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A serviço da repressão: livro destrincha papel do Grupo Folha na ditadura

Dezoito meses de pesquisa historiográfica baseada em fontes documentais e depoimentos de 44 pessoas, entre elas vítimas, testemunhas e agentes da ditadura militar, resultaram no livro A Serviço Da Repressão: Grupo Folha E Violações De Direitos Na Ditadura (Editora Mórula), que chegou às livrarias na última quarta-feira. Em 244 páginas, a obra mostra o apoio do Grupo Folha ao regime e à repressão, a participação de militares e policiais na estrutura da empresa, como trabalhadores foram presos, perseguidos ou demitidos ilegalmente. Uma das formas de colaboração era fornecer veículos, como caminhões de distribuição do jornal, para uso dos agentes da ditadura. Um desses empréstimos, uma ação orquestrada pelos militares resultou na morte de três militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN).

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O trabalho a 12 mãos, da jornalista e historiadora Ana Paula Goulart Ribeiro, da historiadora Amanda Romanelli, do historiador André Bonsanto, da jornalista Flora Daemon, da jornalista Joëlle Rouchou, e do historiador Lucas Pedretti, está longe de ser uma pesquisa acadêmica tradicional. Foi encomendado pelo Ministério Público Federal e financiado com parte dos recursos pagos pela Volkswagen no Termo de Ajustamento de Conduta de 2020 para promoção de direitos humanos pela participação da empresa de origem alemã na ditadura militar brasileira. Flora, que ficou encarregada de fazer a maior parte das entrevistas, conversou com o Meio sobre a origem desse trabalho, as evidências da colaboração da Folha com o regime e as oportunidades de aprendizado para que os 21 anos de ditadura não se repitam no Brasil.

Como surgiu a ideia do livro?
É um projeto ousado no sentido de ser inovador. Mas preciso voltar um pouquinho e falar da história desse projeto. Há alguns anos, a Volkswagen do Brasil foi implicada pela Justiça num processo inédito de trabalhadores que, durante a ditadura, foram perseguidos pela empresa. Pela primeira vez na história do país, uma empresa foi parar na Justiça, muitos anos após o fim da ditadura, porque os trabalhadores fizeram uma investigação muito profunda, que subsidiou um inquérito do Ministério Público Federal contra a Volkswagen. A partir dessa investigação, o MPF tomou uma atitude que é digna de muita atenção e celebração em alguma medida. Como houve anistia no Brasil, a gente não conseguiu fazer aquele dever de casa de responsabilizar quem atuou na ditadura propriamente dita, os agentes do Estado, nem os colaboradores da repressão — empresários, gestores, enfim, a sociedade civil. Sem eles, certamente, a repressão não teria acontecido no sentido do golpe nem sua manutenção por 21 anos. O TAC da Volkswagen gerou alguns efeitos, como a nossa investigação e outras pesquisas a respeito, inicialmente, de dez empresas que continham indícios de colaboração operacional e material na ditadura. E a ideia do MPF é que o resultado dessas investigações possa subsidiar novos inquéritos contra essas empresas.

Mas por que a Folha e não o O Globo, que também apoiou a ditadura?
O Grupo Folha, o único de comunicação, foi escolhido pelo MPF porque já havia muitos indícios de colaboração que não era só editorial. O MPF escolheu uma universidade para fazer a gestão desse processo por não ter exatamente esse know-how. E a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) abriu um edital público com ampla concorrência no Brasil inteiro.

As linhas de investigação foram indicadas pelo MPF ou foi uma sugestão de vocês?
Somos uma equipe basicamente de historiadores e jornalistas, todos nós, professores e pesquisadores de universidades. A gente criou esse projeto a partir das nossas experiências, tanto no jornalismo investigativo quanto com história da imprensa. A gente participou do processo seletivo e foi contemplado em primeiro lugar. Foi uma investigação muito profunda, de quase dois anos. Não foi uma investigação acadêmica tradicional, mas uma pesquisa para gerar materialidade comprobatória, encontrar indícios, testemunhos. E a gente passou por várias oficinas de capacitação do MPF porque é uma metodologia de trabalho um pouco diferente.

Essa forma de atuação do MPF é nova?
Sim, é algo novo, encabeçado por duas figuras: os procuradores Pedro Machado e Marlon Weichert. Eles criaram essa metodologia, que é elogiada em vários lugares do mundo, inclusive na Argentina. Como a gente não conseguiu fazer esse dever de casa durante o período correto, essa é uma forma de dar conta desse desafio que ainda continua. A gente está falando de um período que tem que ser observado com atenção, cuidado, respeito. E a gente encontrou muita coisa importante para subsidiar o MPF.

Qual foi a avaliação da pesquisa pelo MPF?
Nossa pesquisa foi considerada muito boa pelo MPF, a ponto de ter aberto um inquérito contra o Grupo Folha, a partir e graças a nossa investigação. Nem todas as pesquisas geraram inquéritos. Todas as empresas investigadas por demanda do MPF tinham suas especificidades, todas colaboravam de maneiras diferentes, mas, ao mesmo tempo, todas muito alinhadas com os princípios da ditadura por parte desses empresários.

Como vocês se dividiram, foram atrás de que tipo de documento, de testemunho?
A gente sabia que não ia ter um documento do Grupo Folha, assinado, dizendo “quero colaborar com a ditadura, colaboro, empresto meus caminhões”. O MPF nos orientou e a gente também contou com apoio, colaboração e instrução de companheiros argentinos, que já tinham feito esse trabalho lá. Usamos metodologias diferentes. Tanto Joëlle quanto Ana Paula trabalham muito com a história oral. Eu trabalho com uma metodologia mais de jornalismo tradicional, investigativo mesmo, entrevistas mais jornalísticas. O André pesquisa o Grupo Folha e sua relação com a ditadura há mais de 15 anos. O Lucas, além de ser premiadíssimo sobre a ditadura, conhece muito sobre esse contexto. Os dois participaram da Comissão Nacional da Verdade também. A Amanda, que é a nossa base em São Paulo, trabalhou muito com a parte do acervo, do jornalismo.

Que tipo de evidências do apoio do Grupo Folha ao regime militar vocês identificaram?
Um eixo importante era como os veículos da Folha eram utilizados pela ditadura e com quais fins. No final dos anos 60 e início dos anos 70, que foi o auge da repressão, o regime estava matando muita gente. E, naquele momento, os carros da Folha, eu falo isso sem medo de errar, foram cruciais para que muitas pessoas fossem monitoradas, sequestradas, assassinadas e desaparecidas. A gente conseguiu mapear várias ações em que os carros da Folha estavam presentes. Uma é muito conhecida, mas ainda não estava muito bem elucidada, a emboscada da Rua João Moura. Nesse episódio, os militares já sabiam que os militantes da ALN estavam fazendo expropriação de armamentos. Criaram uma emboscada, com alguns agentes deixando as armas de maneira pouco cuidadosa. Militantes da ALN passaram e viram. Mas era tudo armado. Um pouco adiante, tinha um caminhão de entrega de jornais da Folha. Na parte traseira, havia agentes. Quando os militantes da ALN tentaram pegar os armamentos, os agentes saíram da caçamba e mataram três militantes. Mas houve uma sobrevivente, Ana Maria Nacinovic, que relatou o que aconteceu. Esse é um caso bem emblemático porque a gente pôde associar o uso do veículo da Folha à morte de três militantes da ALN.

Mas isso não poderia ser algo isolado? Como vocês conseguiram comprovar um envolvimento mais amplo?
Uma das coisas que a gente optou por fazer, em termos metodológicos, foi cruzar tudo. Cruzar os depoimentos de pessoas que tinham origens diferentes, interesses diferentes, papéis diferentes. Então, para ilustrar que os carros do Grupo Folha foram utilizados para monitoramento, perseguição, sequestro, prisão, assassinato de militantes, alguém conta: eu fui uma dessas vítimas. Temos também agentes do DOI-CODI, de São Paulo, falando como isso acontecia, como é que deixava a chave, em que local, como é funcionava para solicitar o veículo naquele horário, naquele local, como devolvia. A gente conseguiu dar essa materialidade a partir de depoimentos de pessoas que, desinteressadamente, falavam no mesmo sentido, na mesma direção.

E que motivou o colaboracionismo do Grupo Folha?
Quando Octávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho compram a Folha de S. Paulo, o jornal era pequenininho em 1962. Eles não eram do ramo da comunicação, mas da construção civil. O jornal para eles era mais um empreendimento que poderia dar algum tipo de rentabilidade. E o cálculo que fizeram muito provavelmente, a partir de nossas pesquisas, não era exatamente um ganho financeiro, mas político e estratégico. O Octávio Frias de Oliveira, inclusive está na nossa pesquisa, foi um colaborador financeiro do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipês), um dos grandes articuladores do golpe de 1964. A gente tem um carnê dele pagando sua mensalidade para o Ipês. Ali, havia vários grandes empresários nacionais.

E como esse apoio à ditadura se deu em termos editoriais, no jornalismo da Folha?
Hoje em dia, a gente tem uma velocidade muito rápida para conseguir produzir um caderno especial com toda a tecnologia de diagramação e tal. Mas, nos anos 1960, a coisa era diferente. Em 31 de março de 1964, ou seja, no dia oficial do golpe, a Folha de S.Paulo publicou um suplemento chamado 64 — Brasil Continua, de mais de 40 páginas. E quase todos os anunciantes desse suplemento eram apoiadores financeiros do golpe. Os anúncios também eram diferentes, já de celebração do “verdadeiro povo brasileiro”. A Folha estava nessa articulação havia muito tempo.

E o que os donos do Grupo Folha ganharam com isso?
Poder. Não é à toa que eles também viraram os donos, de uma maneira muito complicada, da maior rodoviária da América Latina à época, a de São Paulo. Eles usaram um terreno público para fazer essa rodoviária privada, com ônibus para vários países da América Latina. Ganharam muito dinheiro explorando um terreno público. Tinham costas quentes com o governo militar, eles conseguiram ganhar muito dinheiro nesse processo. O jornal não tinha só um papel lucrativo objetivamente, mas também político. E nisso, o negócio foi se diversificando também. Eles foram comprando outras empresas, a exemplo da Lithographica Ypiranga, que fazia toda essa parte de gestão de papel, que compraram por um preço irrisório. O próprio jornal Última Hora, de Samuel Wainer, que estava sufocado pela ditadura, pois ele foi um dos poucos que não apoiou a repressão, eles compraram também a preço de banana. Tudo isso entra na conta do que a gente chama de benefícios econômicos, em função do contexto ditatorial. E o Grupo Folha foi crescendo, de uma maneira assustadora.

Além dos veículos e da chancela jornalística, o que mais o grupo fez e ganhou na ditadura?
Se a gente for trabalhar pela esfera da comparação, o Grupo Folha colaborou jornalisticamente, editorialmente, perseguiu jornalistas, perseguiu pessoas, foi beneficiado economicamente e, no final das contas, pode ser responsabilizado indiretamente pela tortura, desaparecimento, sequestro e morte de pessoas. Nenhuma outra empresa do ramo da comunicação no Brasil teve um grau de colaboração neste nível. E é muito interessante que a gente associe muito mais a Folha à abertura política do que à ditadura. Isso é um reposicionamento de marca digno de muita atenção.

Perseguiu pessoas e jornalistas, de que forma?
Conseguimos mapear policiais do alto escalão do Dops em vários setores das empresas do grupo. No administrativo, na portaria, na segurança. Alguns disfarçados e outros não, mas todos com anuência da empresa. Não eram policiais do baixo clero. Os irmãos Robert e Edward Quass eram delegados do Dops, da alta hierarquia. Eles foram contratados para trabalhar na Folha vinculados à direção do jornal. Tinham uma sala. E isso foi confirmado por dezenas de pessoas, inclusive Boris Casoy que é abertamente de direita e fala da importância deles na vigilância de jornalistas e na utilização da empresa como extensão do Dops de SP. Vários jornalistas do grupo presos pela repressão viraram notícia nos jornais do grupo como terroristas, com publicação de ficha pessoal, com endereço, telefone, nome dos pais. Rose Nogueira cobria cultura na Folha da Tarde. Foi presa e torturada durante sua licença-maternidade, tendo um recém-nascido de 28 dias. Foi demitida por abandono de emprego, mas o próprio jornal noticiou a prisão dela. Ficar de olho em jornalistas era uma prática comum.

O apoio empresarial foi fundamental para o golpe e a manutenção da ditadura?
É importante a gente falar sobre essa relação dos empresários com a ditadura, porque quando a gente fala aqui no nosso país sobre a ditadura, a gente pensa logo em pessoas muito perversas que gostavam de torturar, que iam para os porões. Evidentemente que existiam pessoas assim. Mas existiram vários empresários que não eram torturadores, que achavam que aquilo fazia parte do jogo, apoiar certas ações contundentes que gerariam torturas, assassinatos, supressão de direitos, perseguições. Então, a ditadura brasileira se sustentou no poder por 21 anos por conta do apoio empresarial. A gente não tem a menor dúvida disso. Por isso que é importante a gente olhar essa ditadura a partir de um prisma também que observa a questão empresarial.

O envolvimento de um veículo de comunicação é pior do que de um outro tipo de empresa?
Quando a gente está falando de um veículo de comunicação apoiar a ditadura, eu confesso para você que me dói ainda mais. Porque não era uma empresa de sapatos. Era uma empresa do ramo do jornalismo, que deveria ser o primeiro a primar pela informação, pela manutenção do Estado Democrático de Direito, e a empresa faz um serviço editorial de corromper o entendimento público, social, do que foi esse período, do que aconteceu naquele momento. E até hoje dá umas rateadas bastante problemáticas, falando coisas como ditabranda, dando voz e espaço para uma pessoa como Jair Bolsonaro para falar de democracia. A gente percebe que há um enorme caminho a ser percorrido por essa empresa para entender o que é o papel do jornalismo de verdade. Apesar de, historicamente, a Folha ter momentos incríveis, mas a gente tem aí também problemas muito sérios, que até hoje não foram sanados pela empresa.

Vocês procuraram o Grupo Folha. E o que a empresa disse?
Tentamos, mas não conseguimos. A gente solicitou essa agenda, fomos a Folha várias vezes, mas precisávamos de uma conversa formal com algum representante, preferencialmente com algum dirigente. Inicialmente, disseram que ia acontecer, mas nunca tinha agenda. E a gente tinha o limite do prazo final de entrega do relatório ao MPF. Em função dessa dificuldade de agenda do Grupo Folha, a gente não conseguiu entrevistá-los. E para a série documental que estamos fazendo, a gente fez o mesmo movimento e eles disseram que não têm nada a falar para além dos materiais que já foram produzidos pela empresa.

Há um paralelo com o que a gente está vivendo agora. Pessoas defendem a ruptura democrática, mas se dizem do bem. Qual a importância desse trabalho para entender o hoje?
Eu sou muito orgulhosa do nosso trabalho, não no sentido vaidoso. Mas é porque a gente no Brasil tem uma dívida muito grande com relação a esse passado. Isso é muito recente e ainda tem efeitos muito cotidianos e concretos na nossa sociedade. Ao contrário da política atual do governo federal, por exemplo, que entende que a gente não tem que olhar mais para o passado, olhar a história no retrovisor, mas olhar para o futuro. Enquanto a gente não fizer esse dever de causa, a gente está condenado a repetir. Se a gente não repetir, a gente corre o risco de repetir o tempo todo. Os efeitos que a gente está vivenciando agora com relação ao 8 de Janeiro, as tentativas de assassinato do presidente Lula, do Geraldo Alckmin, do Alexandre de Moraes, da supressão do Estado Democrático de Direito só são possíveis porque essas mesmas pessoas não foram implicadas no momento devido. Essas mesmas figuras que hoje figuram nas manchetes de jornal, estavam lá. Eram essas figuras que estavam dando sustentação a essa ditadura que durou 21 anos no nosso país. Uma das ditaduras mais longas da América Latina.

Se o Brasil tivesse responsabilizado os crimes da ditadura, planos golpistas como os revelados na semana passada ainda seriam possíveis?
Eu acho que não. Óbvio que a gente está só especulando. Mas as pessoas têm uma dificuldade de entender que a responsabilização tem um caráter pedagógico. Estamos todos aprendendo com os processos de responsabilização. Toda vez que a gente vive um evento traumático histórico, a exemplo de uma ditadura, a gente tem que fazer essa pausa e pensar por que chegamos até aqui, como fizemos isso, com que apoios, sustentados em que, e agora o que a gente faz com relação ao que a gente fez. E aí é uma responsabilidade coletiva. Então, para mim, tudo isso que acontece é fruto de uma falta de coragem do povo brasileiro de fazer um dever de casa que vai ter que ser feito. Se não fizemos ontem, vai ter que ser feito hoje. Se não fizermos hoje, a história vai nos cobrar.

Você espera que o MPF consiga abrir mais inquéritos para investigar e responsabilizar outras empresas colaboracionistas?
Eu espero que esse movimento só cresça, não porque a gente quer fazer uma onda revanchista, muito pelo contrário, mas porque a gente quer ter a calma e o cuidado de averiguar como cada empresa e cada empresário foi beneficiado a partir de relações muito contentes com a ditadura. E isso não é uma opção, é um dever histórico que todos nós temos.

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