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Maria Beraldo estica a corda do pop em seu segundo álbum

Foto: Ivi Maiga Bugrimenko

Talvez você ainda não tenha ouvido falar em Maria Beraldo. No jogo da música de algoritmos, em que o novo compete sempre com o que já é conhecido e está amplamente disponível, o melhor da produção nacional não raro existe em um universo para iniciados, a despeito da qualidade e da disposição para um diálogo mais aberto. Mas talvez você tenha ouvido Maria Beraldo e não saiba. Em trilhas de filmes nacionais como Regra 34 e Levante, nas últimas peças de Felipe Hirsch com o coletivo Ultralíricos, nos excepcionais discos de sua banda Quartabê, em que fez releituras sofisticadas de Moacir Santos e Dorival Caymmi.

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Depois de seis anos do lançamento de seu primeiro disco, CAVALA, que tem como temática sua saída do armário, agora ela vai ainda mais longe tanto na pesquisa musical, como em explorar o universo do desejo sexual lesbico – talvez não-binário –, em seu segundo álbum de estúdio, Colinho, lançado na última sexta-feira pelo selo RISCO.

Produzido Tó Brandileoni, CAVALA, para além das questões de gênero, era um disco em diálogo profundo com a MPB, com as canções Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil ao mesmo tempo em que flertava com o pop gringo de uma Rihanna. Seis anos depois, Maria Beraldo volta à parceria com o produtor. Essa ligação se torna mais sutil e a paleta de influências se expande: vai do funk – o dos pancadões, não o de James Brown –, à improvisação jazzística, do folk pastoral inglês ao samba. Mas ainda existe esse fio que liga os grandes do passado ao mundo de hoje, só que de forma mais oblíqua. Um exemplo é a canção Masc, parceria com Ana Frango Elétrico, com sua letra em inglês evoca os versos de Fernando Brant na composição de Milton Nascimento Bola de Meia, Bola de Gude, para falar do menino que habita seu peito.

A presença do inglês em boa parte do disco é uma novidade, e entra em momentos decisivos, talvez num desejo de tornar a nova música brasileira mais acessível para ouvidos de fora, talvez como tradução desse mundo cada vez mais dominado pela língua estrangeira. Quatro das onze canções do disco recorrem ao idioma de Shakespeare: Ninfomaníaca, Matagal e I Can’t Stand My Father Anymore, além de Masc.

Em Colinho, sejam em português ou em inglês, as canções formam um arco narrativo. Nada que soe como um disco conceitual clássico. Mas a pluralidade de enfoques sobre sexo e desejo que permeia as letras revela aos poucos as diversas facetas dessa persona que trafega entre o tesão e a tensão.

O disco começa potente com o funk que dá título ao álbum. Uma cena tórrida em que o colo é menos aconchego e mais as sarradas do funk: “Me leva no dedo molhado o cheiro, o gosto da tua/ viaja esse mundo lembrando do peso da minha bunda no teu colinho”, diz a letra marcada pelos beats e samples dos cariocas Os Fita, que acompanham o ícone Tantão.

Logo na sequência, já mostra o jogo de claro-escuro que vai acompanhar boa parte do disco, indo para sua versão de Baleia, música que compôs com Kiko Dinucci e Juçara Marçal e aparece pela primeira vez na voz de Juçara em Delta Estácio Blues, num jogo poético mais sutil, mas não menos sensual. Volta à alta carga explícita em Ninfomaníaca e tem quase um interlúdio em Guma, em que desloca totalmente o foco lésbico para criar uma leitura de um trecho de O Quarto de Giovanni, romance que se tornou um clássico da literatura gay escrito por James Baldwin em 1956. Abre essa porta mais não-binária, em que a questão de gênero se torna mais fluida. Fuidez cortada por Truco, com seu “consolo sólido”, objeto fálico que aparecerá novamente em Masc.

A partir daí entra-se em um bloco de músicas em inglês. Começa suavemente com Matagal, a mais romântica do disco, parceria com Zélia Duncan, aproveitando ao máximo a voz da convidada em um arranjo bem folk com violões e um baixo acústico lindo. Mas o bucolismo terno é cortado pela radical I Can’t Stand My Father Anymore, com sua risada teatral, e letra minimalista quase retirada de um manual freudiano com a afirmação “Não suporto mais meu pai” seguida da pergunta “Será que é por isso que sou lésbica?” Seguindo na radicalidade, entra Crying Now, dominada pela bateria frenética de Sergio Machado, para depois desembocar em Masc, que não só brinca com o uso de instrumentos acústicos (piano, baixo) e eletrônicos (synths, beats), como intercala melodias tonais com um refrão mais torto, que lembra Frank Zappa.

A tensão vai se dissolvendo quando entramos a última música autoral do álbum, Quem Sou Eu, parceria com Negro Leo, em que a lente se abre para além das suas questões umbilicais, trazendo um olhar ácido para o mundo. A resolução desse colinho na montanha russa vem com um clássico, uma linda versão para o samba de João Nogueira e Paulo Sérgio Pinheiro, Minha Missão, em um arranjo em que o cavaquinho de Rodrigo Campos e o sax de Thiago França trazem o som para um lugar conhecido, não sem tristeza. É um final em que o cantar e a música são paixão e conforto, e servem de epílogo para a narrativa: “Quando eu canto/ É para aliviar meu pranto/ E o pranto de quem já tanto sofreu”.

O mais interessante em toda essa jornada que vai do funk ao samba é justamente como Maria Beraldo consegue subverter as convenções da canção brasileira nesse disco, alternando ritmos, brincando com beats, entremeando melodias límpidas e dissonantes, usando estruturas clássicas e fragmentadas, eletrônica e quarteto de cordas. De certa forma, é um álbum que também espelha seu próprio caminho musical, partindo do choro, da música cerebral de Arrigo Barnabé, das improvisações da Quartabê e do encontro de uma voz só sua, que é doce, forte, sensível e rascante, cheia de amor e de tesão, inquieta sempre.

E faz isso tendo como companheiros alguns dos músicos mais criativos em atividade, Chicão, Lelo Bezerra, Fábio Sá, Thiago França, Marcelo Cabral, Sérgio Machado, Ana Frango Elétrico, Os Fita, Negro Leo, só para citar alguns. Não é exatamente um disco fácil de ouvir, mas pensando em termos de composição, arranjos, temática e diálogo com a música contemporânea de diferentes estilos, assegura seu lugar entre os melhores da produção brasileira atual.

 

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