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Golpe bolsonarista na Coreia

Tem algumas lições para o Brasil no que aconteceu durante esses últimos dois dias na Coreia do Sul. Porque o que o presidente Yoon Suk Yeol tentou fazer, com uma Lei Marcial, é exatamente o que Jair Bolsonaro queria fazer aqui, usando os instrumentos de Estado de Defesa ou Estado de Sítio. Yoon, aliás, é uma espécie de Sérgio Moro sul-coreano. Então sua história é uma realmente bastante parecida com o movimento de extrema-direita que bateu por aqui.

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A Assembleia Nacional sul-coreana deve votar esta semana ou na próxima o impeachment do presidente. A essa altura, o melhor para ele é renunciar. Mas vamos esmiuçar esse jogo todo começando por aquilo que nós não vivemos. O bolsonarismo planejou dar um golpe de Estado. Yoon foi um passo além. Ele deu o golpe. Só que o golpe não deu certo.

Quem acompanha o Ponto de Partida faz já um tempo certamente vai lembrar que algumas vezes, ainda durante o governo Bolsonaro, falei sobre como se resiste a um golpe. A ciência política já estudou muito, isso, os golpes que dão certo e os golpes que dão errado para dizer qual é a diferença entre um e o outro. O que acontece nuns para que desemboquem num novo regime, numa ditadura, e o que acontece noutros para que as democracias sobrevivam.

Golpes de Estado são truques de ilusionismo. A gente não costuma pensar neles desse jeito, mas é o que são. Essa palavra, “golpe”, ajuda a entender o processo. O líder que pretende romper com a democracia dá, literalmente, um golpe. Um lance rápido e violento de ruptura. Ele, em geral, necessita de algum tipo de apoio para demonstrar que tem força. No caso de Yoon, como seria com Bolsonaro, veio das Forças Armadas. O Exército coreano cercou a Assembleia Nacional.

Veja, isso é teatro. É uma demonstração pública de força. O objetivo simbólico é convencer a todos de que não há mais o que fazer. Fato consumado. Acabou. E, a partir daí, abre-se uma janela de tempo. Um dia, dois dias, três. Não é muito tempo. O general Olympio Mourão Filho botou os tanques na rua na madrugada de 31 de março de 1964. O Congresso Nacional declarou vaga a presidência da República na madrugada de 2 de abril. Foram dois dias. Naquele período, sob pressão de ir para um lado ou para o outro, o presidente João Goulart decidiu ir embora do país. Pronto. Golpe concluído.

É por isso que golpes são um truque de ilusionismo. É preciso convencer a maior quantidade possível de pessoas de que o poder mudou de mãos. Que o antigo regime não há mais e um novo regime está nascendo. E o prazo é exíguo. Tudo depende do gesto, do golpe com a violência certa, na proporção certa. Se não convence, ocorre o contrário. Porque o trabalho de resistir a um golpe de Estado é quebrar a ilusão de que um novo poder foi posto. Como se faz isso? População na rua. População na rua é contagiante. Qualquer um que tenha participado de passeata grande pedindo mudança sabe como, tem uma hora, começa a crescer aquela sensação de que unidos somos fortes e nada nos segura. Essa sensação se espalha por toda a sociedade e a sociedade, a população, já não acredita no ilusionista.

Foi o que aconteceu na Coreia do Sul, entre ontem e hoje. E, eu aposto, é o que teria acontecido aqui no Brasil. Nós iríamos, coletivamente, para as ruas. Encheríamos a avenida Getúlio Vargas no Rio, a avenida Paulista em São Paulo, a Praça da Liberdade em Belo Horizonte e por aí vai. No Brasil inteiro. É importante entender como se resiste a um golpe.

Mais do que isso. É importante compreender as semelhanças entre Brasil e Coreia do Sul, entre esse movimento Lava Jato de lá e de cá, até para a gente cair na real. Porque é igual. Um movimento obcecado com anticorrupção e anticomunismo que tentou instaurar um novo regime militar. Democracias ainda morrem do jeito antigo, também. E o risco está rondando o mundo.

A Coreia do Sul é um país curioso, sabe? Porque é muito diferente, mas é muito parecido com o Brasil. É muito diferente porque é um país asiático, né? Culturas muito distintas, com pesada influência de China e de Japão. Mas os caras gostam duma telenovela. Ouvem muito mais música própria do que música estrangeira, o que no mundo globalizado é raro. Nós somos iguais. País pobre nos anos 60, como nós. Muito analfabetismo. Uma longa ditadura militar. Como a gente, pois é. Uma relação muito promíscua do Estado com grandes empresários, o que gera sempre escândalos de corrupção. Político sendo corrompido pelas empresas que o Estado ajuda a financiar? Direto. Como nós. Se há uma grande diferença, e isso tem mesmo, é que os sul-coreanos conseguiram resolver o problema da educação. Lá toda criança tem acesso a educação de qualidade faz uns quarenta anos. Nós não conseguimos resolver esse problema.

Antes de ser presidente, Yoon Suk Yeol era um procurador público sul-coreano. E ele primeiro chamou a atenção quando fez uma grande investigação com foco na presidente Park Geun-hye, aliás a primeira mulher presidente do país. Ela sofreu um impeachment em 2017 e foi condenada a 25 anos de prisão por corrupção e abuso do poder. Park não era de esquerda, tá? Ela era filha do ditador Park Chung-Hee, que deu um autogolpe em 1972. Um autogolpe, aliás, que começou com ele presidente eleito decretando Lei Marcial. Exatamente o que Yoon quis fazer agora. É isso mesmo. Ele quis imitar o pai da presidente que ele próprio derrubou.

Mas não importa. Park, a filha, sofreu impeachment e Yoon virou o herói nacional do país. O presidente eleito seguinte foi Moon Jae-in, que o nomeou procurador-geral da República. E o que o cara fez? Começou a investigar o novo governo, acusando de corrupção por toda parte. Dessa vez, não conseguiu derrubar ninguém. Mas criou aquela fama de inclemente contra os corruptos, de moralmente vitorioso, e surfou a onda. Foi eleito presidente da República por um nada de diferença. Menos de 1%, país dividido. Eleição apertadíssima.

Isso é muito comum, esses tipos moralistas, anticorrupção. O método que ele usava e ainda usa contra seus adversários é dizer que são infiltrados da Coreia do Norte, perigosos agentes comunistas que desejam destruir a Coreia do Sul. No caso do ex-presidente, Moon Jae-in, é até absurdo. Moon nasceu na Coreia do Norte e veio fugido para o Sul criança, trazido por seus pais. Os caras fugiram do regime que é, possivelmente, a pior ditadura do mundo.

O governo Yoon, o atual governo, é incompetente e, claro, como não poderia deixar de ser na Coreia do Sul, corrupto. Sua mulher aceitou presentes caros em troca de favores. Sabe uma coisa, assim, ganhar joias pra dar uma facilitada? Tipo isso. A inflação disparou no seu governo e isso jogou sua popularidade para 17%. Ele é barbaramente impopular. Trocou a sede do governo sul-coreano de prédio, o que foi caro como o diabo num tempo de aperto econômico. O governo está tentando fazer mudanças nas políticas de saúde pública que levaram a uma greve de médicos que ainda está em curso. Em suma, é um governo caótico. Tipo, sabe, governo Bolsonaro?

É nesse contexto que Yoon achou que dar um golpe de Estado seria uma boa ideia. Tem uma Assembleia Nacional cada vez mais fazendo frente aos seus movimentos, tipo a Câmara dos Deputados com Rodrigo Maia na presidência quando Bolsonaro estava no Planalto. Então o presidente decidiu começar a chamar todo mundo de comunista. De agentes norte-coreanos. Já ouviram essa história, né?

Pois bem, chegamos ao momento atual. Ele decretou Lei Marcial e deu ordens para que o Exército cercasse o Congresso para proibir que os parlamentares entrassem no prédio. De noite e de madrugada, deputados foram vistos pulando as cercas para entrar. Chegamos a esse nível. A praça em frente ao Parlamento encheu com gente de toda Seul gritando slogans antigoverno. O Exército no início confrontou, mas depois achou melhor recuar. A população tirou as grades de segurança, aquelas grades de metal que encaixam umas nas outras para cercas improvisadas. A Assembleia Nacional derrubou, por unanimidade de todos os deputados que conseguiram chegar, a Lei Marcial. Quando Yoon voltou atrás na declaração, já não adiantava mais, a coisa já tinha acabado.

E agora a pressão é para que o presidente renuncie. A última vez que houve Lei Marcial, foi declarada por um general, em 1979, e o país vivia uma Ditadura Militar. Mais de quarenta anos atrás. Não adianta. O cara tentou dar um golpe. Se ele não renunciar, vai sofrer impeachment, e o impeachment pode até ser rápido. Ele não dura no cargo. Como, aqui, dificilmente Bolsonaro duraria como golpista.

Por quê? Porque nós faríamos exatamente o que os sul-coreanos fizeram. Nós iríamos pra rua. Militar pode ter tanque, pode ter arma, mas tem uma hora que a diferença entre manter a democracia e perdê-la é essa. Deixar claro o que a sociedade prefere. O que nós preferimos. O que os sul-coreanos fizeram é uma das coisas mais bonitas que a gente pode ver numa democracia. A sociedade, junta, coletivamente, numa só voz, na rua, dizendo: é isso aqui que a gente quer. Democracia é coisa que não vem de graça. A gente luta pra conseguir.

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