O problema é o capitalismo

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Sabe qual o maior problema da esquerda com os eleitores das periferias urbanas, neste momento? O problema é que o eleitor da classe média baixa enxerga, no capitalismo, um espaço para oportunidade. A esquerda vê, no capitalismo, uma máquina de opressão. Muita gente de esquerda acredita que o eleitor está iludido. A gente tem o direito de achar qualquer coisa sempre. Mas a questão não é uma de ilusão. Esse eleitor tem é uma ideologia diferente. Ele interpreta o mundo de uma forma muito distinta. Alguns acreditam que, se explicar bem explicadinho, esse eleitor entenderá. Só que não é por falta de explicação. As pessoas não são burras. Elas compreendem perfeitamente como a esquerda vê o mundo. E, neste momento da história, simplesmente têm uma opinião diferente.

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Vamos entrar nessa conversa? Porque ela é chave. E temos vários sinais de que o descompasso ideológico entre a esquerda e a classe C ficou imenso. Se você me dissesse, por exemplo, apenas um ano atrás, que o Brasil, presidido por Lula, trabalharia ativamente para impedir que a Venezuela entrasse nos Brics, eu não acreditaria. Mesmo.

Vamos recapitular. É importante. Já presidente eleito, Lula se recusou a condenar a Rússia pela invasão da Ucrânia. A Ucrânia, um país soberano, queria ter o direito de celebrar os acordos internacionais que desejasse. Para Moscou, intolerável. Para o presidente do Brasil, era razoável que por conta dessa independência toda ucraniana os russos considerassem simplesmente invadir o vizinho. Gente, eu sei que dentro da esquerda muita gente decidiu abraçar a visão realista da política externa que considera que países grandes têm direito a suas zonas de influência. Tudo certo. Foi exatamente este o argumento dos americanos para distribuir ditaduras militares na América Latina, nos anos 1970. Liberais, como eu, realmente acreditamos na autodeterminação das nações. Realmente achamos que os ucranianos têm todo o direito de assinarem o tratado que quiserem, inclusive entrar na União Europeia ou na OTAN. E isso não autoriza a Rússia a fazer rigorosamente nada. Mas jogo jogado, cada um que se guie pelos métodos de análise que considera adequado.

Lula fez elogios discretos a Daniel Ortega, que já havia fechado a ditadura nicaraguense. Se recusou a classificar o grupo terrorista Hamas de, ora, terrorista. O argumento do governo brasileiro é de que a ONU não o classifica. É verdade. Para ser considerado terrorista pela ONU é preciso que Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido concordem. Bem, sobram muito poucos grupos. A al-Qaeda, por exemplo, que já atacou os americanos, os russos e os chineses, entra na lista. Mas todo o resto é usado de massa de manobra duns contra outros. Então, se você pode ser manipulado por algum membro do conselho de segurança da ONU, está liberado. Pode explodir quantas crianças desejar, pode matar a torto e a direito em quantidade, pode pedir o extermínio de um povo inteiro, pode usar o estupro como arma para ferir, humilhar e subjugar, tudo ao mesmo tempo, que a ONU não considerará você ou o seu grupo como terrorista. Vai ter até gente te elogiando pela capacidade de resistência. Mas o Brasil quer seguir as definições da ONU que, em essência, é nunca tomar decisões éticas próprias. Não ter um critério próprio. Só concordar com aquilo que americanos, chineses e russos forem capazes de concordar ao mesmo tempo. O governo brasileiro foi eleito, quer usar este critério, tudo certo. Pode.

E aí tem Maduro. Com Maduro o tratamento dado por Lula foi muito especial. Em uma reunião do Mercosul, em Brasília, Lula pediu que Maduro viesse um dia antes, ofereceu a ele uma recepção exclusiva no Palácio do Itamaraty, foi defendê-lo na imprensa explicando que esse negócio de democracia é muito relativa.

Então o que aconteceu? Não foi só a eleição claramente roubada, que ocorreu este ano na Venezuela. Não tem ingênuo no Itamaraty ou no Planalto. Todo mundo sabe que a Venezuela pode ter fechado a ditadura, este ano, mas já era ditadura antes. Uma das condições básicas para que um país seja considerado democrático é a liberdade que a oposição tem de se organizar e lançar candidatos. A oposição venezuelana tem seus principais nomes, Henrique Caprilles e Leopoldo López, proibidos de se candidatar há mais de dez anos. Aquilo pode ter se tornado uma ditadura pior, mas ditadura já era faz muito tempo.

Lula não mudou porque passou a achar que a Venezuela era uma ditadura. Lula mudou porque as pesquisas de opinião mostraram para ele, e para todo mundo que está a sua volta no Palácio do Planalto, que o eleitor mudou. Política externa costumava ser uma área sobre a qual presidentes tinham muito espaço para agir sem mexer com as paixões eleitorais. Ninguém prestava muito a atenção. Não é mais assim. No ambiente atual, os eleitores olham para as escolhas de política externa como sinalização de valores. Pode-se gostar dos valores que esses eleitores apresentam, pode não se gostar. Mas o fato é que o que o presidente pensava sobre o mundo tinha quase nenhum impacto em voto. Agora tem. O Palácio do Planalto demorou um ano e meio para entender isso. Mas entendeu com clareza.

E o problema é esse. Os valores do governo Lula podem ser bons ou podem ser ruins. Mas, seja como forem, estavam em descompasso com um grupo imenso de eleitores. E o Planalto entendeu que seguir naquele caminho era suicídio político. Aparecer abençoando a Venezuela nos Brics era jogar fora 2026.

E não foi só isso. Em fevereiro e março, o governo tomou um susto quando os motoristas de Uber se mobilizaram contra a ideia de ficarem atrelados à CLT. O Planalto precisou abandonar seu projeto inicial de dividir quem dirige por aplicativo em três categorias, uma delas como CLT. As pessoas não queriam. E ainda não querem. O presidente vem manifestando isso, às vezes com um certo espanto, mas sempre com clareza. Ele entende que a proposta da CLT não é mais atraente para uma quantidade grande de trabalhadores.

Lula entendeu. O quanto a esquerda entendeu?

A coisa que mais ouço de amigos, de fontes, de comentaristas, de vocês aqui, quando são pessoas de esquerda, é que a direita iludiu a classe C. Agora a classe média baixa, o Brasil das periferias urbanas, acredita que vai ser capaz de crescer. E não vai. A crença fundamental, na esquerda, é de que esse crescimento por conta própria é muito raro, não é possível. Esses dias, em São Paulo, o candidato a prefeito do PSOL, Guilherme Boulos, escreveu uma “Carta aos Paulistanos”. Ele afirma textualmente:

“Reconheço também que, pelo nosso propósito de olhar sempre para os invisíveis, muitas vezes nós da esquerda deixamos de falar com tanta gente que também batalha, sofre o dia-a-dia das periferias e que buscou encontrar sua própria forma de ganhar a vida. A periferia mudou.”

Pois é, não é só Lula. Boulos também está dizendo que compreendeu o recado das urnas. Tem um monte de gente de pesquisa, contratada pela campanha, apontando o dedo ali pros números. Ou tenta reverter o discurso anterior ou vai perder e feio. Ele entendeu que, para ter uma chance de ganhar, precisa falar essas coisas. Mas compreender o que é preciso dizer para o eleitor não é o mesmo que compreender como o eleitor pensa. O problema é ideológico.

Mas sabe qual é o problema? De novo. A política externa brasileira é antiamericana. Onde os Estados Unidos estão, o Brasil está do outro lado. Enquanto isso, o brasileiro médio está sonhando em viver o “Brazilian dream”. Ele quer viver num país como os Estados Unidos.
Vamos lá, porque isso aí é toda uma visão de mundo. O buraco é bem mais embaixo. A visão dominante na esquerda considera que o sistema econômico capitalista divide a sociedade em classes e que quem tem controle do capital subjuga todo o resto. O Estado serve, então, para se impor ao poder econômico e impedir que a sociedade fique desigual demais. Por isso precisa ter muita regra, precisa controlar muito qualquer negócio grande.

Só que, ainda assim, é preciso crescer. É preciso desenvolver. E como se cresce a economia se boa parte do povo é oprimida por quem controla o dinheiro? Só tem um jeito. O Estado define que setores da economia têm maior potencial de aumentar em volume, e estimula essas indústrias. A ideia é que, se crescerem, vão gerar empregos. Empregos de que tipo? Empregos CLT.

O que não cabe, nessa visão de mundo, é a ideia de que uma massa de negócios pequenos possam surgir de baixo. Isso não é possível porque, caramba, ou você acredita que o capitalismo oprime, ou você acredita que o capitalismo é um sistema econômico realmente capaz de gerar oportunidades. Só que, se você acredita nisso, você também acredita que o Estado não deve definir que setores devem ser desenvolvidos. Você não acredita que o Estado deve botar regrinha demais sobre como um estabelecimento pode e não pode funcionar.

Pelo contrário. Você solta, você enxerga a sociedade como uma de poder criativo capaz de inventar coisas novas. Se você acredita num país baseado em pequenos negócios, se acha que a maior parte de empregos vai vir de empresas com dez ou vinte funcionários, aí você não acha que o Estado deve ficar fazendo o jogo de que ramos de economia deverão crescer. O Estado não tem de se meter nessa discussão e nem tem como se estamos falando de milhões de pequenas empresas. Deixa acontecer, vê onde está acontecendo, e entra lá para descobrir que infraestrutura falta para dar a base.

O problema, fundamentalmente, é um de visões muito distintas de mundo. O discurso da esquerda pode mudar, só que, se não mudar a maneira de entender o mundo, o fracasso eleitoral seguirá. Tem alternativa? Tem, claro. Convencer a classe C, metade do Brasil, de que eles não têm qualquer chance sem o Estado ao seu lado. Boa sorte.

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