A Classe C só não quer a esquerda
Aceita o seu BO. Incorpora. Pra quem não conhece a expressão, quer dizer o seguinte: não culpa os outros por seu infortúnio. Essa é uma mensagem importante para a esquerda, nesta eleição. Se a gente mergulha nos canais de YouTube, nas redes sociais, vai ver muita gente construindo muitas teorias diferentes. Algumas têm fundamentos, outras não tem nenhum.
Uma que tem fundamento é a questão do orçamento secreto. De fato, ter mais dinheiro ajuda um bocado na eleição. É muito provável que alguma grana possa ter sido mesmo desviada para as campanhas eleitorais. Mas mesmo que não fosse. Esse volume de dinheiro injetado em obras nos municípios é uma máquina de eleger prefeitos e deputados federais. É feito por isso mesmo.
O problema é o seguinte: o partido que mais recebeu dinheiro via emendas liberadas para deputados, este ano, foi o Partido dos Trabalhadores. Em segundo MDB, daí União Brasil, PSD em quarto. O PT distribuiu quase 618 milhões de reais através dos seus deputados. O MDB, na sequência, 450 milhões, mais ou menos o mesmo valor do União Brasil.
Em compensação, o PSD, quarto em recebimento de emendas, foi o partido que mais fez prefeituras. Oitocentos e oitenta e duas. O MDB fez 856. O PT fez duzentas e quarenta e oito. Se emendas parlamentares são quase uma compra de votos, bem, o PT não está sabendo operar a coisa. O partido recebeu duzentos milhões mais do que o PSD e elegeu uma fração de prefeitos. Gilberto Kassab é um gênio da articulação política? Olha, talvez seja, sim. Mas ele não é um articulador melhor do que Lula. Talvez seja tão bom quanto, mas melhor não é.
Outra explicação que muita gente dá é a imprensa. Ou a Lava Jato. Ou as duas juntas. A imprensa teria danificado a marca da esquerda no período entre 2016 e 2018. Foram dois anos chamando o PT de corrupto e perante este massacre a recuperação total ainda não aconteceu. Talvez. Tem dois problemas nesta tese. O primeiro é o seguinte: a corrupção aconteceu. Ela não foi uma ilusão. Desviou-se uma quantidade abissal de dinheiro. A corrupção é exclusiva do PT? Mas é evidente que não. E a verdade é que o eleitor entende isso.
E aí tem o outro problema, que é maior. Comparado com o que Jair Bolsonaro apanhou, não tem nem o que discutir. Não foram apenas os veículos de esquerda ou veículos independentes, como nós aqui do Meio, que batemos de frente com o governo Bolsonaro ou com o bolsonarismo. O Globo, a TV Globo, a Folha de São Paulo, mesmo O Estado de São Paulo, que está um pouco à direita dos outros grandes veículos, todos enfrentaram o bolsonarismo com muita ênfase. Com editoriais agressivos. O ex-presidente foi chamado de tudo, de golpista a fascista nas páginas dos principais jornais do país.
Se Bolsonaro teve um tratamento pior do que Lula por parte da imprensa, e teve, se o bolsonarismo tem um tratamento mais rigoroso do que a esquerda por parte da Justiça, e tem, não podem ser essas as explicações.
Uma última verdade dita por aí. A direita faz redes sociais melhor do que a esquerda. Olha, isso é verdade, sim. Mas Eduardo Paes venceu com dez por cento de folga aqui no Rio de Janeiro e é o cara que enfrentou o bolsonarismo por aqui. Aqui que é a cidade onde o bolsonarismo nasceu. João Campos venceu com quase 80% dos votos do Recife. O cara é de esquerda. É verdade que muita gente de esquerda considera que tanto o João quanto Tabata Amaral, namorada dele, não são “de esquerda de verdade”.
E talvez a questão passe justamente por aí.
Hoje o deputado federal Guilherme Boulos anunciou que vai incorporar, em seu programa de governo, três projetos de sua companheira de Câmara, Tabata Amaral. Um deles, aliás o primeiríssimo que ele anunciou, é o Jovem Empreendedor. É uma linha de crédito para quem quer montar seu próprio negócio. É pouco, tá? Mas mostra algo importante. A candidatura de Boulos, em São Paulo, entendeu que precisa lidar com esta palavra. Com “empreendedor”.
A esquerda tem um problema. É a Classe C. A esquerda gosta de povo em tese, na teoria, no conceito abstrato. Mas quando olha para quem o povo é, aí não gosta. E a Classe C representa pouco mais de metade da sociedade brasileira. Nenhum grupo demográfico é mais “povo brasileiro” do que a Classe C.
A gente já falou sobre isso muitas vezes. É só que esta eleição deixou isso claro e está lá, Guilherme Boulos, falando que vai lutar pelos jovens empreendedores. A palavra “empreendedor” não encaixa bem na boca dele. Ele preferia estar falando sobre a ocupação de prédios abandonados pelo povo sem moradia.
O problema dessa palavra, “empreendedor”, é que por trás dela está todo um conceito de Estado que vai na contramão do Estado que a esquerda brasileira defende. Então a gente vai nas redes sociais e vê um desfile continuado de ironia. “CEO de MEI”, “Uberpreendedor”, e por aí vai. Me perdoem a franqueza. É preconceito de gente de elite com gente de classe média baixa. É um outro jeito de encher a boca em cima do palco, encaixar aquele olhar do mais profundo desprezo e dizer “eu odeio a classe média”. Pois é. A classe média baixa entendeu o recado. E pode até ser que quem “odeia a classe média”, que acha a “classe média preconceituosa”, considere que a Classe C não seja classe média. O problema é o seguinte: a Classe C se considera classe média. E, pelo poder de consumo, ela é mesmo.
O que a militância de esquerda nas redes está dizendo é o seguinte: se tornar empresário é uma ilusão. É a mais pura forma de alienação política. É o sistema capitalista vendendo um sonho que jamais entregará. Se a gente estende este argumento pela concepção de mundo em que ele se baseia, terminamos num axioma marxista: o trabalhador que não tem consciência de sua própria condição dentro do sistema trai a própria classe e serve aos interesses da burguesia.
Se você não acredita que o capitalismo funcione, se você não acredita que um país como o Brasil pode se tornar um no qual as oportunidades são iguais para qualquer um, não tem como levar a ideia de empreendedor na periferia a sério.
Só que a Classe C acredita que o capitalismo funciona e entende que emprego de nove às cinco não vai fazer ninguém crescer na vida. A Classe C não quer o sonho da carteira assinada e uma aposentadoria de dois mil reais pelo INSS no fim da vida. A Classe C quer ascender socialmente. Quer mais. Quem sair da periferia, morar no bairro rico, um dia ter casa com piscina na Serra, casa de praia, comprar carro importado. A Classe C quer trabalhar muito, construir alguma coisa e ficar rica.
A esquerda brasileira acredita que isso acontece se a economia crescer muito. Se o PIB crescer. E, pro PIB crescer, a aposta é de que o Estado deve botar muito dinheiro em grandes empresas privadas para que se tornem competitivas internacionalmente. Ou seja, o primeiro passo é dar muito dinheiro para empresários ricos de um lado e não mexer na legislação trabalhista ou na Previdência Social do outro. Enquanto isso, a Previdência vai se tornando mais e mais deficitária porque tem menos gente jovem trabalhando e mais gente velha se aposentando. E o fato de que empregados pela CLT custem muito caro inviabiliza que o empresário pequeno possa contratar.
A esquerda acredita que o Estado deve controlar ao máximo a maneira como as empresas funcionam. Deve, por isso, criar regras e mais regras, e portanto ter uma grande máquina burocrática para fiscalizar cada barbeiro de esquina em favela. Para tudo ser muito fiscalizável, é necessário exigir muito papel, muito se selo de cartório, exigir o emprego de contadores. Exigir tanto que qualquer empresário precisa gastar algumas horas mais do seu dia para lidar com tudo que deve informar ao Estado e tirar um quinhão a mais do que faz para entregar ao Estado. Porque, se você quer ter uma empresa, pagará imposto alto. Afinal, é preciso investir esse dinheiro que o Estado recolhe nas empresas que já são grandes. Pois é. As empresas muito grandes, dos setores mais poderosos, essas conseguem benesses ficais. Por quê? Pra fazer a economia crescer. Empresa grande consegue pagar CLT e, se tudo der muito certo, talvez dê pra pagar a conta da Previdência no final.
Mas, claro, Tabata Amaral votou a favor da Reforma da Previdência. O fato de que arrancou concessões para quem realmente é pobre, não importa. Votar na Reforma da Previdência é ser contra o trabalhador.
O problema que a esquerda tem com a Classe C não é apenas que a Classe C é religiosa. Não é apenas que a Classe C é conservadora. O problema é que a Classe C deseja um tipo de Estado e a esquerda acha que a Classe C precisa de outro tipo de Estado.
Olha, não é que a discordância seja completa. A Classe C quer e precisa de serviços públicos de qualidade. Transporte, escola, hospital, segurança. Isso a esquerda também concorda que precisa ter. Mas não entrega. Passou dezesseis anos dos últimos vinte e quatro no poder e não entregou. Isso, justamente aquele pedaço de projeto de país no qual esquerda e Classe C concordam que precisa ter, o Estado não oferece. Devia, mas não oferece.
Olha, esse pedação do Brasil, a Classe C, não entende todo o jogo. Não entende com clareza que o problema são duas concepções muito distintas de Estado. Os eleitores de Pablo Marçal não compreendem que pra ter sucesso empreendendo não basta muita força de vontade e muito trabalho. É preciso, também, um Estado preocupado em criar uma infraestrutura pública de serviços e de regulamentos que trabalhem a favor do pequeno empreendedor e não contra ele. Não compreendem que romper com um conceito de Estado implantado faz quase cem anos é muito difícil e demora um tempo. Essas pessoas não sabem que a extrema direita não tem de fato um projeto que entregue isto que eles desejam.
Mas a extrema direita fala as palavras que eles querem ouvir. A esquerda não fala. E a verdade é que a esquerda não fala por honestidade. A esquerda não acredita neste projeto de país que a Classe C deseja.
A culpa não é do orçamento secreto, não da imprensa, não é das redes sociais. Ninguém tem culpa. A Classe C não vota na esquerda porque ela vota de acordo com seus interesses. Democracia em ação.