O Meio utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar sua experiência. Ao navegar você concorda com tais termos. Saiba mais.
Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

10 anos de verdade debaixo do tapete

Hoje faz 10 anos que a Comissão Nacional da Verdade apresentou seu relatório final. Uma década em que a sociedade civil se mobilizou, investigou, documentou e relatou a barbárie da ditadura militar que começou em 1964 e perdurou até 1985.

PUBLICIDADE

A comissão foi um órgão oficial do governo Dilma Rousseff, ela própria torturada na ditadura. Ele funcionou de 2012 a 2014 e produziu um relatório final de quase mil páginas. Mas vale lembrar o esforço coletivo que antecedeu a CNV pra gente entender a importância da própria comissão e do relatório que aniversaria hoje.

Antes mesmo de a ditadura acabar, ainda em 1979, quando a Lei de Anistia foi sancionada, membros de variadas denominações religiosas, imaginem só, se uniram para iniciar um processo de documentação sobre os desaparecidos, mortos e torturados pelos militares. O arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor Jaime Wright criaram uma equipe e se debruçaram sobre 707 casos, que envolviam mais de 7 mil acusados em processos criminais e 10 mil em inquéritos policiais, em um total de quase 1 milhão de páginas. Essa iniciativa resultou no Brasil: Nunca Mais, um material histórico de profunda importância na preservação da memória e na luta por direitos humanos no Brasil.

Pulando 10 anos, em 1995, foi publicado o Dossiê de mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964. Esse documento foi resultado da batalha de familiares desde a Lei de Anistia para sistematizar informações disponíveis no Brasil:nunca mais, nos acervos dos IMLs e delegacias e em acervos privados de militares e ex-presos políticos. Ali, foram apurados 339 casos de assassinatos e desaparecimentos, no Brasil e no exterior, durante os anos de perseguição política. Também em 95 foi criada a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e o trabalho dessa comissão, que foi suspensa no governo Bolsonaro e demorou pra ser reativada no atual governo Lula, foi publicado primeiramente em 2007. Houve outras iniciativas e movimentos fundamentais que culminaram na criação da Comissão Nacional da Verdade. Mas o marco histórico — e político — que ela representa é incomparável.

Cá entre nós, está mais do que na hora de o governo Lula aproveitar essa oportunidade, revisitar o relatório final da comissão e implementar algumas das recomendações que ele faz.
A Comissão Nacional da Verdade foi instituída por lei em 2011, com base em quatro deveres dos Estados, segundo o que regulam as normas e convenções internacionais de direitos humanos. O primeiro dever é o da memória e da verdade. É o de se preservar a história e revelá-la em sua integridade para que ela não se repita. Outro dever é o da reparação. Ela pode se dar de forma material, com indenizações, ou imaterial, com esforço didático para que se reconheçam os abusos. O terceiro dever é o da Justiça, o de se processar e punir os assassinos e torturadores. Por fim, o da transformação das instituições, particularmente as Forças Armadas e o Judiciário.

O relatório final da CNV certamente colaborou para que o Estado brasileiro cumprisse seu primeiro dever. Com a profusão de documentos e depoimentos colhidos, temos ali um memorial dos horrores da ditadura. O capítulo 10, de violência sexual e de gênero e contra crianças e adolescentes, narra torturas que resultaram em abortos de mulheres grávidas, narra estupros de mulheres sendo cometidos diante de seu marido. Aqui um episódio muito dolorido e simbólico do tipo de violência: uma mulher foi presa um mês depois de dar à luz. O torturador disse: “Cortar esse leitinho aí“, e forçou uma injeção para que ela não produzisse mais leite, que ele dizia que “atrapalhava” ele. Olha a crueldade disso.

Pois o relatório documenta tudo isso e muito mais. O dever da reparação vem sendo cumprido pelo Estado brasileiro a conta-gotas, infelizmente. Financeiramente algo foi feito. Simbolicamente, quase nada. Porque o primeiro passo de reparação é um reconhecimento do algoz de que ele agiu mal. E embora os governos Lula e Dilma tenham feito pedidos de desculpa simbólicos às famílias das vítimas, as Forças Armadas nunca se desculparam. Além disso, o presidente Lula vetou que seu governo fizesse esse gesto nas cerimônias de 60 anos do golpe militar este ano. Aliás, praticamente vetou qualquer cerimônia.

Hoje a gente sabe que boa parte da hesitação de Lula no enfrentamento dos militares passa pelo fato de que o golpe de Estado que ele sofreria esteve realmente muito perto de acontecer. Muito. E que ele, inclusive, era alvo de um plano de assassinato por parte desses golpistas.

Agora, a gente também sabe que o Estado brasileiro não cumpriu seus outros dois deveres — e nem seguiu 27 das 29 recomendações que o relatório final da Comissão Nacional da Verdade faz. Não se fez Justiça, não se puniram os torturadores e assassinos. O relatório questiona essa interpretação da Lei de Anistia que assegura a impunidade dos militares. E, está muito claro, não se promoveu uma transformação das instituições. Os militares seguem sem compreender seu próprio passado, sem abraçar a causa democrática, sem fazer o processo completo de transição. E o sistema de Justiça segue com uma justiça à parte para os militares e, com relação aos civis, oferece um tratamento indigno e desumano a uma parcela grande da população, encarcerada quase aleatoriamente ou morta nas comunidades ou jogada de pontes por agentes de segurança.

Dilma não teve condições políticas de levar adiante a implementação das recomendações, estava sob um tipo de pressão absurda. Sua coragem de bancar a criação da comissão é até hoje apontada como um dos motivos de seu enfraquecimento político, embora evidentemente não seja o único. Em seguida, Michel Temer toma posse e reempodera os militares no Planalto. Em 2018, vem o tuíte do general Villas Boas, pressionando o STF na véspera da votação do habeas corpus de Lula. Pula mais uns meses, Jair Bolsonaro é eleito e oficializa um governo militar. Vem a tentativa de golpe de 2022 e cá estamos, discutindo se é possível evitar que a família de um militar condenado e suspenso siga recebendo seu salário ou se os militares da Marinha são mais trabalhadores do que o brasileiro comum, como sugerido em um vídeo.

O relatório final da CNV foi entregue num 10 de dezembro, dia internacional dos Direitos Humanos. Não é coincidência. Agora seria um excelente momento para reanimá-lo e para que o presidente Lula levasse a cabo suas recomendações.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.