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A rebolada da Tertuliana

Nesse fim de semana, a professora Tertuliana Lustosa estava celebrando, no seu Instagram, o fato de que seu livro chegou à lista dos mais vendidos da Amazon brasileira. Se chama Manifesto Traveco-Terrorista e é descrito da seguinte forma:

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“O presente volume traz dois ensaios-manifestos de Tertuliana Lustosa, uma das mais inquietantes pensadoras queers em atuação no Brasil: Manifesto Traveco-Terrorista e Educando com o Cu.Cuceta:

deriva, vasculha, interrupção, ataque, invasão, ocupação, desocupação, prostituição, política de explosão do universal e do colonialismo.

Masculinidade não corresponde a pênis ereto e o desrespeito das categorias de expressividade de gênero se dá também pelos ecos desativados:

o pênis como órgão sexual feminino, o clitóris como órgão sexual masculino, a cuceta em desordem. O corpo como arma. A palavra como gatilho.

Traveco-terrorismo: terrorismo-saber bélico-poético, político-prostético,

ético-hormonal, perspectivo-travesti, tupi-viado, trans-decolonialista,

trans-antropofágico, autonomista-autoetnográfico,

trava-contramachista,

contato-transfilosofia, teoria-putaria. Em tríplice aliança, nossa bomba de efeito moral:

corpo-desconformidade-protesto. Para além das construções de vestes, de gênero e de sexo.”

Deixa eu tomar fôlego, aqui.

Não tenho a mais vaga ideia do que isso tudo quer dizer. Não é por falta de hábito com a densidade dos textos que as ciências humanas produzem no Brasil. Sou um leitor de artigos científicos de historiadores e cientistas políticos, de antropólogos, de sociólogos. Parte do que faço aqui, como jornalista, é jornalismo científico. É trazer para o público geral o que as ciências humanas estão aprendendo, neste momento, sobre o Brasil e sobre a política. E, sim, alguns são brilhantes mas escrevem de uma forma muito hermética. Qualidade de texto não é a capacidade de escrever com palavras complicadas. Qualidade de texto é a capacidade de escrever de forma muito simples explicando temas muito complicados. Este não é um tipo de conhecimento que seja valorizado nas ciências humanas brasileiras. Não se ensina a escrever bem na maioria das universidades brasileiras e, com frequência, até se incentiva a construção desses textos muito herméticos. Então é texto feito para a maioria dos leitores nem se dar ao trabalho de ler. Mas tem um ponto importante: quando se ultrapassa a dificuldade dos textos herméticos, tem conhecimento em boa parte dos artigos que costumo ler da turma de ciências humanas no Brasil.

As universidades brasileiras produzem muito conhecimento. Tem muita pesquisa. Pessoas em quantidade são entrevistadas, números são levantados, documentos difíceis de encontrar são achados. Há método de análise. E, num país conturbado como o Brasil, num mundo conturbado como este em que vivemos hoje em dia, ainda bem que temos uma quantidade grande de bons historiadores, bons cientistas políticos, bons antropólogos, bons sociólogos que nos deem pista do que está acontecendo. A gente precisa deste conhecimento para entender o mundo em volta.
O problema do texto da professora Tertuliana Lustosa não é que ele é hermético. É que ele não é ciência. São palavras jogadas. Talvez tenha algum valor como poesia, aí é para os críticos literários interpretarem. De revolucionário não tem nada, tá? De chocante muito menos. Allen Ginsberg já fazia poesia queer com parataxe na década de 1950. E isso no tempo em que ele podia ser preso por falar coisas assim. Parataxe? Parataxe é esse estilo de palavras e frases justapostas sem conjunções que as conectem. O objetivo é produzir um jorro de imagens, evocar uma reação emocional. E, olha, o Ginsberg era, e segue sendo, um baita poeta. Não é o caso da professora.

Mas por que estamos discutindo ela? Ela está aumentando muito o número de seguidores e vendendo livros à beça, parabéns para ela, e isso tudo porque viralizou. Viralizou por conta da cena, capturada em vídeo, de uma mesa da qual fazia parte no Primeiro Encontro de Gênero do Grupo de Pesquisa Epistemologia da Antropologia, Etnologia e Política da Universidade Federal do Maranhão. Quando lhe passaram o microfone, a professora escolheu fazer uma performance. Ela também é cantora de um grupo de pagode chamado A Travestis. “A” no singular, mesmo. Sentou-se sobre a mesa, agachou de costas até mostrar a calcinha, e cantou a seguinte letra:

“No mestrado da putaria, vou te ensinar gostoso, dando aula na sua pica. Aqui não tem nota, nem recuperação, não tem sofrimento e se aprende com tesão. De quatro, empino o cú. Educando com o cú.”

Tertuliana Lustosa é formada em História pela Uerj, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e cursa o mestrado em Cultura e Sociedade na Federal da Bahia. O vídeo viralizou, claro que viralizou. Há um ano, em outubro de 2023, uma performance super erotizada como essa aconteceu no Ministério da Sáude. A reação da direita é sempre igual. E a turma toda faz a festa, né? Nicholas Ferreira, os Bolsonaros, Pablo Marçal, todos dizendo o seguinte: olha lá para que usam dinheiro na universidade pública. Olha lá o que estão ensinando pros seus filhos.

Para Tertuliana foi muito bom. Ela se tornou mais conhecida, está vendendo mais livros, aposto que suas músicas serão mais tocadas no Spotify, de repente vira um hit aí no Carnaval. Mas a universidade fica como?

Tem um argumento essencial, que vem dessa direita que questiona a universidade, no qual quem é conservador tem toda razão. Nas ciências humanas há uma imensa escassez de vozes conservadoras. A esquerda fala muito de diversidade de pontos de vista, mas isso não vale para inclinação ideológica. Aí é interditado. Vozes conservadoras não são bem-vindas. Não passam em concurso, não viram professores. Quem é conservador percebe isso, claro que percebe. O filho chega para estudar e os professores são todos de esquerda. Não tem debate, não há o contraponto. Isso cheira a hipocrisia num ambiente que se diz plural. E é hipócrita, mesmo.

O eleitor conservador percebe isso e os políticos demagogos que atendem a este eleitor constróem fantasias. Transformam a universidade num lugar onde se planta maconha, onde só há orgias. Numa sociedade em que muito pouca gente tem acesso à universidade, numa sociedade que está rancorosa, que está ressentida, que está com muito medo do futuro, que está tentando se organizar num mundo em intensa transformação, é muito fácil aceitar uma fantasia a respeito do que ocorre nas salas de aula. Porque é um lugar da fantasia, não é? A maioria nunca entra naquele lugar. E uma cena como essa, com a professora cantando “De quatro, empino o cú” enquanto interpreta o verso literalmente, na frente de todo mundo, confirma a fantasia da direita demagógica. É raro esse tipo de coisa acontecer? É. Mas, sempre que acontecer, duas coisas são certas. A estrela do espetáculo vai se dar muito bem nas redes sociais e a universidade vai sair com a imagem muito mais desgastada.

E, olha, diferentemente do que a professora Lustosa defende, um painel sobre antropologia do gênero não serve para isso. O que antropólogos deveriam fazer era estudar as subculturas da sociedade. Botar um olhar sobre aquele grupo e a partir daí, construir conhecimento a respeito de como nos organizamos, os seres humanos. Na antropologia clássica, a ideia de um autoetnografia seria absurda. Não é mais. Alguém pode estudar seu próprio grupo. Mas segue sendo estudo, produção de conhecimento, interpretação a partir do que observa.

Não foi o que aconteceu ali naquele painel. O que aconteceu ali foi uma provocação. Todo mundo ali sabia exatamente o que ia acontecer. Ela sabia. Alguém ia filmar. Aquilo ia parar na internet. Os influenciadores e os políticos de direita iam fazer uma festa, Tertuliana ia se dar bem e ser aplaudida por um pedaço da esquerda de redes sociais, e só haveria uma vítima. Mais um prego seria batido no caixão da imagem da universidade pública.

Não se trata de caretice pessoal, aqui. Com exceção talvez de alguns fetiches nos quais há muita violência física, não há o que pessoas adultas possam fazer no plano sexual, com consentimento, que vá me chocar pessoalmente. Pode fazer na minha frente. A mim, não choca. Pelo contrário, sempre me fascina, sempre me interessa. A variedade humana me interessa. Mas isso sou eu, a educação que meus pais me deram, as coisas que vi e vivi e os mundos pelos quais transitei durante cinco décadas. Tenho plena consciência de que sou um porraloca. O brasileiro médio não é. Porque outra coisa que aprendi, lidando com a variedade humana, é que as pessoas se chocam. E tem coisas que são feitas com uma única intenção. A de chocar.

Se não é caretice, então o que é? O problema é um de comunicação. A gente perdeu a capacidade de conversar. Não é só conosco, é em todas as democracias. Aí a gente volta lá pro início da nossa conversa. Perdemos a capacidade de explicar coisas complexas de forma simples. O Brasil é um país no qual há muita homofobia e, com pessoas trans, o nível de preconceito e de violência é maior. Por isso mesmo, estudar gênero, estudar sexualidade, é fundamental para produzir conhecimento a respeito de como isso, a variedade que há em nossa sexualidade, se apresenta na cultura brasileira. E, com este conhecimento, precisamos ser capazes de explicar quem somos. Em que somos diferentes e em que somos iguais porque, olha, em muitas coisas somos iguaizinhos. Quase todos sentimos tesão. Quase todos nos apaixonamos. Quase todos temos nosso coração partido em algum momento da vida. Quase todos sentimos ciúme. Quase todos vivemos momentos de confusão nessa complexa relação entre o tesão e o amor. Isso é parte da experiência humana.

Essa parte tão fundamental da experiência humana deveria despertar conversas profundas, difíceis, e por isso mesmo muito necessárias. Conversas com o objetivo de despertar empatia. De mostrar o que há em comum entre todos nós. Mas se o primeiro ato é o de chocar, é o de mostrar justamente aquilo que vai alimentar o preconceito, você terá uma performance para as redes sociais. Tertuliana saiu satisfeita e Nicholas Ferreira saiu satisfeito. Os progressistas de rede social, claro, saíram muito satisfeitos porque mostraram que eles não têm preconceitos, diferentemente daqueles outros. Os influenciadores de direita, idem, puderam mostrar a degradação da universidade pro seu público. Para todos estes, foi muito bom.

Para o reencontro necessário entre brasileiros? Aí não. Para o avanço da causa de travestis ou transsexuais contra preconceito e violência? Isso não aconteceu. E o papel da universidade, que é o de gerar conhecimento e levar este conhecimento à sociedade? Nem conhecimento foi gerado, muito menos foi levado a ninguém, não.

Aliás, a principal vítima de todos, aí, foi a universidade. A instituição. Vítima de quem deveria protegê-la e não entendeu ainda como o jogo se dá.

Ou entendeu e não está nem aí.

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