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‘Ainda Estou Aqui’ e a falta de memória

Foto: divulgação

Após conquistar espectadores e críticos de diversos lugares do mundo, por meio de grandes festivais, o filme Ainda Estou Aqui, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, chegou aos cinemas brasileiros. As expectativas eram grandes desde que o projeto começou, com a direção de Walter Salles, de Central do Brasil, e elenco estelar com Fernanda Torres, Selton Mello e participação mais que especial de Fernanda Montenegro. Mãe e filha na vida real interpretando a mesma personagem em épocas diferentes.

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O livro e o filme contam a história da família Paiva. O ex-deputado Rubens Paiva, cassado pela ditadura militar, vive com os filhos e a esposa, Eunice, em uma confortável casa à beira-mar no Rio de Janeiro. Tudo muda quando militares o levam para um “depoimento”. Rubens Paiva nunca mais foi visto. Seu único filho homem, Marcelo Rubens Paiva, relata a história no livro, desde quando era criança, e pincela sua juventude até a fase adulta, com sua mãe já sofrendo de Alzheimer. O texto é muito bem escrito e não é difícil estar conectado aos seus personagens e à ambientação. Minha maior curiosidade era: de que forma seria possível adaptar essa intimidade estabelecida na leitura, sobretudo pela narração em primeira pessoa, com os espectadores?

E a alternativa foi concentrar o roteiro e as câmeras em Eunice Paiva, construindo o tempo inteiro sua importância para a família. Ela foi fundamental na sustentação emocional dos filhos após o desaparecimento do marido, sempre buscando aliviar as dores de Marcelo, Vera, Maria Eliana, Ana Lúcia e Maria Beatriz, e o medo que sentiam dos militares. A vida financeiramente confortável fica para trás e ela, aos 48 anos, forma-se em Direito para ter uma profissão, sustentar a família e eventualmente canalizar seu luto em uma luta.

Eunice foi referência na luta pelos direitos dos povos indígenas, pauta que mesmo após o fim da ditadura a colocava em situação delicada e com sua vida em risco. Fernanda Torres capta perfeitamente todas as diferentes emoções. Consegue ser amorosa e carinhosa, firme quando necessário, passar a dor e enfrentar o luto sem poder desabar para manter a família em pé. Aliás, o reconhecimento internacional do filme e da atuação de Fernanda dá esperanças ao Brasil de ter de novo um filme disputando o Oscar. Se as chances de estatueta são grandes ou pequenas depende de diversos fatores, como a leva de filmes desta temporada, mas sobretudo a capacidade de marketing com os cinéfilos americanos. Seria lindo e histórico uma vitória, mas o longa talvez tenha maior apelo e seja feito para nós, brasileiros. É quase um chamado à reflexão interna.

“O quê? Pediram para não sorrir na foto? Vamos sorrir, sim. Sorriam, crianças!”, diz Eunice ao fotógrafo de um jornal nessa cena emblemática já disponibilizada no trailer do filme. Era para uma reportagem sobre o desaparecimento de Rubens e o fotógrafo pediu mais sobriedade — a família sorrindo não combinaria com uma matéria triste. Eunice nega por várias vezes essa possibilidade e exige que os filhos sorriam. A felicidade é uma forma de resistência, pois tudo que um regime autoritário quer é vencer pelo medo e ameaça.

Outro fator que ajudou na proximidade com o público foi a ambientação dos anos 1970, possivelmente capaz de gerar nostalgia no espectador que viveu a época, ainda que as referências culturais sejam sempre dosadas com o clima de tensão no ar. A praia, as casas, os risos, eram sempre colocados como se pairasse algo estranho. Um risco iminente. Mesmo para uma família tida como normal, da qual é difícil não simpatizar ou até querer fazer parte de seu círculo próximo.

Não sei se de forma proposital ou não, provavelmente sim, é possível estabelecer várias metáforas dentro da literalidade da vida dos Paiva. O filme e o livro são sobre perda de memória. Física, de Eunice Paiva com Alzheimer no fim da vida, mas as obras nos mostram que, apesar das dores que a doença traz, essa não é a perda de memória mais grave. O problema é também quando o Brasil, enquanto nação, esquece sua própria história, como se anulasse o que foi vivido por tantos brasileiros.

Em determinado ponto, a casa se torna personagem. Sobretudo quando é deixada de lado e aparece vazia. Sem móveis e moradores, continua sendo a mesma casa? Uma pessoa, sem as memórias e lembranças de sua vida, é a mesma pessoa? Se é tão difícil responder sobre uma casa ou uma pessoa, é ainda mais sobre todo um país.

Fernanda Montenegro aparece um pouquinho só — e basta para emocionar. Ela, Fernanda Torres, Walter Salles e Selton Mello mostram que Eunice e os Paiva “ainda estão aqui”. Que essa história e esse contexto não sejam esquecidos.

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