Ainda estamos aqui?
Viola Davis sobe ao palco do Globo de Ouro. A atriz vencedora do Oscar descobriu nas redes sociais um carinho grande do público brasileiro, bem cultivado por ela, com posts sobre o Brasil, que por sua vez aguardava ansiosamente o anúncio do prêmio de Melhor Atriz para Filmes de Drama. Alguns segundos antes, a comentarista Aline Diniz, que participava da transmissão da TNT, solta um suspiro de surpresa. Viola fala, com sotaque, o nome de Fernanda Torres e I’m Still Here, o nosso Ainda Estou Aqui.
Por toda a semana, diversos vídeos, memes, reacts e afins dominaram a internet e o Brasil fez explodir o engajamento de postagens sobre o prêmio de Torres com a maior cobertura do Globo de Ouro da história nas redes sociais. Além de Viola, Tilda Swinton, que concorria por “O Quarto ao Lado”, virou a nova queridinha dos brasileiros após sua reação de genuína alegria pela vitória da concorrente. Ela, no entanto, não tem redes sociais oficiais para receber a chuva de carinho (e o RG fake feito em seu nome).
Fernanda Torres foi a primeira atriz brasileira a vencer o Globo de Ouro. Ela também havia feito história ao ser a primeira brasileira a ganhar o Palma de Ouro, em 1986, por sua atuação em Eu Sei Que Vou Te Amar. O prêmio não garante, mas pavimenta possível indicação ao Oscar. A última vez que uma produção brasileira concorreu ao prêmio foi em 2020, quando Democracia em Vertigem, de Petra Costa, estava entre os melhores documentários. Nenhum filme exclusivamente brasileiro levou a estatueta, pois Orfeu Negro (1960), que venceu na categoria de Melhor Filme Internacional, era uma produção francesa, italiana e brasileira.
Independentemente dos próximos passos e prêmios, o filme de Walter Salles já fez história. Segundo Waldemar Dalenogare, crítico de cinema, historiador e membro da Critics Choice Association, e da Academia Brasileira de Cinema, foi a maior campanha de um filme brasileiro da história. Isso porque não basta qualidade, as obras precisam de exaustivos circuitos de divulgação, festivais e contatos. Pesou favoravelmente o fato de Walter Salles ter boas relações em Hollywood e ter conseguido promover diversas exibições do longa.
Inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o filme aborda o desaparecimento e morte do ex-deputado Rubens Paiva durante a ditadura militar e a vida de Eunice Paiva e dos filhos do casal após o sumiço do pai da família. O recorte é familiar e de um momento específico do Brasil.
No entanto, a partir das particularidades, foi possível, por conta da obra e do contexto global, chegar a uma mensagem geral de defesa da democracia e da importância de se manter a história e a memória vivas. Os números comprovam que o recado foi enviado com sucesso: foram mais de R$ 66 milhões arrecadados até o começo de janeiro, sendo o filme o maior sucesso de bilheteria do cinema nacional no pós-pandemia.
Após incontáveis minutos de aplausos em festivais internacionais, a crítica também teve reações positivas com a obra. O site Variety, dias antes do prêmio de Fernanda Torres, já havia colocado a atriz como a aposta para atuação. O portal destaca que “sua vitória pareceu ser especialmente significativa porque sua mãe, Fernanda Montenegro, foi indicada anteriormente na mesma categoria em 1999”. Na última quinta-feira (09), uma entrevista com a atriz e Selton Mello foi publicada. Já o Los Angeles Times colocou a vitória da atriz como “a única reviravolta da noite”. Por sua vez, a atriz Jamie Lee Curtis publicou um story com um teaser do filme e o classificou como “uma obra de arte”. No Letterboxd, entre os 10 filmes mais bem avaliados do ano passado, Ainda Estou Aqui apareceu em segundo lugar, apenas atrás de Duna Parte 2.
Com o Brasil em destaque, o que fica de lição para as próximas produções do cinema nacional que tentarem reconhecimento internacional? E o quanto a arte pode elevar o nome do país? Existe um conceito fundamental para embasar a discussão nesse caso: o soft power.
Soft power
Joseph Nye, cientista político e ex-secretário assistente de Defesa para Assuntos de Segurança Internacional dos Estados Unidos, cunhou o termo soft power para falar sobre a habilidade de um país influenciar outros por meio de atração cultural em vez da imposição militar ou econômica. Exemplos claros de soft power são a promoção das bandas ou séries coreanas no último ano, além de Hollywood, claro.
No Brasil, os exemplos ao longo dos anos também não faltam, mas se destacam a realização da Copa do Mundo (2014) e dos Jogos Olímpicos (2016), cada qual com um grau de eficiência em manter a imagem do Brasil como positiva para o resto do mundo. É impossível, no entanto, dissociar o contexto político da época, com o início da polarização mais violenta na política, além do início da desaceleração econômica que consequentemente se tornou recessão. Apesar da tensão, a Copa do Mundo foi um sucesso esportivo, de público e de atração de turistas. Mais de 1 milhão de estrangeiros vieram ao Brasil para o torneio. Pesquisa do Ministério do Turismo à época aponta que 95% pretendiam voltar ao país. Nas Olimpíadas, o recorde de turistas foi batido, mas a crise econômica era tanta que, pela primeira vez ,um país-sede teve recessão no ano que o megaevento ocorreu.
Com isso posto, o que pode ser considerado um elemento de soft power brasileiro na atualidade? Para Caio Graco, professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, “o Brasil não possui capacidade orçamentária nem tecnológica para se impor através do poder militar como outras superpotências. Entretanto, o Brasil possui outros recursos de poder que justificam o seu destaque e que são de soft power, ele possui uma boa imagem com os outros países pela cultura e pelo povo brasileiro”. No entanto, o soft power brasileiro é apenas o 31º mais bem-sucedido no mundo, de acordo com ranking da Brand Finance. Pesa favoravelmente o fato do país ser associado à “diversão” e ainda ser considerado “líder em esportes”.
Para Eduardo Chaves, Diretor Geral da Brand Finance no Brasil, “a música, a dança, a comida e o modo de vida do Brasil são vistos como vibrantes, alegres e enérgicos para pessoas de outros países. A paixão pelo futebol e os eventos culturais, como o Carnaval, podem ser destacados como aspectos positivos da cultura”. No entanto, o Brasil se destaca muito em categorias que contam pouco para a classificação e fica em posições baixas em avaliações de Educação e Ciência (58º lugar) ou Negócios e Comércio (41º lugar). Desde 2020, o Brasil subiu 10 pontos no ranking, liderado por Estados Unidos, Reino Unido e China. Segundo o próprio Nye, a Amazônia se tornou um exemplo de soft power brasileiro, por toda a sua importância e carregar uma bandeira de preservação do meio ambiente. Com a transição energética em pauta, o assunto chama a atenção não apenas pelas oportunidades econômicas.
No caso do cinema nacional, a repercussão no mundo ficou restrita a alguns poucos filmes, como Central do Brasil (1998), Cidade de Deus (2002), O Que é Isso Companheiro? (1997), Pixote, A Lei do Mais Fraco (1980), O Pagador de Promessas (1962) e agora Ainda Estou Aqui. Porém, no caso do mais recente sucesso, o soft power pode ser apontado não apenas na qualidade da obra em si, mas também em sua mensagem. Ao falar da ditadura militar, o filme finca a bandeira do Brasil como um país líder do Sul Global e defensor dos valores do Estado Democrático de Direito.
Exemplificou esse movimento a ligação do presidente Lula à Fernanda Torres após a premiação. No contato telefônico, Lula exaltou a vitória da atriz, “sobretudo, isso acontecer para você faltando dois dias para a gente fazer um ato em defesa da democracia”, em alusão ao evento que marcou os dois anos dos ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023. O discurso de Torres no Globo de Ouro de que “a arte pode durar pela vida, até durante momentos difíceis” em “um mundo com tanto medo”. A repercussão de eventuais indicações ao Oscar do longa pode aumentar o potencial do filme de levar o nome do Brasil para discussões globais.
Da porta para dentro, pode também, por consequência, melhorar o prestígio de outras obras nacionais a serem lançadas nos próximos anos. Pouco mais de 3% do PIB brasileiro vêm da indústria criativa, setor mais relevante para a economia do que o automobilístico, por exemplo. Mas o orçamento da Cultura para 2025, por exemplo, é de menos de 4 bilhões, apesar de liberação de R$ 16,8 bilhões para produções culturais em 2024, um recorde. Em meio ao ajuste fiscal promovido pelo Ministério da Fazenda, mais de R$ 1 bilhão de repasses da Lei Aldir Blanc foi cortado.
O sucesso de Ainda Estou Aqui no Globo de Ouro e sua possível caminhada rumo ao Oscar reafirmam a força do Brasil de projetar sua cultura, história e valores para o mundo. Contudo, para que o setor não dependa de sucessos independentes ou de diretores familiarizados com Hollywood, a conquista do espaço internacional depende de investimentos consistentes e planejados. Só assim “estaremos sempre aqui”, em destaque e mobilizando o debate.