Quem são os militares golpistas?
Em nove de julho de 2021, o comandante da Aeronáutica deu uma entrevista muito surpreendente ao Globo. Surpreendente porque, mesmo no governo Bolsonaro, era e ainda é muito raro que comandantes de uma das três forças deem entrevistas. Eles não são transparentes e não fazem a mínima questão de sê-lo. Mas foi surpreendente, também, pela agressividade dele, do jeito que ele falou.
O contexto era o seguinte: estava em curso a CPI da Covid. Naquela semana, o senador Omar Aziz, que era presidente da comissão, havia sido bem irritado. “Os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados”, ele afirmou. “Fazia muitos anos que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo.” Pois é. Tinha muito indício de corrupção envolvendo militares. Mas, aí, os chefes militares, conjuntamente, baixaram uma nota em resposta. “Essa narrativa, afastada dos fatos, atinge as Forças Armadas de forma leviana.”
Esse ano, 2021, foi o mais difícil do governo Jair Bolsonaro. O mais tenso. Ali que começou a ficar muito claro, para quem estava acompanhando de perto, que a ideia de um golpe militar havia deixado de ser absurda. Estava retornando às possibilidades. Os militares haviam entrado de vez na política e, dependendo da eleição no ano seguinte, talvez eles forçassem a mão para não sair.
Aquela nota dura foi publicada e dois dias depois o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior falou ao Globo. “Nós sabemos que a nota foi dura, como nós achamos que devia ser”, ele falou. “É um alerta às instituições.” Aquilo tudo soava mais do que um alerta, né? Parecia ameaça. Ainda mais com o comandante da Força Aérea aparecendo dois dias depois para marcar em cima. Congressistas falam, falam coisas num tom alto, têm o dever de investigar e ampla liberdade constitucional para criticar qualquer um nas instâncias de Estado. A jornalista do Globo falou disso com o brigadeiro, que aquilo soava até como uma sutil ameaça de golpe militar. “Homem armado não ameaça. Não existe isso. Nós não vamos ficar aqui ameaçando.” Foi assim a resposta. Essa é uma das frases mais fortes do governo Bolsonaro. “Homem armado não ameaça.”
Como é que é possível ler uma frase dessas e não ler justamente uma ameaça? A nota seguida desta frase do brigadeiro Baptista Júnior foi desaguar numa escalada de tensão que teve seu pico no 7 de setembro daquele ano. De manhã, o Supremo quase foi invadido por uma matilha de caminhoneiros bolsonaristas. À tarde, o presidente disse que não obedeceria mais ordens do ministro Alexandre de Moraes num comício na Avenida Paulista, talvez o comício mais cheio de seu governo. Era aquele mar de gente com a camisa da Seleção. Foi ali que a coisa quase entornou. Os sinais de alerta começaram a piscar tão fortes que Gilberto Kassab deu meia dúzia de entrevistas dizendo que era hora de falar em impeachment e Arthur Lira sumiu por três dias no interior das Alagoas. O Congresso começou a articular loucamente e o ex-presidente Michel Temer foi chamado às pressas pra botar panos quentes na situação.
Aquela nota das Forças Armadas levou quatro assinaturas. Baptista Júnior era justamente o comandante da Aeronáutica. O da Marinha era o almirante Almir Garnier Santos; o do Exército, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. Assinava também o ministro da Defesa, o general da reserva Walter Braga Netto. Paulo Sergio havia assumido o cargo fazia pouco tempo, substituindo Edson Pujol. Pujol foi tirado porque agiu responsavelmente durante a pandemia. Bolsonaro não gostava dele. Mas ainda assim, a fama de Paulo Sérgio, o que nossas fontes nos falavam, era que ele era moderado. Era de que era um sujeito que ia agir politicamente para controlar os piores impulsos de Bolsonaro. E o alívio era esse. Ao menos o comandante do Exército, que é a mais armada das Forças, é um sujeito com alguma sensibilidade democrática. Dos outros não dava pra esperar isso.
No dia 1º de abril de 2022, Paulo Sérgio passou à reserva e assumiu como ministro da Defesa. Braga Netto precisava deixar o cargo pois seguiria como candidato a vice na chapa de Jair Bolsonaro. Foi substituído no comando do Exército por um cara com fama de mais linha dura, o general Marco Antonio Freire Gomes.
Se você perguntasse para qualquer jornalista bem informado, isso aí era o que sabíamos sobre estes personagens todos. E a gente estava lendo tudo errado. Mas, olha: tudo errado sobre quase todos eles.
A única coisa que a gente estava lendo certo é de que o risco de golpe existia. De resto, quase nada ficava em pé.
Uma das cenas mais fortes do relatório da Polícia Federal é uma reunião no gabinete do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira. Dia 14 de dezembro de 2022. Um ano e meio após a nota dos comandantes das Forças. A diferença é que Paulo Sérgio não era mais comandante do Exército, agora era ministro e, no seu lugar, estava o general Freire Gomes. Baptista Júnior e Almir Garnier ainda lideravam Aeronáutica e Marinha. E aí o Paulo Sérgio, o moderado e razoável Paulo Sérgio, põe na mesa o decreto que sustaria a eleição que já tinha acontecido. O que faz Baptista Júnior? Fica indignado.
“Esse documento prevê a não assunção do cargo pelo novo presidente eleito?”
O mesmo homem que mandou aquele “Homem armado não ameaça” agora mandava um igualmente indignado como assim esse documento diz que o sujeito que foi eleito não vai assumir como presidente?. Levantou-se, se recusou sequer a conversar. Afirmou que a Força Aérea Brasileira não admitiria um golpe de Estado e bateu a porta na cara do ministro.
Como é que a gente encaixa na mesma pessoa as duas frases? Porque ambas são frases muito claras. Muito enfáticas. Bem, deixa eu contar outra história. É de um coronel, agora, o coronel Flávio Botelho Peregrino. Um monte de jornalista, em Brasília, o conheceu e teve algum convívio com ele. Muitos repórteres conversaram muito com ele. Era o homem de comunicações do Braga Netto, primeiro como ministro, depois como candidato a vice.
E sabe o que ouvi de mais de um jornalista, colegas meus? Que o cara era bacana. Muito razoável, muito franco. Era alguém com quem o diálogo era possível. Não era um general Heleno, muito menos um Bolsonaro. Era um militar que ouvia atentamente as preocupações, que se esforçava para explicar como eles militares viam as coisas. Em essência, era alguém preocupado em construir pontes.
Em cima da mesa de quem, dentro do prédio do Partido Liberal, a Polícia Federal encontrou uma pasta chamada “Memórias Importantes”? Do Coronel Peregrino. Nesta pasta, escrito a mão, um papel com todos os detalhes das ações planejadas para o que eles batizaram “Operação 142”. É uma referência ao artigo da Constituição que cita as obrigações das Forças Armadas. Entre os itens nas anotações do coronel estão os seguintes: “interrupção do processo de transição”, “mobilização de juristas e formadores de opinião” e “enquadramento jurídico do decreto 142 (AGU e Ministério da Justiça)” Não para aí. Depois vem “anulação das eleições”, “prorrogação dos mandatos”, “substituição de todo TSE” e “preparação de novas eleições”. No fim, em destaque: “Lula não sobe a rampa.”
O cara era um golpista furibundo. Muito razoável no papo, um golpista dedicado. O que isso tudo quer dizer?
Uma última história, ouvi essa de um general da reserva. Sabe qual o general que, internamente no alto comando, tinha o discurso mais enfaticamente defensor da legalidade durante o governo Dilma? Hamilton Mourão. O mesmo que foi afastado por fazer um discurso público em defesa do golpe de 1964. E, claro, o mesmo que Bolsonaro não quis mais ao seu lado quando se candidatou a uma eleição que terminaria numa tentativa de golpe. Para fora, Mourão parecia um golpista pois fazia discursos nostálgicos sobre 64. Falou sobe a hipótese de alto-golpe numa entrevista. Mas para dentro ele falava que 64 era passado e o presente era a Constituição. Golpista, e muito golpista, era o Braga Netto, o segundo candidato a vice, que não falava nada em público e fez pose de responsável quando assumiu a segurança do Rio de Janeiro.
O mais evidente é o seguinte: os militares falam, acham que estão sendo claros, e não estão. Eles não sabem se comunicar. Eles sabem disso. Nós entrevistamos, no Central Meio, um dos generais legalistas que tiraram o alto comando do Exército do golpe. Há vários cortes dessa entrevista nas nossas redes. Ele falou isso pra gente: nós entendemos que não estamos sendo claros. Alguns militares são treinados para manipular, sim, e isso fazem direito. O coronel Peregrino manipulou o tempo todo. Mas quando querem ser claros, não conseguem. Eles não sabem se explicar para civis e nós não sabemos compreendê-los. A gente não entende o jeito que eles pensam, a maneira como organizam seus raciocínios. O brigadeiro Baptista Júnior estava dizendo que eles não estavam ameaçando e ele não estava mesmo. E o fez de um jeito que parecia uma ameaça clara.
Militares são corporativistas. Parte do problema está aí. Eles não conseguem não sê-lo. Num país particularmente corporativista como o Brasil, os militares são mais corporativistas até que juiz. Juiz fala mal um do outro. Militar? Jamais. Um militar defende o outro sempre e defendem a corporação até o fim. Parte da defesa que fazem do golpe de 64 vem disso: admitir que as Forças Armadas tenham traído o país é admitir que o Exército já errou muito, que já cometeu crimes sórdidos, que permitiu o sadismo em suas entranhas. Não fazem. Mesmo os que se enojam do passado consideram que é problema interno que resolvem lá dentro, e isto também faz parte da dificuldade de comunicação. Todos falam uma coisa lá dentro e outra diferente aqui fora. E isso é um problemaço porque tem um bando de golpista lá dentro e todos acobertam. Até os legalistas acobertam.
Agora, nós aqui de fora temos o trabalho de nos esforçar para compreender melhor essa instituição. O trabalho tem de vir deles, de se abrirem mais, mas tem de vir de nós, de buscar compreender as Forças Armadas de uma forma que não seja maniqueísta. O Brasil é grande demais, um terço de seu território é ocupado por uma floresta gigante que está no centro do debate da política global e abarca um pesado tráfico de drogas e de armas lá dentro. Nós precisamos de Forças Armadas. Mas precisamos de militares que compreendam seu papel constitucional.
O discurso externo de um militar não é, necessariamente, reflexo de sua postura perante a lei. Tem os legalistas que parecem perigosos e os golpistas que parecem legalistas. Quanto mais fundo entramos neste mundo fardado, mais desorientador é o jogo de espelhos. Por isso mesmo, tem gente demais na imprensa dizendo que é tudo igual. Não é. O trabalho de descobrir quem é quem é que não tem nada de trivial. Só que, até porque tem muito golpista lá dentro, a gente precisa começar a entender quem é quem.