Agora em livro, o Projeto Querino vê a história do Brasil pela ótica negra

Foto: Lipe Borges

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Agosto de 2022. Entra no ar o Projeto Querino. Emprestava seu nome do intelectual Manuel Raimundo Querino (1851-1923), jornalista, professor e abolicionista que, em 1918, publicou “O colono preto como fator da civilização brasileira”, obra primeiro coloca os africanos e os afrodescendentes como protagonistas para a formação do Brasil. O projeto era inspirado no 1619 Project, criado pela jornalista norte-americana Nikole Hannah-Jones e lançado em agosto de 2019 pela New York Times Magazine, do New York Times, 400 anos depois que os primeiros 20 escravizados aportaram na Virgínia, dando início ao período escravista da colônia britânica.

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Assim como o projeto multimídia norte-americano, o Querino nascia da vontade de revelar uma narrativa sobre oo Brasil que não estava registrada nos livros de história tradicionalmente adotados nos currículos escolares. Um olhar afrocentrado para a história do Brasil, que revê os fatos, não faz revisionismo, como diz o jornalista Tiago Rogero, criador do Querino junto com a equipe da Rádio Novelo. “Não se trata de revisionismo, como fazem as pessoas da extrema direita que falam, por exemplo, que o nazismo era de esquerda, mas de olhar novamente. É um outro olhar para o passado, que parte de algo muito pessoal, que é perceber que várias dessas histórias eu não aprendi e que eu gostaria de ter aprendido, perceber que essa experiência pessoal é uma experiência compartilhada e é, ao mesmo, tempo triste”, diz Rogero ao Meio numa chamada de vídeo.

Quando começou as pesquisas para o Querino, Rogero, que hoje escreve para o jornal inglês The Guardian, já vinha de outras duas experiências de protagonistas negros. Primeiro com o podcast Negra Voz, feito quando estava no jornal O Globo, que ao longo de cinco episódios estruturados em um formato documental falava da herança africana e dos feitos de negras e negros, do passado e do presente. Depois com a primeira parceria com a Rádio Novelo, o podcast original do Spotify Vidas Negras, que em duas temporadas com 15 episódios em cada uma falava da trajetória de figuras de destaque históricas e atuais, distribuídas em temas como feminismo negro, racismo, além de falar de personagens emblemáticos que iam do sambista e humorista Mussum ao geógrafo Milton Santos.

A partir dessas duas experiências, Rogero e a turma da Rádio Novelo partem para o projeto mais ambicioso. Chama a historiadora Ynaê Lopes dos Santos para ser consultora em história e consegue um patrocínio do Instituto Ibirapitanga,  criado pelo cineasta Walter Salles. A primeira parte do projeto se materializa de duas formas, primeiro como um podcast, que conta com a consultoria narrativa de Paula Scarpin e Flora Thomson-DeVeaux, da Rádio Novelo, e, em um segundo momento, com uma série de reportagens publicadas na revista Piauí. Uma série que contou o trabalho de mais de 40 pessoas, uma equipe majoritariamente negra, majoritariamente feminina. E foi um sucesso, com mais de 2 milhões de streams dos episódios. A partir daí, oito editoras diferente procuraram Rogero para transformar o podcast em livro.

Nesta semana, o projeto chega a sua terceira fase com o lançamento pela editora Fósforo de Projeto Querino: Um Olhar Afrocentrado para a História do Brasil, escrito por Rogero, mantendo a estrutura dos episódios do podcast, mas ampliando a pesquisa. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Como o Projeto Querino se torna um livro?
Essa era uma ideia que me interessava, porque uma simples transcrição do podcast não faria sentido, já que, por motivos de acessibilidade, todos os episódios já tinham a transcrição também disponível. Eu pensava em ampliar a pesquisa, já que no podcast muita coisa foi cortada. Não que no livro não tenham cortes, mas eu prezo sempre pela experiência do consumidor, no caso do livro, do leitor, e mesmo com os cortes, o livro traz muitas oportunidades de aprofundamento. Foi um processo de mais de um ano, que teve momentos de correção de curso. Passei os primeiros seis meses escrevendo uma primeira versão do livro que minha editora, a Juliana Rodrigues, disse que não estava legal. Eu tinha escrito um livro inteiro em termos de tamanho só sobre a independência do Brasil. O que não fazia sentido, pensando que o projeto vai para muitos outros caminhos. Percebi também que eu estava um pouco, entre muitas aspas, brincando de acadêmico, o que eu não sou. Sou jornalista, eu admiro muito o trabalho dos acadêmicos, o Projeto Querino deve profundamente do trabalho deles, mas eu acho que uma das coisas que as pessoas mais gostaram do Projeto Querino é a simplicidade, tratar as coisas com objetividade, com complexidade quando possível, mas sempre de uma forma simples na construção narrativa, na escrita.

Isso é mais fácil nascendo de um projeto oral?
Mesmo sendo um podcast, ele parte sobretudo da escrita. Todas as palavras que saíram da minha boca e o próprio encadeamento de tudo o que as pessoas ouviram foi antes escrito. Fora, naturalmente, as entrevistas que as pessoas deram. E aí, transformar esse trabalho em livro foi uma viagem muito prazeirosa. Teve momentos de dor, mas eu acho que pensar na mídia para a qual a gente está escrevendo das coisas mais legais da nossa profissão. E no livro foi isso. Pensar quais são as diferenças entre as mídias, o que cada mídia tem de vantagem em relação à outra, e adaptar. E eu acho que a gente conseguiu fazer isso no livro e um dos elogios que eu mais gosto de receber em relação a ele é quando as pessoas falam que, ao lerem o livro, estão ouvindo a minha voz. Daí eu percebo que, apesar de a gente fazer muitas mudanças e de o livro trazer também muita informação nova, ele continua com a mesma característica oral do projeto.

Quais foram as principais coisas que você incluiu para dar mais profundidade aos episódios do podcast?
Já no primeiro capítulo, sobre da independência, há uma informação nova. Nova não no sentido de inédita, porque assim como no podcast, o projeto não tem um furo de reportagem, não tem uma informação historiográfica que a gente descobriu pela primeira vez. A gente tentou bastante isso, mas não conseguiu. Mas uma dessas informações novas em relação ao podcast é a questão do trono do rei Adandozan que é doado para o rei Dom João e acaba perdido entre as peças queimadas do Museu Nacional. Quem ouviu o podcast, vai de cara perceber que está ganhando algo, como a história da Maria Odília Teixeira, que é a primeira médica negra da Bahia e também a primeira professora negra da Faculdade de Medicina da Bahia. Tem um caso que me toca muito, que está no capítulo 5, que foi bastante anunciado na imprensa brasileira, o da Eliangela Carlos Lopes, uma cuidadora de idosos de Belo Horizonte que presencia uma situação de extremo racismo e se posiciona de forma muito forte contra. No capítulo 3, que é o da música, disparado o episódio predileto dos ouvintes, um etnomusicólogo, Rafael Galante, me alertou de uma forma muito carinhosa, que achava que eu incorria em algumas visões estereotipadas da nossa música. A partir daí, o capítulo traz  correções de curso em relação ao podcast.

Falando desse capítulo, gosto muito da análise do Acauam Oliveira sobre o Jorge Ben Jor ser o pai do afrofuturismo brasileiro. Você acha que existe um movimento afrofuturista no Brasil? 
Definitivamente existe, e a gente tem uma produção já vasta sobre isso. Na literatura, o Fábio Cabral, por exemplo, é um dos primeiros a falar disso. E no audiovisual mesmo, eu estou fazendo uma reportagem para o Guardian sobre essa série da Netflix que vai sair, Os 4 da Candelária. Assisti a alguns episódios e tem afrofuturismo. O próprio Jorge Ben Jor é isso, como o Acauam coloca, é o afrofuturismo avant la lettre, essa expressão que todo mundo adora usar. Se você pensar, o próprio Manuel Querino escreveu sobre isso, dizendo que a primeira forma de república que houve no Brasil foi Palmares. Então, isso é afrofuturismo também. E ainda no Brasil Colônia, onde havia um pensamento muito arraigado, antigo, retrógrado, parado, que impossibilitava o crescimento do país das mais diversas formas, o intelectual inclusive. E aí, numa comunidade formada por africanos e afrodescendentes que se revoltam contra a condição de escravidão, se tem pela primeira vez no país a ideia de república. Acho que é uma coisa que sempre teve, agora leva esse nome. No meu pequeno lugar de alguém que não é especialista no assunto, eu vejo bastante presente.

Uma coisa muito interessante no livro é a responsabilização da branquitude. Como você entende a branquitude no Brasil?
Cara, eu entendo como muito acomodada e, em geral, pouco interessada em se perceber como um sujeito com responsabilidades sobre tudo que aconteceu. É óbvio que há as pessoas brancas que se comprometem de fato com a luta antirracista. No Projeto Querino mesmo, a gente deve muito do conhecimento de várias dessas pessoas que deram contribuições incríveis, que são de fato parceiras. Eu acho que se a gente fosse pegar uma pessoa padrão para representar o que significa a maioria da branquitude brasileira, é uma pessoa pouco interessada em lidar com essas questões, porque de fato é mais cômodo não lidar com isso. As coisas se mantêm como elas sempre estiveram e aí as pessoas seguem ocupando o lugar de privilégio. Ao mesmo tempo eu entendo que há diferentes formas de branquitude, porque tem as pessoas das elites que se beneficiam de forma muito clara disso e tem as pessoas que estão na base, mas que são brancas e se beneficiam também. A gente é um país que até muito pouco tempo atrás, coisa de anos, era aceitável ou normal as pessoas colocarem anúncios de emprego, mesmo para as vagas de pior remuneração, exigindo que as pessoas fossem brancas. Então mesmo para essas pessoas brancas pobres, num país tão marcado pelo racismo como o Brasil, em que a raça determina praticamente todas as relações humanas, sociais e econômicas, elas são beneficiadas por isso. Eu procuro ser muito mais paciente com as pessoas brancas pobres, com quem não teve acesso a uma educação. Como você vai explicar para uma pessoa que também é explorada, que trabalha 14, 16 horas por dia para só seguir se endividando, que ela é privilegiada? Então, tem que ser paciente, tem que dialogar. E eu acho que isso versa muito também sobre a busca pela simplicidade que a gente tem no Projeto Querino. É uma tentativa de que ele chegue ao máximo de pessoas possível. A gente quer que ele seja ouvido e acredita muito nesse lado da função social que está atrelada a ele.

Você vê a aplicação do livro e do podcast na educação?
Sim, o podcast foi muito usado por professores em sala de aula Tanto por professores de Ensino Médio, de Ensino Fundamental, quanto por universidades. É um sonho que eu tinha, cara. Embora o Projeto Querino seja o resultado de um trabalho de muita gente, na minha cabeça, aqui no meu universo pessoal, ele é a conclusão de uma trilogia que eu comecei quando eu fiz o podcast Negra Voz, quando eu estava ainda no jornal O Globo e depois o Vidas Negras, original Spotify produzido pela Rádio Novelo. Quando eu fiz o Negra Voz, lá atrás, meu sonho era que esse conteúdo pudesse de alguma forma ser usado em sala de aula. Ele nunca foi pensado para ser didático, sempre foi pensado para ser jornalístico e para ser consumido de forma mainstream. Mas ele teve essa aplicação que me emociona profundamente, ao ponto de faculdade de medicina usar o episódio sobre saúde pública, sobre o SUS. Fora isso, os colégios públicos e particulares. Agora a gente está na fase final de elaboração de um projeto educacional que vai sair pelo Itaú Social, que vai estar disponível gratuitamente online para professores, para eles usarem trechos do podcast em sala de aula, acompanhado de sugestões de perguntas, atividades. E no próprio livro. A Fósforo costuma publicar guias para professores no site dela, gratuitamente. Quero que ele siga sendo usado.

A gente vive num momento de muita divisão em relação a essas questões educacionais, e uma das questões que sempre causaram divisão foi a das cotas. Como que você vê essa relação do conhecimento sobre a história do negro no Brasil com a aplicação da lei de cotas?
A lei de cotas é a maior revolução cultural que o Brasil já teve. Não sei se dá para dizer na história inteira, mas desde que eu estou vivo, com certeza. E é um esforço que vem, inclusive, naturalmente dos movimentos negros, vem lá dos anos 1930 . Uma coisa legal que a gente faz no episódio de educação, que está ampliado no livro, é mostrar como esses esforços de educação sempre existiram, de forma localizada, mas sempre existiram em muitos casos e espaços. E a gente cita alguns deles para situar. De forma organizada, eles surgem de uma maneira muito bonita na Frente Negra Brasileira, que é a primeira formação institucional dos movimentos negros lá nos anos 1930 em São Paulo, e várias das coisas que hoje nos guiam estavam ali na Frente Negra, de crítica ao material didático, falando que só mostra o negro como subserviente, como se a gente não tivesse participação nenhuma nesse país, e trazem até um contra-argumento para muitos dos críticos de cota que dizem que os ativistas, nos quais eu me incluo, estão querendo dividir. Mas a Frente Negra é um belo exemplo de como as pessoas negras não são as que quiseram dividir. Quando os imigrantes japoneses chegaram na Liberdade, em São Paulo, onde ela ficava, eram bem-vindos nas escolas da Frente Negra. E até hoje, nas escolas particulares de alto padrão, as que têm as mensalidades mais caras, vai ver o pesadelo que é para um pai e uma mãe negra terem um filho ali. Vai ver o pesadelo que é a experiência de uma criança negra nessas escolas, ou de uma criança não branca. Um outro exemplo de como as pessoas negras sempre foram as que tentaram incluir é que a luta das políticas de ação afirmativa sempre vai para incluir todo mundo que não é beneficiado, que não é a massa identitária mais poderosa do Brasil, a branca. Então é uma luta dos movimentos negros que, quando é efetivada, beneficia as pessoas indígenas, as pessoas com deficiência, as pessoas quilombolas e, o que é importantíssimo e me incomoda muito que fique fora do debate , ela beneficia os brancos pobres, que não puderam estudar em escola particular. Essa falácia de que as cotas deveriam ser sociais e não raciais. Elas são sociais, o primeiro recorte é social. Mas ainda assim há muita desinformação a respeito e até uma falta de interesse de quem poderia esclarecer.

Quais foram as suas principais fontes. Você tinha alguns textos fundantes que orientaram o seu raciocínio?Foram muitas e só existiram por que eu tinha a orientação de uma historiadora do calibre da Ynaê Lopes dos Santos. Acabo muito influenciado por ela. Mas naturalmente, Clóvis Moura em muitas das questões sobre revoltas, sobre por exemplo, a Rebelião Malê, João José Reis é a grande referência, Luiz de Alencastro é uma referência definitivamente, o próprio livro da Ynaê [Racismo Brasileiro: Uma história da formação do país] é incrível, ela lançou quando a gente já estava com o podcast acabado, mas para o livro foi muito importante. O Pacto da Brancitude, da Cida Bento, foi muito importante também. E mesmo livros não historiográficos, o Solitária, da Eliana Alves Cruz, é um super livro que me ajudou muito a pensar no episódio sobre trabalho doméstico, O Genocídio do Negro Brasileiro, uma obra referência do Abdias Nascimento. Com certeza tem outros, que depois eu vou ficar pensando que devia ter citado. E alguns esforços coletivos também. Eu gosto muito da Enciclopédia Negra, que foi lançada pela Companhia das Letras. O Dicionário da Escravidão e Liberdade, também, da Companhia das Letras, é muito bom. Os dois foram organizados pelo Flávio dos Santos Gomes e pela Lília Schwarcz.

Achei muito bom o capítulo sobre o pecado original, esse pacto de anistia antes de conseguir fazer a abolição, algo que a gente vê se repetir na história do Brasil com a elite promovendo uma série de auto-anistias. Acha que é um pecado original que se espalha pelo país ao longo dos anos?.
É, sim. Tem algo que está presente na entrevista do Thiago Campos Pessoa, que ele fala sobre um registro escrito do Eusébio de Queirós. Nesse momento da Lei de 1831, o Brasil já tinha assinado um tratado com a Inglaterra para acabar com o tráfico, aí tem uma confusão aqui e o Brasil decide por conta própria fazer uma lei super forte contra o tráfico. Essa lei dizia que a partir daquele momento nenhum africano que entrasse no Brasil poderia ser escravizado, deveria ser imediatamente libertado e as pessoas que eram responsáveis por trazer aqueles seres humanos a partir de então deveriam ser considerados contrabandistas e havia previsão no Código Penal para puni-las. No começo essa lei é cumprida, depois ela é totalmente desrespeitada e um monte de
gente se beneficia disso, as elites sobretudo, a classe política, os contrabandistas, mas também parte da população, já que a população brasileira abraçava mesmo o escravismo, e a realidade da propriedade de escravizados no Brasil era de um plantel de poucos escravizados, de 1 a 3. Em 1850, porque a Inglaterra volta a pressionar com toda a carga, o Eusébio de Queirós assina a lei que finalmente proíbe o tráfico de escravizados. E tem um momento ali que ele escreve que tudo que vai ser feito na fiscalização dessa lei é do futuro, ninguém vai se entender com o passado.

Qual é o impacto dessa anistia?
Desde 1831, cerca de 800 mil pessoas entraram de forma ilegal, e elas deveriam ter sido libertadas. E o Brasil escolhe não fazê-lo. A maioria dessas pessoas ainda eram escravizadas em 1888, quando a gente era vergonha mundial e fomos o último país das Américas a acabar com a escravidão. Porque as elites não queriam abrir mão da escravidão de jeito nenhum. O próprio Dom Pedro II vai falar depois que se ele tivesse no comando, a escravidão teria durado mais um pouco. Porque estava meio doente, a Isabel estava como regente. A gente acaba com a escravidão em 1888, mas a maioria das pessoas que ainda eram mantidas em escravidão deveriam estar livres pelas leis do próprio Brasil. Esse é o nosso pecado original. A gente escolhe, naquele momento em 1850, não se entender com o passado. E aí a gente vai ver isso acontecendo em vários momentos da nossa história. Em 1888, novamente: passamos mais de 350 anos escravizando essas pessoas e nos últimos 50 anos a gente escravizou elas de forma ilegal.
Vamos fazer alguma coisa pra compensar? Não, não vamos. Por quê? Porque o nosso objetivo é que esse país se torne o que é a Argentina hoje, que há uma maioria absurda de pessoas brancas e pouquíssimas pessoas não brancas. O objetivo das elites brasileiras, do Estado brasileiro, era eliminar completamente as pessoas negras. Então não vamos fazer nada, vamos deixar essas pessoas à própria sorte para que elas morram e vamos também promover esse aniquilamento quando for possível. Chega no fim da ditadura, é a mesma coisa, a anistia da mesma forma. Agora depois do que aconteceu no 8 de janeiro, a gente imaginava que, com toda aquela comoção, com a união de todos os poderes, a classe política se manifestando,  a gente não imaginaria que veria as pessoas discutindo abertamente a anistia como agora, enfim, como se estivesse falando de compra de remédio.

Um outro traço que persiste é a violência. Claro há a violência primeira contra o escravizado, mas ela não deixa de existir, essas marcas da violência persistem até hoje, basta pensar nas abordagens policiais ou nas histórias das violências sofridas pelas mulheres dentro das casas. Como você acha que essas marcas da violência operam na população negra?
Uma coisa a lembrar, e a Ynaê Lopes do Santos fala também muito bem sobre isso, é o quanto que o Brasil é um país violento e sempre foi, né? A versão vendida do Brasil oficial é a de um país apaziguado. Até na própria independência, a versão que a gente conhecia em geral, era de que foi uma coisa arranjada. Mas a independência teve momentos profundamente cruéis, de muita violência, na Bahia, no Grão-Pará, tem a história do navio, que a gente traz no livro, em que as pessoas são trancadas dentro dele e centenas morrem. O período regencial é de muita violência. O Duque de Caxias, o que ele fez, né? Embora haja quem o chame de pacificador, há outros que o chamam de genocida, porque realmente ele foi genocida, né? Nas revoltas que ele ajudou a conter, morreram milhares de pessoas. O Brasil é um país violento, e essa violência se manifesta sobretudo na população que ocupa os piores indicadores socioeconômicos. É o plano do Brasil: depois que escravizou por mais de 350 anos, uma vez que não dava mais para escravizar, a meta era eliminar. Da forma como for possível eliminar, nem que seja abandonando para que, eventualmente, essa população acabe perecendo. Ao ponto que a gente tem, por exemplo, em São Paulo, um governo que aumentou vertiginosamente o número de assassinatos cometidos pela sua polícia e cujo líder principal, o governador, é celebrado pelo mercado, por parte da imprensa brasileira, como alguém que pode ser considerado ponderado, como alguém que pode ser considerado de centro. Ele é o líder de uma política pública de segurança que está eliminando pessoas negras em um nível vertiginoso. Isso é tratado com naturalidade, porque há mortes, há corpos, há seres humanos que são menos humanos do que outros. É é o que a Ynaê fala na abertura do livro dela sobre a comoção com o George Floyd. Pô, é importante que a gente tenha uma comoção aqui, mas é um país em que a gente tem um George Floyd por mês. E muitas vezes são crianças. Que isso não incomode as as pessoas, que seguem tocando a vida delas normalmente, é porque na realidade são vidas que importam menos para essas pessoas.

Queria pensar um pouco com você sobre a importância de rever a história sobre um outro ângulo. De falar, por exemplo, da Revolta dos Malês, que foi uma coisa que eu não estudei na escola. Como foi trazer essas histórias e mudar o protagonismo delas?
É a base de tudo. Eu gostei muito da palavra que você usou, rever. Não se trata de revisionismo, como fazem as pessoas da extrema direita que falam, por exemplo, que o nazismo era de esquerda, mas de olhar novamente. É um outro olhar para o passado, que parte de algo muito pessoal, que é perceber que várias dessas histórias eu não aprendi e que eu gostaria de ter aprendido, perceber que essa experiência pessoal é uma experiência compartilhada e é, ao mesmo, tempo triste. É interessante perceber o quanto ela é compartilhada não só no Brasil, é uma experiência universal, uma experiência dos países em diáspora.
Naturalmente todos os países vão ter aquela história de quem é que conta a história, e ela é contada geralmente pelos vencedores. Então tem tudo isso que foi oculto, apagado. Além de me dar, pessoalmente, um profundo prazer conhecer essas histórias, eu tenho prazer em aprender coisas novas e de ter um objetivo político, que está atrelado à nossa profissão de jornalista, de contar essas histórias.

Como você enxerga esse processo?
Tem algo muito benéfico nisso. A história tida oficial, que a gente aprendeu, é a que ignora a Rebelião dos Malês, que ignora o quanto que o que aconteceu depois de 1850 foi uma sacanagem. E aqui, obviamente, eu não estou fazendo crítica aos historiadores, deixo sempre muito claro a minha reverência a eles, mas estou falando na história mainstream que chega à gente e que não ajuda a explicar por que o Brasil é desse jeito, né? A gente não consegue entender por que um país majoritariamente negro elegeu um sujeito abertamente racista só olhando para a história oficial. É difícil de entender até quando a gente olha para outras coisas mais complexas, mas dá pelo menos uns caminhos. Essa história do Brasil sem conflitos, da democracia racial, que é a grande mentira contada na nossa história e que até hoje ela é muito efetiva e provoca profundos estragos, sobretudo na vida de pessoas negras, ela não ajuda a explicar esse Brasil que a gente tem. Então algo que me deixou muito feliz quando o Projeto Querino foi lançado foi ter o retorno das pessoas de que elas se sentiram mais fortes e com mais munições para encarar a complexidade e estar mais fortes para enfrentar aquele momento da eleição recente mais importante da nossa história. Não só para as discussões no dia a dia, mas para se posicionar mesmo. Esse olhar mais complexo para a nossa história, com mais possibilidades de visão que não só as hegemônicas do principal grupo identitário do Brasil, ajuda a entender melhor o país.

Com o que você sonha?  
Com total representatividade de acordo com a sua proporção dentro da sociedade brasileira. Quando dentro das redações jornalísticas brasileiras, 55% das pessoas — tanto em cargos de chefia quanto nos cargos de repórter, produtor, enfim, todas as demais funções — forem negras, quando os consultores de medicina, 55% forem negros, quando não tiver todo esse abismo que há no oferecimento de saúde pública, nas condições de moradia, no oferecimento de educação. Esse é o Brasil que eu sonho, é óbvio que é muito difícil alcançá-lo, mas é possível, né? E aí tem aquele livro muito legal, Números da Discriminação Racial, do pessoal do Insper [Michel França e Alysson Portela], lá eles fazem uma projeção de quanto tempo vai demorar pra gente alcançar essas coisas. E é bastante tempo. Então o que está sendo feito hoje de promoção dessas iniciativas, de políticas de ação afirmativa variadas, não só na educação, mas no mercado de trabalho, é insuficiente, precisa mais. Senão a gente não vai chegar nesse cenário, e eu acredito que esse cenário é possível. Se eu não acreditasse, não valeria a pena lutar, seria só enlouquecedor. Mas eu acho que essa é a meta, bicho. E o que é muito doido disso, é que um país em que todo mundo tem oportunidades iguais seria melhor para todo mundo. O Brasil é um país muito rico, mas seria rico para todo mundo, então as condições de vida de todo mundo ia melhorar, a nossa produção científica ia melhorar, tudo ia melhorar, absolutamente tudo ia melhorar.

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