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Uma estrutura ousada para ‘A Construção’, de Kafka

Um dos últimos textos escritos pelo mestre checo Franz Kafka,  A Construção vai receber nova uma edição surpreendente não só no conteúdo quanto na forma, feita pela editora Ubu.  O Meio teve acesso ao livro que chega nos próximos dias para assinantes do Circuito Ubu e deve estar disponível para compra nas livrarias a partir no dia 16.

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Reza a lenda que A Construção foi escrita em uma única noite entre 1923 e 1924, apenas seis meses antes de sua morte. As circunstâncias de sua criação refletem o estado físico e mental do autor naquele momento – gravemente doente de tuberculose e lutando contra a angústia existencial que permeia toda sua obra. O conto, publicado postumamente em 1931, encapsula muitos dos temas recorrentes de Kafka, como alienação, paranoia e a busca frustrada por segurança em um mundo hostil.

A história gira em torno de uma criatura anônima que dedica sua existência à construção e manutenção de uma elaborada toca subterrânea. Este refúgio, projetado obsessivamente para sua proteção, acaba se transformando em um labirinto kafkiano de inseguranças e medos irracionais. O protagonista oscila constantemente entre o orgulho por sua criação e o terror paranoico de invasores imaginários, culminando na percepção de um misterioso ruído que o atormenta incessantemente.

A estrutura narrativa é marcada pelo fluxo de consciência do narrador-protagonista, criando uma atmosfera claustrofóbica e angustiante. Kafka emprega uma prosa densa e introspectiva, rica em detalhes técnicos sobre a construção da toca, que serve como metáfora para os mecanismos de defesa psicológicos do personagem. A ausência de diálogos e a narração em primeira pessoa intensificam a sensação de isolamento e paranoia crescente.

As principais reflexões trazidas pelo texto giram em torno da natureza da segurança e da impossibilidade de alcançá-la plenamente. A toca, inicialmente concebida como um refúgio inexpugnável, torna-se gradualmente uma prisão para seu criador. Kafka explora os limites entre proteção e isolamento, racionalidade e paranoia, controle e impotência diante das ameaças reais ou imaginadas do mundo exterior.

Do ponto de vista psicanalítico, a obra pode ser interpretada como uma alegoria dos mecanismos de defesa criados pela nossa psique que, paradoxalmente, acabam por aprisionar o indivíduo. O comportamento obsessivo-compulsivo do protagonista, sua fixação em detalhes técnicos e sua crescente dissociação da realidade refletem um processo de deterioração mental que pode ser lido como uma metáfora da condição humana moderna.

O caráter inconclusivo do conto — que termina abruptamente sem resolução clara — espelha a própria visão de Kafka sobre a existência humana: uma busca incessante e ultimamente fútil por segurança e significado em um universo fundamentalmente incompreensível e ameaçador.

A Construção é como uma das obras mais enigmáticas e perturbadoras do autor, oferecendo múltiplas camadas de interpretação, mas ela fica ainda mais interessante na proposta gráfica que designer Elaine Ramos, sócia da Ubu, traz para a materialidade do texto.

Na edição física, as páginas são coladas à direita, deixando apenas uma abertura na parte de cima e de baixo. A todo momento em que o protagonista está embaixo da terra, as páginas são escuras e o texto fica impossível de ler. Para conseguir ler, é preciso colocar um cartão branco entre as páginas e o texto se revela. A ideia com essa diagramação é justamente a de espelhar a angústia da escuridão que envolve a construção desse personagem-toupeira e a invasão da página pelo anteparo de papel simula a invasão fantasiada pelo narrador, me constou a designer Elaine Ramos, sócia do Ubu, e responsável pela concepção do projeto. Nos poucos momentos em que a personagem sai do subsolo, há uma inversão gráfica. As páginas se tornam branco e o texto fica legível, em preto.

Além da diagramação, o texto ganha uma nova tradução, que parte do texto não editado por Max Brod. A tradução disponível anteriormente, feita por Modesto Carone, que era o maior especialista brasileiro em Kafka, partida do texto que Brod havia alterado. A edição tem também posfácio do psicanalista Christian Dunker e imagens do manuscrito original.

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