temos a tarefa de sobreviver com o conhecimento de que inevitavelmente não escaparemos dessa destinação fatal.
“O medo primal da morte talvez seja o protótipo ou arquétipo de todos os medos – o medo definitivo de que todos os outros extraem seu significado”, argumenta. Para ele, “os perigos são concebidos como ‘ameaças’ e derivam seu poder de amedrontar do metaperigo da morte”, ainda que sejam evitáveis, prevenidos ou indefinidamente adiados.
Função da cultura
Tentando dar um jeito para a morte — assim como fazemos para todo o resto — as culturas humanas podem ser compreendidas como mecanismos engenhosos para tornar a vida suportável, mesmo sabendo que um dia ela irremediavelmente cessará. Uma das tentativas mais comuns e efetivas na cultura para driblar o óbito é a disseminação da ideia de que este não é o fim de tudo, mas apenas uma passagem de um mundo para o outro. Seja uma ideia mais ligada ao Espiritismo, de reencarnação, ou outras variações de ressurreição ligadas às vertentes do Cristianismo, por exemplo, essas tradições oferecem uma ideia — ou até um conforto — para o desespero provocado pela incerteza do porvir trazida pelo perecimento. Essas doutrinas dão ao ser humano o poder de controlar o próprio futuro, a depender da vida em que levam na Terra, recomendando viver a vida de uma maneira em que ganhe a eternidade no fim.
Um outro artifício muito usado nas sociedades é a valorização da individualidade, que está ligada a ser diferenciado dos demais, estar em destaque, ter um rosto conhecido e inconfundível, um nome lembrado. Para alcançar essa distinção, inacessível aos demais, o principal meio de atingir esse resultado é a fama, que dará ao indivíduo a possibilidade de ser lembrado pela posteridade. Essa prerrogativa foi inicialmente concedida a reis e generais, depois a estadistas e revolucionários, expandindo-se, mais tarde, a descobridores, inventores, cientistas e artistas.
Mas a fama individual não necessariamente traz a glória, muitas vezes alcançada pelo esforço coletivo em guerras. Incapazes de alcançar a imortalidade individual por meio da vida, essas pessoas que viveriam no ostracismo aceitam entrar para a história por meio da morte — a própria. Os Estados emergentes na Era Moderna precisaram de seus súditos como patriotas, prontos para o auto sacrifício pela ideia da sobrevivência da nação. Em tempos de recrutamento em massa e serviço militar universal, o medo do passamento foi revertido em mobilização patriótica das massas e defesa da causa nacional.
Desconstrução e banalização
Outra estratégia cultural identificada por Bauman, que segundo ele tem ganhado cada vez mais força na sociedade líquido-moderna consumista, é a “marginalização das preocupações” com o objetivo de desvalorizar tudo que seja durável, permanente, ou seja, sólido. Nessa linha, substitui-se qualquer preocupação com a imortalidade pelo momento presente. Há duas formas de se chegar a isso: a desconstrução e a banalização da morte.
Na desconstrução, não se contenta mais com o fato de uma possível causa natural, mas sim de uma explicação pormenorizada da causa post-mortem para estabelecer a origem do falecimento do corpo. A razão do falecimento é necessária, nessa lógica, para identificar como poderia ser evitada ou investir em desenvolvimento e novas pesquisas para um dia tornar-se evitável. Essa tática acaba por se tornar um mito da contingência da morte, que acaba intensificando o pavor a ela, agora presente, ainda que invisível, em todas as realizações humanas 24 horas por dia.
Já a sua banalização transforma seu confronto em um evento comum, cotidiano, transformando a vida diária em constantes encenações do momento cabal. “As representações da morte são demonstrações daquilo que o fim realmente significa”, reflete Bauman. O falecimento de alguém próximo, como o de um amigo ou parente, traz uma pista do que é esse momento que apenas o ato de morrer é um o mais próximo que podemos chegar ainda em vida, ou uma experiência de “morte de segundo grau”. Ao romper os laços de um relacionamento, a experiência também é semelhante ao de um fim, ainda que neste caso possa haver uma reconciliação. Mas, enquanto não ocorre, essa sensação de perda é compreendida pelo sociólogo como uma espécie de “morte de terceiro grau”.
A morte é banalizada quando sua versão de “terceiro grau” ocorre de maneira frequentemente repetida e facilmente reproduzida. Isso ocorre quando os vínculos humanos se tornam frágeis e sem intenção de serem fortalecidos, tornando-se muito fáceis de se desfazer em uma sociedade que se acostuma a não preservar raízes afetivas. Esses mecanismos podem ser vistos nos reality shows, nos quais o “fogo no parquinho” – ou “no feno” – acabam sendo o ingrediente essencial do entretenimento.
No final das contas, Bauman conclui, “o medo metafórico da ‘morte de segundo grau’ é o horror de ser excluído”. Na vida líquida, e com os laços humanos cada vez mais frágeis, fica muito difícil saber de que lado virá a ruptura, e assim, prever quando, e se, irá ocorrer. Todos esses medos acabam sendo permanentes em participantes de um BBB, que também são projetados e inconscientemente reconhecidos pelo público. Aliás, o objetivo dos membros do elenco costumam ser os mesmos: a fama e o dinheiro do prêmio, que possibilitaria uma “vida melhor” — ou seria uma tentativa de evitar os perigos da morte?