Edinho e o buraco entre o PT e o povo
Minha amiga Malu Gaspar publicou ontem, no Globo, uma excelente entrevista com Edinho Silva, ex-prefeito de Araraquara e mais provável sucessor de Gleisi Hoffmann na presidência do PT. Vai ser bom para o partido. Edinho é um cara bastante mais moderado e muito mais disposto a conversar com quem não é de esquerda do que Gleisi. E é por isso mesmo que a entrevista de Edinho é muito boa. Porque deixa claro como o PT mais moderado pensa a respeito do que aconteceu nas eleições deste ano.
O ponto é o seguinte: deixa claro onde está o ponto cego da esquerda brasileira. E, olha, explica também porque possivelmente a candidatura de Lula ou seu escolhido não vai conseguir reunir a mesma frente ampla da última eleição, em 2026. Não entre os eleitores.
Edinho tem alguns acertos importantes. Ele não fala de “pobre de direita” com aquele desprezo que tantos vêm adotando. Ele usa outra expressão. Ele fala de “classe média popular”. É uma boa expressão porque é precisa. Quero pinçar dois comentários dele em particular. O primeiro é este, onde ele define quem é esse pessoal que a esquerda perdeu para a direita e como este grupo pensa. Desde 2022, a classe média que ganha cinco mil e seiscentos, sete mil reais também começou a ser capturada. Nós perdemos as eleições onde a classe média é extensa, nas periferias. A juventude da periferia também foi cooptada pelo antissistema. A teologia da prosperidade é isso. “Se o Estado não te dá perspectiva de futuro, para você poder sonhar com coisas boas, vai empreender que pode ser que tudo isso aconteça na sua vida.”
A gente fala do segundo trecho depois. Vamos começar com este. Com essa fala que o Edinho atribui à classe média popular. Se você não acredita que o Estado vai te dar uma perspectiva de futuro, parte para construir você mesmo o seu futuro.
Eu realmente acho bem chocante que o Edinho pense desse jeito. Me surpreende. Porque mostra, em essência, que o vácuo entre o país ideal com o qual ele sonha e o país com o qual muitos brasileiros sonham é imenso. Claro, estamos falando de diferenças profundas de visão ideológica. Mas, veja, não estamos aqui falando de pessoas pobres. Estamos falando de quem ganha cinco, seis, sete mil reais por mês. Isto não é uma fortuna. É uma vida apertada. Mas é uma vida de classe média. Não é uma vida com fome, uma vida sem moradia. E é uma vida de quem tem direito a sonhar em ter mais. Em construir mais. A proposta do PT é essa? O PT acredita que é o Estado que deve criar a perspectiva de futuro para as pessoas? Não é isso que elas pensam. Elas querem construir com suas próprias mãos. É um conceito tão difícil assim de compreender? A ideia de que as pessoas possam querer construir suas vidas por si próprias?
O que é uma democracia liberal? Quando a gente inventou este regime onde escolhemos não ter um tirano, onde escolhemos nós mesmos quem vai legislar, quem vai governar, onde escolhemos que todos seremos iguais em nossos direitos e nossos deveres, o que a gente quer? Que tipo de mundo queremos construir? Essa pergunta não é irrelevante. Essa pergunta é o cerne, o centro do problema fundamental que desejamos responder.
O que deveríamos querer construir é uma sociedade em que cada um de nós pode ser seu melhor. Onde nossos talentos, aquilo que nos dá tesão de viver, aquilo que nos motiva pode levar também ao crescimento pessoal. A capacidade de nos sustentarmos. Deveríamos querer construir uma sociedade onde o filho do sapateiro pode ser um Prêmio Nobel, onde a filha da faxineira pode ser uma grande empresária. É por isso que precisamos, sim, de um Estado. Porque no laissez faire, no cada um por si, não haverá igualdade de oportunidades. Todo mundo precisa ter uma boa educação, uma educação de qualidade. Todo mundo precisa ter acesso a saúde, ter todas as vacinas. Todos temos direito a um ambiente em que a segurança é garantida, em que transporte público de qualidade é acessível. Temos todos o direito de viver livres de qualquer discriminação seja pela cor da pele, pela orientação sexual, pela religião, por qualquer característica particular que tenhamos de distinta dos outros. O Estado é pra isso. Para garantir um ambiente onde todos tenhamos dignidade sempre, onde as oportunidades sejam igualmente distribuídas.
E, olha, essa já é uma missão barbaramente difícil de conquistar pelo Estado, ainda mais em um país com desigualdades históricas tão profundas como as brasileiras. Além disso, nas palavras do Edinho, o Estado tem também ”de dar perspectivas de futuro, se não a pessoa vai achar que tem de empreender”.
Como assim é o Estado que tem de dar a perspectiva de futuro para cada um? Não deveria ser evidente que cada um deveria ambicionar construir sua própria vida? Não é este, justamente, o barato de viver? Construir com as próprias mãos? Conquistar as coisas e celebrar o que conseguiu por conta própria? Não tem realmente nenhuma hora em que o Estado tem de sair da frente e deixar as pessoas fazerem suas próprias escolhas?
Aí vem a segunda frase do Edinho na entrevista. Agora, sair disso é uma construção política. Nós vamos ter que construir alianças. Tem que dialogar com o campo democrático e fazer reformas que possam melhorar a relação do Estado com a sociedade civil.
Este é um problema fundamental, tá? Bolsonaro não é candidato à presidência da República. E a visão de para que serve o Estado da esquerda é muito, muito, muito diferente da visão de todo o resto do campo democrático. Vamos elaborar que Estado seria esse?
Tem um comentário que me fascina. “Os Estados Unidos também usaram o Estado para se desenvolver. Todo mundo usa.” Um dos exemplos que as pessoas gostam de citar é a Internet. O Vale do Silício existe porque o governo decidiu investir no surgimento da Internet. Vivi quase três anos no Vale e escrevo sobre a indústria digital faz trinta anos. Essa é uma história que conheço bastante bem
O Vale tem, sim, investimento, e investimento importante, do governo americano. A internet foi criada entre duas universidades. Stanford, no Vale, e a Universidade da Califórnia, em Los Angeles. O governo queria, no tempo da guerra fria, uma rede de comunicação que fosse descentralizada. A ideia era de que, se uma cidade fosse destruída por um míssil nuclear, todas as outras cidades permanecessem em contato. Outra tecnologia fundamental para a indústria que teve investimento público foi o microchip, que é resultado do desenvolvimento dos foguetes e ônibus espaciais bancado, em parte, pela NASA.
O que o Estado americano jamais fez? O Estado jamais disse “aqui na Califórnia a gente vai criar um polo de indústria digital”. Na verdade, a indústria surgiu em vários cantos. A IBM era em Nova York. A Microsoft, em Seattle. A Texas Instruments, bem, no Texas. E nenhuma dessas empresas nasceu porque o governo escolheu que nascessem ou o governo decidiu que era importante haver uma indústria da computação. Pessoas acharam que seria bom negócio. O Estado ajudou a financiar tecnologias de infraestrutura. Não financiou por completo, deu só o pontapé inicial. Aí ficou olhando para ver o que as pessoas faziam com aquelas tecnologias. Apple, Google, Amazon, Meta, deram certo. NeXT, Lotus, Sun Microsystems, deram errado.
O Estado tem papel, sim. Mas o que o Estado faz é criar uma infraestrutura básica e deixa a sociedade criar. Ele permite que, para abrir uma empresa, baste abrir uma conta no banco e dizer “sou uma empresa”. Fechar uma empresa, igualmente simples. Estimula que as pessoas façam contratos entre si com muita liberdade, que criem formas diferentes de se associar. Facilita a troca de dinheiro de mãos. Não sai criando dificuldades.
Você quer abrir um restaurante? Não precisa pendurar três mil plaquetas na parede, impor tantas regras que qualquer fiscal que chegue já arranje um jeito de multar ou fazer um ganho. Porque o Estado brasileiro na ponta é isso, né? Doido para encontrar uma irregularidade em qualquer empresinha que surja. E é tanta regra, tanto detalhe, tanta complicação, que sempre encontra, e isso sempre vira desculpa para achaque de fiscal.
O Estado é importante, sim. Mas é importante para facilitar a vida de quem quer criar. Para facilitar a vida de quem quer construir. E, neste sentido, o Estado brasileiro é um criador de dificuldades.
Quando a pessoa ascende à classe média baixa vinda da pobreza, ela experimenta pela primeira vez algo que é mágico. Ascensão social. Ela descobre que isso existe e é possível. Aí ela quer mais. E ela compreende, de imediato, que emprego não vai gerar isso. O que gera é criar algo novo. O Edinho, e boa parte da esquerda, acha que o Estado tem a missão de fazer com que as pessoas possam sonhar com coisas boas. Não é essa a missão do Estado. A missão é criar um ambiente no qual as pessoas possam construir sem atrapalhação as coisas boas com que sonham.
A esquerda quer um Estado paternalista. Quer um Estado que assuma a vida do cidadão. As pessoas querem andar com seus próprios pés. Querem controlar seus destinos. Este é um desejo legítimo, um desejo fundamentalmente humano. A esquerda, por algum motivo, acredita que o brasileiro não pode cuidar da própria vida. Que ele se ilude achando que poderá cuidar de si.
Se o candidato da direita vier sem discurso preconceituoso, sem discurso golpista, com discurso de abrir espaço para a pessoa ser quem ela deseja ser, vai ficar difícil. O Brasil mudou. É hora de compreender que o brasileiro quer Estado, sim. Mas não é o mesmo Estado que o governo Lula deseja.