Sobre pânicos, traumas e surpresas
Nada me apavora mais do que ter de dar de cara com a decrepitude daquela banda ou artista que já amei muito um dia. Uma decadência que pode ser manifestar de formas muito distintas. Pode passar pela incapacidade de executar uma canção com o vigor e o rigor necessários, pode ser que a voz já não alcance mais as mesmas notas ou que a performance seja uma coisa que já não dialoga mais com o tempo presente.
Sei que sou uma exceção. A maior parte das pessoas que conheço abraçam a reunião de velhas bandas com entusiasmo. Basta estar lá para que o transporte para algum canto quentinho da juventude seja suficiente para obscurecer a realidade. E está tudo certo, é melhor quando a música opera mais por onde tem de fluir, pela emoção. Sir Paul vive disso há décadas.
Acontece que sou acometido de dois males. O primeiro é pensar que a inovação é um valor inegociável, porque é da natureza da arte o embate com o tempo presente e é um dado estético importante para mim que esse diálogo, por mais que possa ser enraizado no passado, traga um olhar atualizado. Fiu um adolescente nos anos 1980, o que significa dizer que ouvi em primeira mão alguns dos piores discos dos monstros clássicos do rock, como Rolling Stones, Neil Young, David Bowie, Genesis, Pink Floyd. Alguns desses se recuperaram mais pra frente na carreira, outros patinaram lá atrás e seguem deslizando pela mesmice.
O segundo é mais pessoal ainda, uma falta de paciência para uma linha de rock melódico, que sempre parece voltar para um lugar que flutua entre os Beatles e os Beach Boys. Veja bem, amo muito as duas bandas, mas não consigo me dar muito bem com as variantes diluídas.
Esse longo prelúdio para dizer que foi nesse espírito que entrei na segunda-feira passada no Café Piu Piu em São Paulo. A casa, localizada no Bixiga há mais de 40 anos, foi um palco importante nos anos 1980. Muita gente passou por lá, do rock ao jazz. Mas a verdade é que eu não pisava lá desde o começo dos anos 1990, quando ainda estava na faculdade. E estava indo justamente enfrentar os meus piores medos, mas, confesso, com uma ponta de curiosidade. Era o lançamento em vinil de Moto Perpétuo, álbum cult de 1974 da banda homônima, cujo integrante mais famoso era Guilherme Arantes, bem antes de enveredar pelas trilhas de novela da Globo.
Era uma apresentação com três dos cinco membros originais. Guilherme nos teclados, Claudio Lucci no violão e Gerson Tatini no baixo. Mas não foi um show. Lorena Calábria, que estava sentada comigo e fez o encarte para o relançamento em vinil, depois da última música, deu a melhor definição do que havíamos acabado de ver: “Foi uma mistura de show e Ted Talk”. E talvez por isso tenha sido tão bom, e tão bonito de ver.
Cinquenta anos depois das gravações produzidas por um jovem Pena Schmidt, tocar aquele disco cheio de energia jovem era uma espécie de acerto de contas com o passado, sobretudo para Guilherme Arantes. Perdi a conta de quantas vezes ele falou de contracultura para definir por onde a banda trafegava. Literalmente, o espetáculo foi essa mistura de memórias super emotivas, organizada numa narrativa que vinha de uma apresentação de imagens que ia contando a história da banda desde os primeiros encontros de seus integrantes. Entre essas histórias, as versões para trio das canções do álbum.
E foi muito lindo ver como Guilherme ia contando cada pedaço de história que formou o Moto Perpétuo. O encontro com o baterista Diógenes Burani no Teatro Ruth Escobar, quando era garoto, antes de entrar na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP), onde depois conhece Claudio Lucci, que vinha do violão clássico. E de como esse trio acaba se juntando a Gerson Tatini e ao guitarrista. Egídio Conde, que haviam tocado com Diógenes na mítica Ciribinas do Éden, projeto de Rita Lee e Lucinha Turnbull, pós-Mutantes.
Quando era citada e estava na plateia, a pessoa subia ao palco e dividia um pouco de sua história com a banda. Assim, entre uma música e outra, pudemos ouvir Lucinha e Pena, e também o primeiro empresário da banda, Moracy do Val, que tinha lançado o Secos & Molhados um ano antes e tinha acabado de ser botado pra fora da banda pelo João Apolinário, pai de João Ricardo, ou o designer Marcos Campacci, que fez as fotos e a arte do disco e é um dos personagens da música cantada por Claudio, Três e Eu.
O interessante é que esse formato e toda a emoção que estava no ar naquela noite, me fez voltar para o disco de outra forma. Moto Perpétuo, o álbum, é considerado um disco que bebe no rock progressivo, com influências de Yes e sobretudo da banda italiana Premiata Forneria Marconi. Tenho o disco original e não o escutava há muitos anos. Para mim, a sonoridade era muito calcada no Clube da Esquina, o que Guilherme confirmou na segunda. Então me parecia mais uma diluição da diluição de Beatles do que de fato uma viagem mais progressiva. Tinha discos do mesmo período que achava mais originais e que me acompanharam por mais tempo como ouvinte, como um dos citado na noite por que saiu logo depois e foi abraçado pela crítica: A Barca do Sol, com sua poesia radical e Jaques Morelenbaum no cello e no violino.
Mas a verdade é que depois dessa noite Moto Perpétuo bateu de outro jeito, a emoção suplantou a razão, outros elementos entraram na escuta, e aqueles personagens admiráveis ganharam vida. Uma supresa rara botar o crítico chato de volta na casinha. Bom aproveitar quando isso acontece.
Para quem se interessar, o vinil de Moto Perpétuo está disponível pela Três Selos.