‘Quarto de Despejo’ no ouvido

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Num primeiro momento, estranhei. Aquela voz que preencheu minha imaginação quando li Quarto de Despejo, obra mais famosa de Carolina Maria de Jesus, dotada daquele sotaque mineiro amalgamado de paulista, próximo do que ouvia nas ruas quando criança, estava deslocada geograficamente. Ao ser escutada na voz da atriz Tatiana Tiburcio, me tirava da favela do Canindé, na zona Central de São Paulo, e me colocava em alguma comunidade do Rio de Janeiro. Mas o que é a magia da atuação. Algum tempo depois de embarcar na viagem de pouco mais de sete horas que dura a versão dessa obra, lançada agora em audiolivro pela Supersônica, já tinha recuperado a imagem mental da minha Carolina Maria, construído aquele espaço dos barracos de madeira e chão batido, da sujeira, as ruas centrais com papeis por catar, os contornos das personagens em pé de guerra, e já estava me lixando para os eventuais “tumatchs” e “Alixandrisch”.

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Quarto de Despejo é um livro fundamental da literatura negra brasileira. Foi lançado em 1960, a partir de 35 cadernos que Carolina guardava como os bens mais preciosos em seu barraco.  No livro, não são poucas as vezes em que ela sublinha que não gosta de álcool, prefere os livros. E a escrita, em seus diários, se torna tanto uma arma como um escudo. Nas brigas na favela do Canindé, ela diz: “vou colocar você no meu livro”. Uma forma de transformar a injúria em ataque.

Se existe uma literatura periférica brasileira, é por conta dos caminhos abertos por esse livro, que hoje é adotado em escolas, mas que durante muito tempo foi alvo de críticas, justamente pelo que ele tem de melhor, a tradução fiel da oralidade daquele tempo. E, claro, também alvo de preconceito. Muito críticos atribuíram ao jornalista Audálio Dantas, que fez a ponte para a primeira edição, a escrita do diário de uma favelada.

Uma coisa muito legal da versão que sai agora pela Supersônica é justamente a possibilidade de fazer com que a obra de Carolina possa transitar também para quem está mais acostumado a ouvir histórias do que a lê-las. Além do cuidado da editora em criar uma experiência única a partir dos textos que resolve licenciar. Para isso, há não só uma busca pela voz, como uma direção cuidadosa.

No caso de Quarto de Despejo, a direção é de uma das sócias da Supersônica, Daniela Thomas.  Na conversa que o Meio teve com duas das quatro sócias da editora, Maria Carvalhosa e Mariana Beltrão, Maria disse que “esse é um livro canônico, e a gente sempre teve interesse pela Carolina e por esse livro especificamente”, diz. “Estava na nossa lista de desejos desde o começo, quando a Supersônica era só uma ideia, para dar a esse livro a interpretação que ele merece”, completa Mariana.

Depois dessa introdução, não consegui deixar de perguntar por que a escolha de uma carioca para dar a voz de Carolina. A primeira reação foi uma risada geral, e dizer que ela tinha sido a menos carioca que testaram antes de resolver lhe dar o papel. “A Tatiana Tiburcio é uma atriz espetacular e já tinha uma relação com esse livro. Além de gostar muito do livro em si, ela já tinha trabalhado com ele em peças de teatro, em leituras. E daí eu, a Mariana, a Daniela e Juliana [Bitelli, coordenadora editorial Supersônica] fizemos uma reunião com ela por Zoom. Quando a Tati começou a ler, todo mundo começou a chorar. Porque parecia a voz da Carolina. Todo mundo ficou meio assim. A Daniela quase caiu para trás”, conta Maria.

O tom certo

Uma preocupação que a Supersônica tem – e imprime em seus audiolivros – é de encontrar o tom certo para cada obra. “Quando a gente foi gravar o Vidas Secas [de Graciliano Ramos], foi atrás de um alagoano. O escolhido foi o Erom Cordeiro, que já saiu de Alagoas há milênios, ele nem tem mais sotaque. A gente resgatou um sotaque dele. No começo até demorou um pouquinho, aí chegou uma hora que ele engatou e ele recuperou aquele sotaque”, conta Mariana.

Uma história interessante aconteceu com Maria. Ela ficou cega na adolescência, inclusive essa é uma das motivações por trás de criar a Supersônica e imprimir outra qualidade a áudiolivros, uma vez que ela, como uma consumidora voraz de livros em áudio, muitas vezes ficava presa à experiência da voz sintetizada – e insossa–, do computador.

Voltando à história, ela começa na Flip de 2022, com Maria ouvindo a escritora francesa Annie Ernaux. “Estava ouvindo ela falar, e daí tem um negócio que eu tenho que chama síndrome de Charles Bonnet.  O meu cérebro produz alucinações visuais simples e complexas. É que nem a síndrome do membro fantasma, em cima das partes que eu não tô vendo, o meu cérebro produz cores e tudo mais. Eu estava ouvindo a Ernaux falar e comecei a ver um monte de mancha magenta, roxa.”

Corta para um tempo depois, quando Maria está no estúdio com Daniela Thomas dirigindo a atriz Isabel Teixeira, que gravou para a editora Paixão Simples, O Lugar, A Vergonha, O Acontecimeto e O Jovem, todos da escritora francesa. “Estávamos começando a gravar e a Dani falou: ‘olha, Bel, não acho que esse é o tom da escritora, ela é uma pessoa muito prática, muito decidida.’ A Bel entendeu rápido e mudou uma coisinha de nada na voz dela. Na hora que ela mudou, eu comecei a ver as mesmas manchas magentas, roxas, achamos a voz dela”, lembra Maria.

Com pouco mais de um ano, a Supersônica já lançou 18 títulos, sempre usando o mesmo método de escolher um ator e um diretor para gravar a obra. Agora está com um desafio e tanto, produzir um livro de arte. Maria é filha do artista plástico Carlito Carvalhosa, que morreu em 2021. Neste ano, duas grandes mostras revisitam a obra do artista. A primeira é A Natureza das Coisas, a primeira exposição retrospectiva da obra instalativa de Carlito, que fica em cartaz no Sesc Pompeia até fevereiro de 2025. A segunda é A Metade do Dobro, que vai abrir no Instituto Tomie Ohtake no dia 25 deste mês.

A pedido do Instituto Tomie Ohtake, que tem um programa grande de acessibilidade, a Supersônica foi convidada a fazer um audiolivro de arte, como catálogo da exposição. “A gente fez um áudiocatálogo em que inventou novos formatos. A gente entrevistou vários outros artistas, curadores, pessoas que se relacionavam com o trabalho dele, tanto curatorialmente como afetivamente.”, conta Maria.

Muitas das descrições das obras eram feitas por amigos, como o artista Rodrigo Andrade, que foi do coletivo Casa 7 com Carlito nos anos 1980, ou Arnaldo Antunes, lembrando da performace que fizeram juntos, extrapolaram o livro. “O bacana é que o Tomie decidiu usar esse material que a gente gravou também na exposição, então você terá descrições bem mais interessantes das obras, podendo ver o trabalho dele de ângulos diferentes”, diz Maria.

Enquanto esse experimento não vem à luz, vale se entregar a essa versão de Quarto de Despejo, e a os outros livros do catálogo, como As Pequenas Chances, de Natalia Timerman, lido pela própria autora, ou Escute as Feras, de Nastassja Martin, na voz de Maria Manoella, que levou o texto ao teatro no ano passado.

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