Apagão da Enel: vai todo mundo perder

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Eu estou com luz aqui pra gravar esse vídeo, você deve estar com luz na ponta daí para assistir — mas quem está num dos 220 mil imóveis ainda sem eletricidade na Grande São Paulo não vai conseguir ver esse ou qualquer outro conteúdo.

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Bom, dos males o menor, né? Tem gente precisando ligar respirador em bateria de carro pro parente sobreviver. Tem restaurante jogando toda comida no lixo, o setor de varejo e serviços estima o prejuízo em algo perto de R$ 1 bilhão e 600 milhões.

E aí? A culpa é de quem? Olha, diferentemente dos responsáveis pela distribuição de energia eu aqui vou distribuir culpa pra todo lado.

E não adianta querer vir com visão simplista pra esse papo. Foi esse tipo de enfoque por parte dos vários governos e da iniciativa privada que nos trouxe até aqui. O problema do apagão em São Paulo é complexo, é antigo e não admite simplificações baratas e eleitoreiras.

A começar pelo mais complicado de tudo: a ideia que o Brasil tem de si mesmo e do modelo de desenvolvimento e sustentabilidade que quer para si.

Você acha que falar de apagão é só pensar no lado da Enel? Calma que a gente chega na culpa deles.

Mas é preciso entender que as escolhas que nos trouxeram a esse caos são muito mais estruturais do que fazer ou não um contrato com uma empresa ruim de serviço.

Na origem desse modelo de privatização da distribuição de energia deveria estar embutido o projeto de longo prazo de aterramento de fios, de fontes alternativas, de previsão das mudanças climáticas e mitigação de riscos. E, cá entre nós, eu posso te garantir que nada disso estava lá.

Assim, pelo menos não expressamente. O contrato de concessão da Enel é original de 1998. Foi quando o governo do estado de São Paulo, na gestão do Mario Covas, desmembrou a Eletropaulo em quatro e vendeu em pedaços. Um desses pedaços virou a AES Eletropaulo, que depois foi comprada pela Enel.

As privatizações das distribuidoras de energia elétrica eram parte de um plano amplo do governo federal de Fernando Henrique Cardoso. Foi uma escolha compartilhada, era uma visão de mundo em comum dos governos tucanos e teve apoio da maior parte do Congresso da época.

Então, é assim: a concessão da Enel é estadual, os estados é que definem sobre as suas concessões. Isso é assim no saneamento também, tanto que o governo do Tarcísio de Freitas está em vias de privatizar a Sabesp. O gás canalizado é assim também.

Só que nesses outros serviços há agências reguladoras estaduais que fiscalizam a execução do serviço. Na eletricidade, isso está concentrado na mão da Aneel, que é uma autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia.

Daí, tem uma outra parte, que é a responsabilidade evidente da prefeitura da cidade, de cuidar da zeladoria, da poda de árvores, e tudo mais, para garantir que haja o mínimo de condição para o serviço ser prestado.

E tem a parte da própria empresa, né? De investir, ter funcionário e equipamento preparado, não mentir para os clientes.

É por isso que você, que conseguiu carregar seu celular ou ligar sua TV, está assistindo a esse jogo de empurra. Tem culpado pra todo lado. É um consórcio de culpados. E o desesperador é que a única forma de superar esse problemão envolveria o material mais escasso do mercado político atualmente, mais escasso do que semáforo funcionando em São Paulo: união de vontades políticas distintas.

Quer papear sobre isso?

Olha, ventou muito nesta bendita terra querida de São Paulo na sexta, viu? Teve meme de que o furacão Milton tinha mudado de rota, teve shopping destelhado, o evento climático realmente foi extremo.

Como serão cada vez mais extremos, se é que dá pra usar essa expressão, os eventos climáticos daqui pra frente. Quem não aceitou isso ainda não entendeu nada. Pior: já dava para saber isso três décadas atrás. A Rio-92 foi em… 92.

Por isso, fazer um programa de privatização da distribuição de energia elétrica do Brasil devia, necessariamente, prever adequações a essas mudanças do clima. Aterrar fios devia ser cláusula zero de concessão. Se os ventos e as chuvas vão ficar mais intensos, não dá pra imaginar que poste de eletricidade e esse emaranhado de fios pelas cidades sejam algo sustentável.

Então, quando você ouvir algum cara de pau culpar o vento, bem, sim, o vento faz árvore cair em cima de fio e isso interrompe o fornecimento de energia. Nessa conta absolutamente obtusa, tá certo. A Enel tentou sacar essa carta aí.

Ah, então é só tirar todas as árvores da cidade? Bom, além de essa ser uma ideia ridícula, aí vai ter mais enchente e mais calor e mais vento e seca e chuva, tudo extremo. Não dá, né?

O que precisa é de uma zeladoria cuidadosa, o que não deixa de ser um pleonasmo se pensarmos na palavra zelo. E quem cuida disso é prefeito, tá? São Paulo é uma cidade com poucas regiões arborizadas. Eu tenho o privilégio de morar em uma delas. Choveu, eu já sei que vai cair árvore ou galho grande nas ruas do meu bairro. O problema não é ter muita árvore, é não ter quem avalie quais estão podres, quais precisam de uma simples poda, quais servem para qual ambiente. Quanto mais árvore na cidade, melhor! Só que não é só largar as árvores lá. Se não, elas vão, sim, cair em cima dos fios e destruir tudo.

Então, é só aterrar os fios? Acontece que jogar a fiação para uma malha subterrânea é algo caríssimo, demorado e custoso politicamente. Dificilmente um prefeito vai ter os resultados em um mandato e, com uma cidade inteira em obra, talvez não se reeleja pra ver o efeito de sua aposta render frutos políticos.

Essa briga é looooonga. Em 2005, o então prefeito José Serra sancionou uma lei que obrigava as concessionárias a enterrar todos os cabos da cidade. Dez anos depois, o prefeito era Fernando Haddad e ele publicou uma portaria exigindo que 250 km de fios fossem retirados dos postes a cada ano. A medida foi suspensa por uma liminar da Justiça a pedido do sindicato das empresas do setor. Elas alegavam que isso custaria R$ 100 bilhões e levaria 33 anos, e isso seria repassado na conta de luz dos clientes.

É verdade, as concessionárias também não conseguem arcar com o custo sozinhas. Pra você ter uma ideia, a cidade de Londres iniciou um processo de aterramento de fios em 2020 pra atender só a parte Sul da cidade e o plano prevê gastos de 1 bilhão de libras, tipo 7 bilhões de reais, e sete anos de obras. É inviável ficar na mão de um ente só.

Quem certamente poderia ajudar nisso? O governo estadual de São Paulo, por exemplo. A sede do governo é na capital, que é o polo financeiro do país e teria os benefícios também no turismo, sem falar do urbanismo. Com a força do governo do estado, se poderia captar recursos com o BNDES ou financiamento estrangeiro mesmo pra uma obra dessas. Veja que não se trata de botar tudo na conta do Estado, mas o papel de liderar esse processo passa por alguém com capacidade pra isso, pra mobilizar fundos de diferentes tipos, tanto públicos quanto privados.

Só que o gestor Tarcísio de Freitas prefere gritar que a culpa por tudo isso é da Aneel, a agência reguladora federal. Eu já chego nela, tá? Permita-me só apontar que, enquanto isso, Tarcísio estuda privatizar uma fazenda de pesquisa e desenvolvimento onde existem exemplares únicos de diversas espécies de café e a população mais antiga do mundo de plantas de café arábica.

Sabe o que isso quer dizer? É colocar na mão da iniciativa privada, de empresas cujo único interesse é o lucro, a pesquisa tecnológica para se criar variantes de café mais resistentes, por exemplo, às mudanças climáticas.

O mundo está mais quente, as plantas resistem menos, a gente tem aqui equipe e conhecimento pra se manter como o maior produtor e exportador de café do mundo, tive uma ideia, vamos vender? E olha que nem vou entrar no mérito da privatização da Sabesp.

Pois bem, daí chegamos ao governo federal. O ministro de Minas e Energia atual é Alexandre Silveira, do PSD, de Gilberto Kassab, secretário de Governo de Tarcísio de Freitas. Esse é o problema de jogar nas 11, né? Kassab apoia Nunes e Tarcísio, que andaram maldizendo Silveira e sua gestão no ministério. No ano passado, no apagão de novembro, Kassab já havia sinalizado que talvez quisesse a cabeça de Silveira, alegando que o ministro de seu partido era indicação de Rodrigo Pacheco, também do PSD, e não sua.

Fato é que quem conhece Brasília e os meandros das minas e energia sabe que Silveira chegou ao posto mais por sua influência política em Minas Gerais e por seus excelentes contatos com construtoras, por seus anos de DNIT mineiro. É um típico ministro do Centrão de Lula, da frente ampla que acomoda interesses diversos, muito além daquele espírito público tão desejável.

Coincidência ou não, Silveira estava em Roma, num evento do grupo Esfera, do ladinho do diretor global da Enel, fazendo juras de que o contrato de concessão seria renovado, bem na hora do apagão de sexta. Agora, garante que a culpa pela ineficácia de seus amigos da Enel é da falta de fiscalização e pressão da Aneel.

Vejam bem. Agências reguladoras não são bem quistas por quase ninguém. Não há cristão no poder público e privado que goste de ser regulado. Políticos de direita juram que é só inchaço da máquina. Políticos de esquerda asseguram que são todas comprometidas com os interesses do mercado. O mercado diz que elas são só entrave. E, assim, a única união que você vai ver hoje em Brasília é na grita pra mudar as leis que regem as agências reguladoras.

Valeria lembrar que servidores de carreira de várias agências seguraram muitas das loucuras da gestão bolsonarista. A Anvisa é um exemplo claro. Com certeza, não é o único.

Acusar a Aneel de ser bolsonarista hoje é uma distorção. Parte da diretoria foi sim nomeada no governo Bolsonaro, mas em sua maioria são servidores de carreira, alguns inclusive tendo passado pelos governos de Dilma Rousseff ou por sua gestão no ministério de Minas e Energia.

A Aneel pode ter problemas, ou melhor, certamente os tem. Mas vem fazendo a fiscalização do contrato com a Enel, exigindo as mudanças e aplicando as sanções previstas no contrato. O que pode haver é problema na construção do contrato pra começo de conversa. E aumentar o poder de fogo e barganha das agências é o caminho, não enfraquecê-las ou desmontá-las.

Então, não adianta sair bravateando que quer romper contrato, ou que o presidente Lula poderia fazer isso numa canetada. Não, há etapas legais a se cumprir para isso e elas provavelmente não seriam cumpridas antes de 2028, quando a concessão expira.

Qual a luz no fim do túnel, já oferecendo desculpas pelo trocadilho? Teria de se aproveitar o momento pra juntar o prefeito da cidade de São Paulo, o governador do estado, o ministério, a agência reguladora e a empresa concessionária e bolar um projeto de longo prazo, distante de qualquer retórica eleitoral. Sabe aquele sonho que a gente, cidadão, sempre cultivou? De conversas que superem governos e sejam de projeto de país?

Gilberto Kassab é presidente do PSD, o partido que mais cresceu nas eleições municipais. Tem o ministro das Minas e Energia, é secretário do governador, apoia o prefeito. Seria a oportunidade perfeita para mostrar sua grandeza política, essa commodity tão escassa.

Falando nisso, corre pra colocar seu celular pra carregar, se você está com luz.

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