A direita de Tarcísio

Receba as notícias mais importantes no seu e-mail

Assine agora. É grátis.

Aparentemente, nem um apagão foi capaz de mudar o curso do favoritismo de Ricardo Nunes na disputa pela prefeitura de São Paulo. Guilherme Boulos, do PSOL, está em busca de algum fato novo que altere o quadro. Foi pras ruas, vai dormir na casa dos eleitores, marcou papo com lideranças evangélicas. Só que é muito, muito difícil reverter uma vantagem de quase 20 pontos como a que Nunes apresenta nas pesquisas.

PUBLICIDADE

Dependeria, entre outras coisas, de uma escorregada séria de Nunes. Mas pra um candidato cujo slogan de campanha foi “Ricardo é o caminho seguro” — ou seja, um político que alardeia que uma de suas maiores virtudes é não ser capaz ou não estar disposto a surpreender, dificilmente vai haver alguma gafe.

A gente sabe que, mais do que uma peleja entre Boulos e Nunes, está posta uma briga entre os padrinhos de ambos. Claro que os eleitores vão pensar nos candidatos em si, mas o presidente Lula, o ex-presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, estarão em julgamento também nesse voto.

Tanto é assim que Nunes, jogando na segurança, agendou para esta terça uma pregação pra convertidos: vai fazer uma visita à Igreja Sara Nossa Terra, do bispo Rodovalho, e terá a seu lado Bolsonaro e Tarcísio. E esses dois estão também disputando terreno um com o outro.

Isso porque Bolsonaro regulou apoio a Nunes no primeiro turno. Foi tímido, pra dizer o mínimo, e chegou a flertar abertamente com Pablo Marçal. Tarcísio chamou pra si a missão de reeleger Nunes e, caso isso aconteça, vai poder cantar de galo que a vitória foi mais sua. Inclusive, tem gente na campanha de Nunes bem P da vida de Bolsonaro querer fazer figuração agora, a essa altura do campeonato.

Tem um quarto padrinho nesse bololô todo: Gilberto Kassab. Ele é secretário de Tarcísio, tem ministros no governo Lula e foi cabo eleitoral ferrenho de Nunes. Só não se dá mesmo com Bolsonaro — e o desdém é recíproco.

Cá entre nós, com essa configuração toda, a eleição deste domingo em São Paulo pode selar o futuro de Tarcísio no cenário nacional e apresentar ao Brasil uma provável reacomodação ideológica no campo da direita por um bom tempo. Mas que direita?

A eleição de 2026 está muito longe. E, ao mesmo tempo, é logo ali.

Longe porque, em política, até a véspera pode ter fato novo, confusão, acidente, algo que bagunce tudo. Em 2014, foi a morte do Eduardo Campos. Em 2018, teve Lula tentando ser candidato até os 48 do segundo tempo. Em 2022, teve tentativa de impedir votação nas rodovias do país e deputada bolsonarista correndo atrás de gente armada pelas ruas de São Paulo. Enfim, é o famoso tudo pode acontecer.

Mesmo até o próximo domingo tem coisa que pode mudar e seria leviano da minha parte afirmar que Nunes está reeleito, evidentemente. Agora, a história muda e também ensina e se repete. Virada desse tamanho seria um feito inédito de Boulos.

Isso posto, estou partindo aqui do pressuposto de uma vitória do atual prefeito pra fazer uma análise de como fica a disputa ideológica a partir disso. No caso de uma derrota, eu faço um novo vídeo semana que vem, tá?

Ricardo Nunes não é um político de longa e tradicional linhagem, assim como Tarcísio não é. O prefeito tem aquele perfil clássico do político de direita do MDB paulista, que contrasta com alas mais progressistas do partido. É a escola Quércia, Fleury, que se mantiveram na direita dura, enquanto figuras como Mário Covas e Franco Montoro deixaram o partido para fundar o PSDB, que se embicava para a centro-esquerda. Montoro, aliás, escreveu o programa de fundação do MDB na luta pela redemocratização e, depois, presidiu os tucanos.

Claro que, aos poucos, a curva ideológica do tucanato, ou de sua maioria, foi apontando de volta pra direita. Tanto é assim que, na esteira de João Doria, Bruno Covas se elegeu prefeito com uma aliança entre PSDB, DEM e MDB. Nunes era seu vice.

O que o bolsonarismo fez foi colocar praticamente toda a direita sob suas asas de extremista. Tarcísio ganha proeminência via bolsonarismo. Ele não nega isso, ao contrário. Exalta o ex-presidente sempre que pode e fala, nas manifestações golpistas de que participa, sobre como não seria ninguém sem Bolsonaro. Nunes, por sua vez, rebolou como pôde para comparecer a um evento no Theatro Municipal que tornava Michelle Bolsonaro cidadã paulistana e, em seu discurso, se desmanchou pelo casal.

Até pouco tempo, não havia direita possível no Brasil no futuro que não passasse pelas bênçãos do bolsonarismo.

O problema do extremismo é o tanto que ele torna tudo relativo, né? Palatável. Eu costumo brincar que Donald Trump transformou George W. Bush num estadista, de tão horrendo que é. O extremismo de Bolsonaro faz Tarcísio e Nunes parecerem “moderados”. Mas não é disso que se trata. Palavras importam, né?

A diferença está, entre outras coisas, no compromisso com a democracia. Isso é conceitual, não estou inventando da minha cabeça. A ciência política do holandês Cas Mudde, por exemplo, classifica assim. Então, extremistas são aqueles que querem romper com o regime democrático, mudar o regime. Radicais são aqueles que quebram leis e forçam a barra pra conseguir o que querem, mas não querem a mudança do regime. Ambos são qualificadores dos campos da direita ou da esquerda. A extrema direita de Bolsonaro quer mudar tudo, quer golpe de Estado pra ficar no poder. A direita radical de Pablo Marçal, não. Quer o caos, mas quer o regime do jeitinho que está. E Tarcísio e Nunes, o que querem, o que são?

Gilberto Kassab, ao fazer o tour da vitória com entrevistas pra todo canto, desenhou assim: Tarcísio está na direita. Eu estou no Centro. Juntos, somos a aliança da centro-direita que é majoritária no Brasil.

Errado não está. Com Bolsonaro inelegível e Marçal seguindo pro mesmo caminho, Tarcísio realmente se apresenta como o nome forte da direita hoje. Faltou só Kassab desenhar melhor o que é a direita pós-bolsonaro. Vamos pensar juntos aqui: sempre houve conservadores no Brasil. A esquerda nunca teve mais de 30% dos votos, isso nos bons momentos. Lula se elege com mais que isso porque faz alianças ao centro. E porque é o Lula.

Pensando na direita raiz brasileira, essa que Tarcísio e Nunes representam, do que estamos falando? Ambos me lembram muito Paulo Maluf. Muito. Pra começar, essa é uma direita com grande apreço pela violência policial. As polícias de São Paulo, sob Tarcísio, mataram, em 2024, 78% mais do que em 2023. Dois de cada três mortos pelas polícias eram negros. Teve operação letal pra todo gosto. E a campanha de Nunes passa muito por aí, por armar a Guarda Civil Metropolitana com fuzis, endurecer contra o crime.

Para a direita, endurecer contra o crime é matar bandido. Embora a máxima “bandido bom é bandido morto” não seja de Maluf, era por ela que ele se guiava. Em 2002, candidato a governador, falou que ia botar a Rota na rua — e que ela seria uma “rota violenta”. “Ela vem quente”, ele falou numa entrevista à Folha. “Quem sabe o que é quente entende o que quero dizer.” A gente sabe.
Aqui cabe a discussão sobre se isso é ser radical ou extremista ou “moderado”, pra usar o termo dos analistas. Eu tenho uma defesa muito clara na minha cabeça: qualquer política que afronte claramente os princípios básicos da dignidade humana afronta, também, a democracia. Porque não existe democracia sem esses princípios. Mas sei que isso é controverso.

Vejam, Maluf, Tarcísio e Nunes não querem necessariamente mudar o regime — embora tenham sido ou sejam hoje, um a um, agentes aliados de quem tentou ou conseguiu. Maluf foi prefeito e governador biônico da ditadura. Tarcísio e Nunes estão com Bolsonaro no palanque enquanto ele ataca o resultado das eleições.

Mas, voltando, eles não querem mudar o regime. Mas têm discursos e ações políticas que ferem, por exemplo, o direito de ir e vir dos moradores de favela. Ou, ao lutar contra a educação sexual nas escolas, que ferem o direito das crianças de aprender a se defender de abusos. Só que essa sempre foi mesmo a plataforma da direita, certo?

E aí? Como é que a gente vai conciliar as coisas? Muito se cobra da esquerda sobre como reaprender a conversar com a periferia, o que apresentar a eles de futuro, de esperança, de sonho, de novos caminhos de trabalho.

E da direita? O que se vai cobrar? Porque me parece bastante claro que o diagnóstico de Gilberto Kassab está certo. A centro-direita, mais pendendo pra direita do que pro centro graças ao bolsonarismo, está saindo vitoriosa. Lula, se tentar, até pode se reeleger presidente em 2026, mas será algo fora da curva, fora da tendência real. Como é que a sociedade vai lidar com uma direita que se mantenha truculenta e reacionária no pós-bolsonarismo? A gente só vai agradecer ao fato de que eles não são golpistas e aceitar políticas públicas que não fazem sentido?

Muita água já rolou desde que o massacre em favelas ou em presídios poderia ser perpetrado sem consequências graves. A gente tem uma Constituição cidadã que vigora. O Brasil é conservador? Talvez em boa parte. Mas também já deu sinais de que não quer seguir assistindo ao assassinato deliberado de jovens negros na periferia, ou a políticas discriminatórias com público LGBTQIA+, ou, vale lembrar, negacionismo na ciência e no clima. Ser “moderado”, ou não tentar dar um golpe militar, basta como parâmetro de democracia pra nós? É essa conta que não está fechando pra mim. E que eu acho que Tarcísio de Freitas e Gilberto Kassab devem ser cobrados a responder.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.