Oitenta vezes Torquato
“Existirmos, a que será que se destina?”. Os versos que abrem a linda Cajuína, de Caetano Veloso, foram escritos para contar um encontro com o pai de Torquato Neto em Teresina, algum tempo após o seu suicídio* em 1972. Se a matéria vida era tão fina naquele momento em que o poeta piauiense — autor de algumas das canções mais emblemáticas do tropicalismo, como Geléia Geral, Margináia II e Mamãe Coragem — decidiu que, aos 28 anos, parecia impossível viver sob a ditadura militar em um dos seus momentos mais sanguinários, os ecos de sua produção não só de letrista e poeta mas de multiartista parecem ter ganho uma dimensão que atravessa o tempo.
Ler Torquato, que teria feito 80 anos em 9 de novembro do ano passado, segue de uma atualidade brutal. Talvez porque sua obra se desenvolva em uma linha de pensamento que se atualiza a antropofagia oswaldiana e faz sentido até hoje como expressão de uma estética do encontro das dimensões da fabulação popular brasileira atravessada pelo cosmopolitismo, tendo na receita de sua geléia geral as artes de vanguarda, o cinema novo e a poesia concreta.
Torquato não chegou a publicar um volume de poesia em vida. Depois de sua morte, seus poemas começaram a se materializar em publicações que juntavam seus escritos: Os Últimos Dias de Paupéria, que reunia diários, poemas e textos jornalísticos, Navilouca, o manifesto de poesia que coordenava com Wally Salomão quando morreu, os dois volumes de Torquatália, com textos e poemas e, mas recentemente, O Fato e a Coisa, único livro organizado em vida pelo poeta.
Celebrando os 80 anos desse criador múltiplo, saiu em dezembro último uma caprichada edição com uma proposta instigante: convidar poetas e artistas a reler sua obra. Organizada por Tarso de Melo e Thiago E, Só Quero Saber do Que Pode Dar Certo — Oitenta Vozes Vezes Torquato Neto, da editora Impressões de Minas, traz uma reunião de poemas dos mais diferentes estilos, dos líricos aos concretos, das colagens à poesia visual, em diálogo com os escritos e o pensamento torquatiano.
Um trunfo é reunir artistas de diferentes regiões do país e de gerações diversas. Tem obras mais visuais, como as de Lenora de Barros, Márcia Xavier, Mika, Arnaldo Antunes e Julia Rocha & Gustavo Galo, a produções mais líricas de poetas como Ledusha, Ana Martins Marques, Marcelino Freire, Ricardo Aleixo, Sergio Cohn e Micheliny Verunschk.
Além das releituras, o livro traz textos críticos, manuscritos e uma série de imagens do poeta, que atestam a sua relevância hoje e o tamanho de sua influência para além das canções que estão gravadas no inconsciente de quem ama a música brasileira.
* Se você está com pensamentos suicidas, procure o CVV pelo telefone no 188, sem custo de ligação e disponível 24h por dia em todo o Brasil, ou por chat e e-mail pelo site.