Existe racismo reverso?
Hoje, num dos meus grupos de WhatsApp, um amigo querido fez uma observação espetacular. Quem se identifica como de direita, hoje, tem mais liberdade para pensar do que quem é de esquerda.
Eu sei que essa ideia causa incômodo. Mas guarda ela. Vamos trabalhar outra coisa, aqui, outra ideia. Um acontecimento.
A Iza, a cantora Iza, teve sua filha. Se chama Nala. Hoje de manhã era o destaque do noticiário de fofocas na imprensa brasileira. Foi destaque não pelo nascimento, que ocorreu no domingo, mas por conta dos ataques que a menina recebeu. Sim, ataques. Vamos lá: Iza mandou publicar, nas suas redes, uma foto da mãozinha do bebê. E, pela foto, parece branca. Normal. Somos um país mestiço. O pai da menina é o jogador de futebol Yuri Lima. Branco. Além do mais, vai por mim. Tenho três filhos. As primeiras fotos, ainda mais uma foto só de mão, dizem muito pouco sobre a aparência daquela criança. E isso importa?
Um sujeito escreveu o seguinte no Twitter: “Nossa, a menina nasceu branca? Coitada.” Outro, esse foi destacado por um jornal. “A Iza palmitou, levou chifre de branco, e mesmo sendo um símbolo feminista preto, vai passar o resto da vida amando a filha branca de um claro básico.”
Palmitar, para quem não conhece a gíria, é a pessoa negra que se envolve com uma pessoa branca. Essa pessoa negra está “palmitando”. Sim, a expressão vem do palmito, que é branco. Ninguém usa, sei lá, a expressão “carvoar”. Imagina se alguém usasse, né?
Olha, Iza não é a primeira a viver isso. As redes sociais são o espaço da barbárie, o lugar em que as pessoas deixam o superego na porta antes de entrar. E imagino que a maioria de vocês já deve ter estado bastante próximo de uma mulher que acabou de ter filho. Ou, no caso das mulheres, viveu isso. Viveu o momento de dar à luz. É um instante de fragilidade muito particular, um turbilhão de emoções, ainda mais quando acontece pela primeira vez.
Qual o limite pra perversidade humana? Porque a palavra é essa. Perversidade. Quando uma pessoa extrai alguma forma de prazer de se comportar numa forma que machuca, que é irrazoável, com maldade nas palavras com o objetivo claro de ferir, o que essa pessoa está sendo é isso. Perversa. De onde vem o prazer? O que essas muitas pessoas que atacaram Iza e sua filha estão dizendo é que, de alguma forma, Iza traiu o movimento negro, traiu o seu povo ao se misturar com pessoas brancas, e se deu mal com isso. Se deu mal pela traição do marido, e se deu duplamente mal porque foi condenada a amar uma filha que será branca.
O que NÃO apareceu no noticiário sobre esses ataques foi uma palavra. “Após Iza anunciar nascimento da filha, Nala é vítima de ataques na web”, disse um jornal. “Nala, filha de Iza com Yuri Lima, é vítima de ataques nas redes sociais”, disse outro. “Filha de Iza com jogador Yuri Lima sofre ataques na internet.” Ataques, ataques, ataques. Mas ataque de que tipo?
A palavra ausente em todos estes títulos é uma palavra que não estaria ausente se ocorresse o contrário. Se uma mãe branca tivesse o filho de um homem negro que a traiu e a criança nascesse com a pele mais escura, se neste caso ataques iguaizinhos ocorressem, do que os jornais chamariam? “Coitada, vai ter de passar o resto da vida amando um filho negro de um escuro básico”.
Como seriam os títulos? Qual é a palavra ausente? Por que toda a imprensa tem medo de chamar pelo nome o que é um evidente festival de atos racistas?
Bem, o problema tem tudo a ver com o que meu amigo apontou. Há um ambiente no qual o nível de patrulha está tão alto, o nível de intimidação sobre o pensamento é tão violento, o risco que um cancelamento pode causar a uma reputação é tão grande, que as pessoas se calam.
E aí? Existe racismo reverso?
Por três séculos, boa parte da produção no Brasil se deu por mão de obra escrava. A escravidão existe desde a Revolução Agrícola, quando aprendemos a plantar, dez mil anos atrás. Era uma escravidão diferente, quase sempre vinda do espólio guerra, ou então como pagamento de dívidas. A pessoa escravizada, nas culturas da África, da Ásia e da Europa, eram em geral os inimigos conquistados. O que não havia era a ideia de superioridade racial.
A Renascença e a Era dos Descobrimentos mudou o sistema econômico europeu. Caiu o Feudalismo e começou o que chamamos de Mercantilismo. Este é um sistema no qual a economia é completamente controlada pelo Estado e se baseia na exploração. Estamos falando, claro, de Estados cujo poder era concentrado nas mãos de reis e alguns poucos aristocratas. No mercantilismo não existe a ideia de construção de riqueza, o jogo é de soma zero. Se uma nação enriquece é porque a outra empobrece. Em grande parte por isso, o mundo mercantilista se baseou no colonialismo, na exploração de terras distantes por nações poderosas. Para uma nação pequena como Portugal entrar nessa disputa de construção de impérios, ela precisava encontrar mão de obra em algum lugar. E não ia encontrar vencendo guerras. Não tinha gente sequer para formar um exército poderoso. A solução foi inventar um novo tipo de escravidão. Uma escravidão baseada em raça, baseada na ideia de que há diferença entre seres humanos. Que uns são biologicamente superiores aos outros.
Isso é puro lixo científico, mas ainda não havia ciência como a compreendemos. O fato é esse e é importante compreendê-lo: a escravidão que houve na América Latina, no Caribe e nos Estados Unidos é uma invenção portuguesa, do período do Mercantilismo, a partir do finalzinho do século 15. É a invenção da escravidão pela crença de superioridade biológica de um grupo de seres humanos em detrimento do outro. É também um argumento cínico. O problema dos portugueses é que eles precisavam de uma quantidade de gente pra fazer, nas colônias, um trabalho que eles nem tinham número para fazer, nem estavam dispostos a executar.
O Brasil tornou a escravidão ilegal num período em que a eugenia estava na moda. Era uma explicação pseudocientífica para justificar o racismo e a República, que nasceu junto da abolição, teve como ideologia vitoriosa o Positivismo que era eugenista. Os primeiros dez presidentes tocaram uma política de trazer imigrantes europeus para embranquecer o Brasil. Aconteceu aqui, na Argentina, no Chile, por toda parte. Aqui o resultado foi o de não integrar a imensa população negra na cidadania. Não demos, os brasileiros, acesso a educação, a possibilidades de ascensão social.
Mas sempre tivemos uma relação de muita ambiguidade com a questão da raça. Eu estou aqui. Eu sou branco. Meus dois irmãos são louros, porque minha mãe era loura. Mas quando moramos nos Estados Unidos pela primeira vez, meu pai é professor universitário, mais de uma vez ele foi parado com minha irmã pequenina no colo. Ela, de cabelo branco. Ele, aos olhos americanos, negro. Essa não é uma história minha, pessoal. É a história de incontáveis famílias brasileiras. Houve um tempo em que tivemos uma esquerda capaz de celebrar o fato de que somos um país mestiço. Saudades de Darcy Ribeiro. Um país com uma cultura forte justamente por ser uma cultura misturada que tem farofa tupi, vatapá africano, cozido português, macarronada italiana, cerveja alemã, peixe japonês. Tudo isso nos pertence. Tudo isso é nosso. Pertence a brasileiros porque a gente foi incorporando essas coisas todas à nossa cultura. E antes que vocês reclamem do peixe japonês, me diz em que outro canto do mundo entra manga no combinado de sushi?
Temos uma conta grande a ajustar com a escravidão. Construímos um país em que há menos oportunidades para pessoas negras. Em que a vida é bem mais difícil para quem é pobre e, em sendo pobre, as chances de ser negro são maiores. Isso se resolve, inclusive, com políticas de ação afirmativa. Este é um dos problemas urgentes que a República brasileira tem para resolver.
Só que existe uma febre dentro do movimento antirracista, uma doença que surge na forma de racismo. Alguém inventou esse slogan, “não existe racismo reverso”. Aí todo mundo fica repetindo sempre que alguém ousa dizer: esse ataque aí é racista. A intenção por trás dos slogan é a seguinte: racismo está no sistema, na estrutura da sociedade, não num ato isolado. Portanto negros são vítimas de racismo porque o Brasil é mais difícil para eles do que é para brancos. É verdade. A vida, no Brasil, é mais difícil para quem é negro.
Mas também é verdade que este raciocínio se torna um refúgio canalha para que as pessoas se sintam à vontade para despejar ódio em cima de uma mãe que acabou de dar à luz e uma criança que tem dias de vida.
A mecânica do identitarismo é a do cancelamento. É a de vigiar as ideias reproduzidas para que ninguém do mundo progressista ouse desviar um suspiro que seja da cartilha das ideias aprovadas. Isto é um macarthismo, só que de esquerda. Assim, toda a imprensa fala dos ataques mas não os chama pelo que são. Não os chama de racistas. É ódio racial. É alguém olhar de cima pra baixo para outro ser humano por conta da cor da pele daquela pessoa.
Interditar a denúncia do racismo desses militantes faz mal à esquerda, faz mal ao movimento das minorias e faz mal ao Brasil. Pode ficar um bando de professor e intelectual de Twitter destilando seu Foucault pra explicar que não há possibilidade de racismo reverso. E, no entanto, ódio racial continua sendo a mesma coisa. É o mesmo conjunto de afetos que tocava os feitores portugueses, que embalava os nazistas, que ainda hoje inspira a Ku Klux Klan.
O mundo progressista tem imensa facilidade de gritar golpe, de gritar fascista e morre de medo de apontar um tipo de racismo cotidiano que está surgindo em parte da esquerda brasileira. Ainda assim, podem seguir destilando todo o pós-modernismo em racionalizações, porque não adianta. Os professores da USP, os jornalistas, os influenciadores progressistas ficam intimidados, sim. Mas o povão, na periferia, percebe com toda clareza que isso é hipocrisia. É claro que isso afeta a credibilidade da esquerda. Toda hipocrisia, e esta hipocrisia é flagrantemente transparente para todo mundo que não está morrendo de medo de ser cancelado no Twitter, toda hipocrisia afeta credibilidade.
Gente, o rei está nu. Que tal começar a dizer isso com clareza?