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Queimadas: quem poderá nos defender?

Tá difícil respirar aí? Pode fazer a conta aí: soma a pior seca da história com o recorde de queimadas e o resultado é esse ar sufocante, esse calor insalubre, esse desespero que a gente está vivendo. E a ordem dos fatores altera o produto nesse caso. Não é possível dissociar eventos climáticos extremos da ação humana. Traduzindo, se as pessoas botam fogo na mata para desmatar, o clima vai ficar mais quente, mais seco, e as próximas queimadas serão piores, retroalimentadas pelo clima mais quente e mais seco. É um ciclo vicioso e assassino.

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Por isso, cá entre nós, eu não acho que o presidente Lula deveria ter ido pro Amazonas no auge dessa crise. Ele devia ter ido pro Mato Grosso. Pro interior de São Paulo. Já passou muito da hora de o governo Lula fazer política séria com o agronegócio brasileiro.

Não vai adiantar absolutamente nada no médio e longo prazo — nem no curto, diga-se — o campo da esquerda ficar se indignando com a bancada ruralista e com as forças do atraso do agro enquanto o país pega fogo. Também não vai resolver, a cada novo episódio de tragédia climática, lembrar do Ricardo Salles falando que ia passar a boiada ou do desmonte promovido pelo governo Bolsonaro na área do Meio Ambiente. Tudo isso é verdade. A bancada ruralista, financiada pelo dinheiro do agronegócio, moderno e atrasado, faz avançar suas pautas e freia legislações e punições pró agenda ambiental? Sim, e como. O governo Bolsonaro promoveu garimpeiros, desmatadores ilegais e o agro ogro ao status de donos do país? Opa, se promoveu. E, em troca, vale lembrar, recebeu apoio financeiro na sua tentativa de golpe de Estado.

Agora, Lula está no poder há vinte meses, quase dois anos. A ministra Marina Silva é uma das mais celebradas ambientalistas do planeta. E cá estamos, diante de uma situação crítica em que mesmo os ativistas mais pró-Marina reconhecem que o que foi feito é insuficiente. E, em larga medida, ineficaz. Até dia desses, menos de um mês atrás, os funcionários do Ibama e do ICMBio estavam em greve, fazia um ano já. A culpa não é só dela. A gente tem que colocar na conta o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro. O de Minas e Energia, Alexandre Silveira. A Casa Civil de Rui Costa. E a articulação política de Alexandre Padilha. Ah, também dá pra incluir aí o ministro da Secretaria de Comunicação. Quem é mesmo? A gente precisa falar urgentemente de política ambiental do governo Lula. E de como sem fazer política não há meios de sair desse buraco em que estamos.

Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Pensar nas mudanças climáticas como um tema central para a democracia está entre nossos princípios editoriais, sabia? Assim como defender que as pessoas voltem a conversar, a ler ideias divergentes e a formar suas próprias opiniões a partir de um jornalismo profissional e diverso. Só que produzir esse tipo de jornalismo custa dinheiro. É por isso que, além dos produtos gratuitos que a gente tem, como esse canal no YouTube e nossa newsletter diária, oferecemos a assinatura premium, por 15 reais por mês. Com ela, você ganha mais duas newsletters especiais por semana e ajuda a financiar a informação de qualidade no mundo digital. Assine!

Tentar mapear a origem dessa pior seca da história no Brasil não é um exercício do tipo ovo e galinha. A ciência já vem provando, reiteradamente, que a ação humana — ou seja, o desmatamento, a emissão de gás carbônico, a queima de combustível fóssil — tudo isso é responsável por deixar o planeta Terra mais quente. E isso desequilibra todos os sistemas e as dinâmicas da natureza. O tempo seco fica mais seco. O período chuvoso, mais intenso. O verão se torna insuportável; o inverno, rigorosíssimo. Os negacionistas surfam nesse desequilíbrio pra dizer que aquecimento global não existe quando uma parte do globo está afundada em neve. Claro que eles acham que nossa inteligência é nenhuma para subestimá-la a esse ponto, né?

Tem um argumento que parece negacionismo, mas não é. O de que o fogo é parte de alguns ecossistemas. Sim, biomas como as florestas temperadas e o cerrado se autorregulam com fogo. Só que a natureza, muito mais sábia do que qualquer outro ente, prospera no equilíbrio. O que se está vendo hoje é que as queimadas estão em absoluto descontrole. Estão turbinadas por condições externas aos mecanismos naturais. E isso pensando nos incêndios naturais. Porque o que está queimando o Brasil hoje — principalmente Mato Grosso, Pará e Amazonas, mas também São Paulo e Paraná — não é só esse tipo de fogo. Tem também o fogo proposital e o criminoso. Até agora, foram abertos, pela Polícia Federal, 52 inquéritos para investigar focos de incêndio que tenham sido provocados intencionalmente.

Acontece que esse tipo de investigação e suas consequências não têm um histórico muito alvissareiro no Brasil. Marina Silva comparou a situação atual ao infame Dia do Fogo, de 2019, quando fazendeiros do Pará coordenaram uma ação de atear fogo para supostamente limpar áreas de pastagem em protesto a políticas ambientais. Sabe quantos criminosos do Dia do Fogo foram presos ou tiveram de pagar multa? Zero. Dois inquéritos foram instaurados, mas não produziram provas suficientes. Já o Greenpeace fez um levantamento em que mostra que das 478 propriedades envolvidas no “Dia do Fogo”, 29 seguem recebendo financiamento via crédito rural, num total de mais de R$ 200 milhões. Cerca de 65% desses imóveis foram embargados por diversas infrações, mas só 10% foi por uso ilegal do fogo. E das 662 multas aplicadas a esses proprietários, no que daria R$ 1,28 bilhão, só R$ 41 mil foram pagos.

Não sei se você notou, mas até aqui estou falando de coisas que cabem ao Executivo e ao Judiciário, tá? Esse cheirinho aí que você está sentindo não é o da fumaça, mas o da impunidade. E nesse ponto não dá pra culpar o Congresso por não agir. Tem que aumentar a efetividade das investigações, das punições e colocar os investimentos na área como absolutamente prioritários. Principalmente se pensarmos que qualquer evento climático extremo atinge de forma mais incontornável os pobres e vulneráveis socialmente.

Bem, a gente entra aqui no enorme X da questão.

Podemos listar os projetos que a bancada ruralista aprovou ou tentou aprovar que pioram o controle do fogo, do desmatamento, e que vão contra medidas de proteção ambiental. Teve pacote da destruição em plena tragédia do Rio Grande do Sul. Teve o Congresso reduzindo a principal verba do Ibama para prevenção e combate às queimadas de R$ 318 milhões para R$ 298 milhões, que o governo deu um jeito de repor. Teve o Congresso barrando a criação da autoridade climática, prometida por Lula, para centralizar as ações de governo nessa frente. E tem o fato de que a bancada ruralista se articula às da bala e da bíblia em várias pautas e acaba super-representada politicamente. Pois bem. Se tudo isso é verdade, também é um fato que as queimadas já geraram, só em São Paulo, um prejuízo de R$ 2 bilhões para o agronegócio. Mais de 230 mil hectares de plantação de cana foram destruídos. E eu te garanto que ninguém, no agro ou em qualquer outro lugar, gosta de perder dinheiro.

O governo Lula conseguiu alguns avanços. Do lado do meio ambiente, reduziu desmatamento tanto na Amazônia quanto no Cerrado, depois de recordes nesse bioma. No agro, por sua vez, ao vincular o Plano Safra, seu maior programa de subsídios ao setor, a um cultivo mais sustentável. E conceder o crédito rural a mulheres agricultoras, que já chefiam boa parte da produção. Se você não acompanha o noticiário agro, talvez nem tenha ficado sabendo, né? Se ao menos o governo tivesse um ministério exclusivamente dedicado a comunicar melhor seus feitos, não é mesmo? Mas Paulo Pimenta foi pra Porto Alegre cuidar da pasta extraordinária da reconstrução e a comunicação do Planalto ficou com um interino que eu duvido que você saiba o nome.

A bancada do agro é financiada, adivinhe só, pelo agro. Nem sempre pela fatia mais moderna desse setor. Mas está sempre muito bem organizada para defender os interesses, principalmente de curto prazo, do agro, seja o pop seja o brega. Agora, e do lado do governo? Quem está atuando no Congresso para se contrapor? Para conversar com essa gente e fazer política? Carlos Fávaro é respeitado? Simone Tebet dá uma força? Alexandre Padilha e Rui Costa têm uma agenda de encontros com esse pessoal? E a ministra Marina Silva? Vai ao Congresso só dar explicações? Como anda esse diálogo?

Dia desses, ouvi um relato de bastidor que achei muito revelador. Enquanto a bancada do agro se reúne semanalmente, tem lá sua agenda bem definida e seu lobby com Arthur Lira e Rodrigo Pacheco super bem resolvido, a frente da agricultura familiar mal se reúne, tem pautas difusas, não se articula. A gente está vendo a privatização da Sabesp avançar em São Paulo sem ter qualquer garantia de que estaremos seguros nas secas cada vez mais severas no estado. E nacionalmente? O que é o plano do governo para assegurar acesso a saneamento e água? O que a gente deve esperar para os próximos eventos climáticos? Tem algum projeto de lei saído do Planalto sobre o tema?

Lula foi ao Amazonas em meio à crise porque a seca lá realmente é devastadora. Anunciou retomada da obra da estrada que liga Manaus a Porto Velho, tirando as capitais do isolamento na época da seca. É uma obra emergencial. Não resolve absolutamente nada a não ser exatamente isso, tirar do isolamento duas capitais em meio a uma tragédia climática. É como um band-aid. Lula ainda admitiu que o Rio Madeira está morrendo. Agora, quando a COP30 acontecer, em novembro do ano que vem, o Brasil já vai ter passado por mais uma seca, provavelmente recorde de novo. E já vai estar no terceiro ano de governo Lula. Será que a estrada vai ser suficiente para o país dizer que fez seu dever? E o agronegócio está convidado a se sentar na COP30 para apresentar soluções e caminhos?

Eu fico pensando que Lula foi para o Amazonas, mas devia ter vindo ao interior de São Paulo. Ao Mato Grosso. Não para passar a mão na cabeça de ninguém. O agro que financia golpe de Estado, que toca fogo e terror e que quer anistia tem que ser exemplarmente punido. Ainda mais considerando que 81% dos focos de incêndio em São Paulo, por exemplo, estão em área de pasto e plantação. Mas uma vinda de Lula para São Paulo ajudaria tanto a evidenciar que existem focos de incêndio criminosos quanto poderia aproximar o governo de um diálogo com o agro que está sofrendo prejuízos por ações que nascem de um jeito atrasado de explorar a terra.

Enquanto isso, o ministro de Minas e Energia, do Centrão, surfa como quer nas ondas da exploração da margem equatorial, na onda do acionamento de termelétricas. Fala, sem corar, coisas como: “Buscaremos o desenvolvimento sustentável sem exageros”. Qual é a política de Meio Ambiente do governo Lula, afinal? Eu honestamente não sei. E é uma pena. Porque num governo tão carente de uma marca, num governo que tomou posse sinalizando ao mundo que seu soft power estaria na defesa do Meio Ambiente e na liderança global nessa frente, está fazendo falta esse oxigênio político.

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