Quem acredita em democracia?
De todos os dados levantados pelo Datafolha publicado hoje, o mais assustador é o seguinte: quanto mais educado você é no Brasil de hoje, menor a probabilidade de você acreditar que Jair Bolsonaro quis dar um golpe de Estado em 2022. Quanto menor seu nível de educação formal, quanto menos anos de escola, mais possível que você acredite que houve uma tentativa de golpe.
Como é que a gente lida com isso? Quanto mais tempo de escola, menor a chance de convencer a pessoa de que Bolsonaro tentou um golpe.
Veja, isso tem muito a ver com nossa polarização. O que esses dados mostram, na verdade, é que quem votou em Lula acha que houve a tentativa de golpe e quem votou em Bolsonaro não acha. As duas curvas batem muito próximas. Como os mais ricos costumam ser também mais bem educados, isso é traço da desigualdade brasileira, como essa é a turma que votou em maior proporção em Bolsonaro, aí dá nisso. Se você votou em Bolsonaro, acha que ele não tentou fazer nada de errado. Isso bate com números que a pesquisa Quaest soltou na sexta-feira passada. 61% dos eleitores de Lula acreditam que houve uma tentativa de golpe. Apenas 39% dos eleitores de Bolsonaro acham isso.
Essa é a explicação e, com a explicação, a gente entende. Mas, ao mesmo tempo, se abre esse mistério com o qual precisamos lidar. A pessoa faz escola até o último ano do ensino médio, faz um curso universitário, e ainda assim ela se torna impermeável aos fatos. Porque, veja, são fatos. São quase novecentas páginas do inquérito da Polícia Federal, uma investigação de dois anos. A gente não cansa de dizer, né? Eles têm áudios trocados pelos militares, varias mensagens de WhatsApp trocadas. Coisas que vieram direto dos celulares dos investigados. Está lá. No telefone dos caras. Tem plano que foi impresso dentro do Palácio do Planalto, e isso quer dizer que foi registrado. Dá pra fazer cópia. Tem depoimentos, gente. Pessoas que foram lá à polícia e falaram elas próprias o que viram e ouviram. Isso inclui um dos principais envolvidos no plano, o tenente coronel Mauro Cid. Inclui, também, os comandantes do Exército e da Aeronáutica no tempo.
Quem fez faculdade, é estudado, e não acredita que houve uma tentativa de golpe de Estado, não acredita se baseando em quê? São pessoas que se descolaram tanto do mundo real que não têm qualquer contato com a imprensa? Não consomem jornalismo? Ou consomem só que acham que é tudo Globolixo, tudo comunista, tudo uma grande conspiração para falar mal da direita? Dia desses, um comentarista no Instagram disse que queria ler com os próprios olhos esse tal relatório, que não queria o intermédio da imprensa esquerdista. Onde está, ele perguntava. Está a um Google de distância. O documento é público. Está aqui no nosso site, no Meio, mas está também em trocentos outros lugares da internet. É um PDF. Chatinho de ler, talvez, mas dá para fazer buscas e encontrar os trechos ou as passagens que cada um desejar. Dá para jogar no sistema de inteligência artificial e fazer perguntas, pedir um resumo, questionar sobre detalhes. Ferramenta para a gente consumir documentos muito longos sem necessariamente ler tudo existem em quantidade hoje em dia.
Em teoria, ensino universitário construiria a capacidade de você avaliar criticamente informação. Avaliar por conta própria. Pois é. Obviamente não faz. Educação não constrói a capacidade de pensar criticamente. A gente vive um tempo em que nossas crenças políticas são diretamente ligadas a um senso de identidade de grupo. Se você pertence ao grupo Xis, precisa defender a ideia Y. Se é do grupo Zê, aí tem de defender anti-Y.
Sabe, as manchetes por aí, sobre essa pesquisa, são de que a defesa da democracia era feita por 79% da sociedade em 2022 e caiu dez pontos. Caiu para 69%. É verdade. Mas 69% não é ruim. Olha, dez anos atrás, em 2014, a democracia era defendida por 62%. Em 2000, quase vinte e cinco anos atrás, era o melhor regime para 47% das pessoas.
O problema é outro. O problema não é que caiu o apoio para as democracias. O problema é que as pessoas que dizem que a democracia é o melhor regime, quase 70% dos brasileiros, talvez estejam chamando por este nome, o da “democracia”, regimes bastante diferentes entre si.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Se alguém te pergunta, assim, de bate-pronto o que é uma democracia, o que você responde? Talvez a resposta mais evidente esteja ancorada no direito ao voto. Quer dizer, em democracias todos temos o direito de votar. Justíssimo. Mas as pessoas votam na Venezuela e votavam no Iraque de Saddam Hussein. Quer dizer, o ato de votar não define se um determinado regime é uma democracia. Então vamos requintar um pouquinho as coisas, aqui.
É preciso ter direito a voto, mas é preciso que todos os que disputam eleições possam se eleger. Quer dizer, se a oposição não tem chance de ganhar nunca, democracia não é. Ou seja, eleições livres e justas. Todos são livres para se candidatar e votar, todos têm a chance de chegar ao poder. A partir daí, a gente deriva uma outra ideia. Uma ideia fundamental do espírito democrático. Você, você aí: você tem espírito democrático?
O teste é o seguinte: qual o nível de tolerância para quem tem ideias bem diferentes das suas? Ser democrata quer dizer reconhecer a legitimidade do outro lado. Se você é uma pessoa de direita, acha perfeitamente normal que alguém seja de esquerda. Você não trata pessoas de esquerda como inimigas. E, se a esquerda chega ao poder, não é o fim do mundo. Está tudo certo. Claro que o oposto é perfeitamente verdade. Se você é de esquerda, acha que está tudo certo ser de direita.
Tem exceção? Claro que tem. A exceção é não ficar confortável com a chegada ao poder de quem é antidemocrático.
O que nos traz esse espírito democrático de ver legitimidade no outro lado é uma certa capacidade de introspecção. É a capacidade de entender de onde vêm nossas próprias ideias. De compreender que somos seres ideológicos, de perceber que construímos nossas opiniões com base em premissas que podem ser, sim, contestadas. Está na percepção de que podemos estar errados. Quanto maior nossa capacidade de mudar de ideia aqui e ali perante bons argumentos, quanto maior nossa compreensão de como construímos nossas ideias, também maior será nossa capacidade de respeitar quem construiu seguindo premissas diferentes. É, essencialmente, um exercício de empatia. Democracia é o regime da empatia. Da possibilidade de se colocar no lugar do outro. De respeitar que o outro tenha os mesmos direitos que nós. Rigorosamente os mesmos direitos.
Por isso mesmo, quem tem mais dificuldades com democracia é quem é mais intransigente com suas ideias, quem é menos intolerante com quem pensa diferentemente. Com quem é diferente. A raiz da crise democrática que vivemos está aí: na quantidade de pessoas que consideram intolerável alguém do outro lado existir, quanto mais chegar ao poder.
Aí a gente olha esse número. Ele parece grande, não é? 69% dos brasileiros acham que democracia é o melhor regime. Mas quantos desses aí defendem que o diferente possa existir, coabitar, participar da construção do que será o Brasil? Quantos aí estão perfeitamente confortáveis com a existência de muita gente que goste de música sertaneja, muitos que sejam evangélicos tementes a Deus? No show do Caetano e da Bethânia, teve quem vaiasse o louvor evangélico que faz parte do setlist. E provavelmente todos ali, no público, se consideram democratas puro-sangues.
Veja, o problema maior não está na esquerda. A intolerância maior com quem é diferente, hoje, neste Brasil aqui em que vivemos, está na direita. Jair Bolsonaro foi eleito dizendo que a esquerda não devia nunca mais presidir o Brasil. Ele falava dos “vermelhos” com asco e, ainda assim, muita gente votou nele.
Meu ponto aqui é que o problema de intolerância é com todos nós. Está em toda parte. Talvez em níveis distintos, mas está. E, não, a ideia democrática de tolerância não é uma utopia, um sonho com um mundo cor de rosa todo perfeitinho. A tolerância com o diferente é um esforço mental, um exercício continuado. Ser democrata dá trabalho. E fazemos o trabalho porque vale a pena. Quando somos democratas e conseguimos manter viva a democracia, todos nós temos a chance de convencer nossos pares. Todos temos nossos direitos respeitados. Todos podemos, coletivamente, trabalhar para construir um país melhor.
Desejar viver numa sociedade em que uma parte das pessoas não tem voz nunca, no fim das contas, é isto sim um pesadelo. Até porque, um dia, quem dita o que pode ser pensado acaba por se virar contra a gente.