O truque do Pablo

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Vamos decodificar a tática do Pablo Marçal? Já já. Sabe, o Pablo inventou uma coisa nova, um jeito novo de fazer campanha. Um jeito que faz a democracia funcionar pior. Esse é o filé do vídeo, o destrinchar de como o Pablo opera. Mas está na segunda parte. Depois da vinheta. É pelo seguinte: não sei quanto a vocês, mas chego a setembro com uma sensação de cansaço profundo. Então hoje eu queria fazer uma coisa diferente. Não quero entrar com a minha visão sobre um fato concreto. Quero falar sobre outra coisa. Sobre liberdade de expressão. Mas desarma aí. Não é uma conversa sobre se Alexandre de Moraes está certo ou errado, sobre Twitter, sobre Starlink, sobre Pablo Marçal. É uma conversa descritiva. De olhar o que está acontecendo mais do que de dar pitaco sobre o que é o jeito certo e o jeito errado. Vamos tentar pensar sobre todos esses assuntos olhando um pouco mais de longe?

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Decodificar a tática do Pablo Marçal é super-importante para entender o que ele traz de novo para a política. Mas, antes, eu queria fazer um desafio para vocês. Sei que todos aqui têm convicções a respeito do ministro Alexandre, sobre Pablo Marçal, sobre tudo isso. Mas vamos tentar olhar por outro ângulo? Esquece suas conclusões, se a favor ou se contra. Prometo que não vou tentar convencer ninguém a mudar de opinião. Minha ideia aqui é outra. Vamos todos, cada um, manter nossas opiniões. Quando a gente é instado a mudar de opinião, imediatamente o cérebro começa a processar: onde o cara está querendo me pegar? Onde é a pegadinha aqui no argumento? Por onde consigo responder? Onde ele está errado? Imediatamente o cérebro começa a resistir. É normal. Todos nós somos assim, então por isso minha proposta é outra. Ninguém precisa mudar opinião. Podemos conversar mantendo nossas opiniões. E de repente, aproveitando o conforto de podermos manter nossas opiniões, podemos conversar com mais liberdade. O plano aqui não é tirar conclusões. É tentar observar o problema que temos.

A verdade é que o mundo democrático está confuso a respeito de liberdade de expressão. A turma da direita costuma dizer que a decisão de suspender o X é uma coisa única brasileira, que nenhuma democracia censura como a nossa. Mas não é. Estados nacionais em todo mundo estão começando a perder a paciência com plataformas de mídias sociais.
Olha, só uma semana atrás a polícia francesa prendeu Pavel Durov, CEO e principal acionista do Telegram. Por quê? Em sua plataforma conversam à vontade os terroristas do Isis, o tráfego de pornografia infantil é imenso. E tudo aberto. Mas o Durov diz que é à favor da liberdade de expressão total. Aí pousou na França, o país de Voltaire, e foi preso. A França não se tornou anti-Voltaire. A Quinta República francesa, a atual, segue diligentemente os princípios dos ‘philosophes’ do iluminismo que levaram à Revolução Francesa. Esses caras meio que são os inventores da ideia de liberdade de expressão. A primeira língua em que se escreveu uma lista dos direitos individuais que o Estado tinha de garantir, incluindo o direito à liberdade de expressão, foi a França. E eles prenderam Pavel Durov.

Claro, eles não fecharam o Telegram. É diferente. Mas pensa nos Estados Unidos. O Congresso americano aprovou, em abril, uma lei que pode proibir o TikTok no país a partir de janeiro. Teve fartos votos de republicanos e democratas e sanção do presidente Joe Biden. Rola uma briga na Justiça, que pode derrubar essa lei. Lá é o contrário daqui. Deputados e senadores aprovaram e é a Suprema Corte que pode derrubar. Mas não está claro que vai derrubar. O TikTok tem a saída de ser vendido para alguém que não tenha contato com o Partido Comunista Chinês, mas os chineses dizem que não querem. Se as coisas continuarem como estão a rede não vai circular mais nos Estados Unidos no ano que vem. Assim como a gente agora abre o X e fica o disco rolando e não carrega nunca, os americanos vão abrir o TikTok e o disco vai rolar sem nunca carregar. Igualzinho. Por quê? Porque os deputados e senadores americanos acreditam que é potencialmente uma arma chinesa de manipulação dos cidadãos americanos. Há evidência? Não. Mas também não é impossível.

Meu ponto aqui é o seguinte: existe uma tensão crescente envolvendo as redes sociais e os governos de democracias. O Brasil não está sozinho. Isso não quer dizer que as três decisões estejam corretas. Também não quer dizer que uma destas destas decisões não possa estar correta e as outras duas não. Ou qualquer mistura nesse meio aí. A questão, evidentemente, é que há um conflito em curso.

Vamos pegar o Pablo Marçal, por exemplo. Vocês já pararam pra prestar atenção em como é a tática de comunicação dele?
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Este fim de semana entrevistei Vinicius do Valle, cientista político, doutor pela USP, fundador com Juliano Spyer do observatório evangélico. Ele faz uma leitura bastante interessante sobre o público que ouve Pablo Marçal, mostra como nós, da elite cultural, não estamos entendendo nada do que está acontecendo num pedaço grande do Brasil. Você pode ler essa entrevista agora. Está lá no site do Meio. É só assinar. E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Como é que Pablo Marçal opera? Ele chega sempre de mansinho. Sorriso. Simpático. Chega lá na GloboNews, “nunca achei que estaria aqui”. Chega no Flow, olha pro Igor, “eu sei que você não gosta de mim, mas eu gosto de você”. No Roda Viva? “Nossa, estar aqui é um sonho! Espero que não vire um pesadelo.” É sempre assim. “Eu estou desarmado, mas estou com medo de vocês baterem em mim.” A partir daí, é um passivo agressivo. Faz aquele jeitinho de goiano, né? Quase um capial. Se encolhe na cadeira, ombro pra dentro. Está num casulo. Aí começa a promover o aumento incremental do conflito.
Algumas pessoas ficam tentando analisar. Querem tentar entender quando Pablo eleva o tom. Se ele ajusta a tática de acordo com o programa. Não é isso. Ele ajusta a tática de acordo com a reação da pessoa. Ele vai dando pontadinhas em todo mundo. Se o Igor do Flow, que é um cara ali bonachão, nunca sobe a voz, ele nunca sobe a voz. Ele assume o chapéu de coach. Se você não sobe a voz, ele se põe como professor que ensina. Ele se põe num lugar que está acima de você, sábio. Ele te usa de escada para transmitir superioridade.

Só que pouca gente aceita esse tom. Regular o tom é muito difícil com ele. Porque se você se irrita só um pouquinho com o jeito que ele fala e responde um tom acima, o Pablo dá tréplica subindo um decibel. Ele provoca para que a pessoa venha. Ele quer a briga. Ele chama a briga. Ele quer criar um ambiente no qual quem tem a propensão de estourar, estoura. Ele quer irritar. E ele dá tanta corda quanto for necessário. Até que tem o nível Datena, quando alguém perde por completo a linha.

Essa coisa passivo agressiva do Pablo se mostra de muitas formas diferentes. Ele faz insinuações maldosas, por exemplo. Olha pro Boulos sugerindo que ele cheira cocaína, coisa que nunca ninguém disse. Às vezes a coisa é mais sutil. Faz um olhar de desdém que diminui o interlocutor. Com jornalista, tem uns truques que ele usa que, pra gente, são de lascar. Nega ter dito algo que falou e todo mundo ouviu. Você, jornalista, tem a prova, tem o papel, tem o documento, tem a gravação, tem o vídeo. Ele falou. Ele fez. Aí o cara nega. Na sua cara. Ele transforma o troço numa coisa de palavra contra palavra. Só que não dá pra mostrar, na TV ao vivo, o trecho de um documento, a gente em geral não tem o momento exato da fala. Precisa de uma reportagem para demonstrar a coisa. Mas naqueles vinte segundos de TV, é palavra contra palavra. Na reportagem de jornal, que ele está mentindo fica óbvio. Quem lê reportagem de jornal? A gente fica exasperado quando alguém mente, na nossa cara, com aquele jeito de estou sendo acusado de uma coisa absurda.

Aí, se ele não faz exatamente isso, desarma de outra forma. Você fez tal coisa errada! Responde monossilábico. É. Eu errei. Sou perseguido por esse erro até hoje. E ele salpica isso tudo com umas pitadas de “eu errei no passado”, “não tinha dinheiro pra pagar advogado”. Foi condenado como estelionatário por enganar velhinhos e tirar o dinheiro deles. “Eu ganhava só trezentos reais.“ “Eu era o menino que consertava computador.” Quando o crime é grande demais ele volta a fingir ser capial. Não tem mais coach. É o menino com a carteirinha de trabalho, ingênuo, começando na vida.

E o mais importante disso tudo é o seguinte: ninguém vê o Flow todo. Ninguém vê a entrevista na CNN, na GloboNews, o Roda Viva. O que as pessoas vêem são os cortes. Os trechinhos do programa. E quando você sai cortando em trechinhos de trinta segundos, o que você tem são três tipos de imagem. O Pablo sendo atacado e dizendo “mas por que você está me atacando?” Você vê as pessoas perdendo por completo a linha com o cara. E você vê o Pablo respondendo um tom acima a um ataque. Ele está só se defendendo. Você perde o contexto, perde a situação.

Você está pensando naquele produto como um debate de ideias ou como entrevista. Ele não está num debate de ideias ou numa entrevista. Ele está produzindo vídeos de trinta segundos. E, olha, ele fala isso abertamente. Ele pertence ao mundo dos trinta segundos, dos noventa segundos. Ele sabe quanto tempo tem de atenção do eleitor e ele entrega algo construído para aquele tempo de atenção. Nem um milésimo a mais.

Para ele, é ótimo. Não está nem aí pra entrevista, nem aí pra live, ele quer cortes. Ele quer aqueles trinta segundos em que joga faísca e de repente a chama levanta. Não existe Pablo Marçal se não houver violência. Pablo depende de haver violência. Seu sucesso aumenta conforme o nível de violência aumenta. Ele precisa transformar a eleição na qual está em violência. E, para não ser culpado pela violência que ele instiga, precisa simultaneamente preparar o terreno para ser percebido como a vítima que apenas responde à violência que jogam nele.

E a verdade é a seguinte: os algoritmos das redes incentivam essa violência. Porque, no fim das contas, o algoritmo quer engajamento. E sabe do quê? Violência envolve as pessoas emocionalmente. Deixa todo mundo ligado. Uns por serem contra, outros por serem a favor, mas para o algoritmo tanto faz. Ele só quer saber se aquele conteúdo mexe emocionalmente com você. E aquele conteúdo mexe com todo mundo. Mexe com quem gosta e mexe com quem não gosta. A coisa que o algoritmo evita é indiferença. A única maneira de isolar Pablo Marçal é ser indiferente aos vídeos dele. E ninguém é. Porque a especialidade do Pablo é manipular uma situação para aquela situação sempre ter impacto. Então esses vídeos, publicados por milhares de jovens internet afora, estão pipocando nos nossos celulares o tempo todo.

É por isso que democracias estão tendo essa conversa sobre redes sociais. E essa é uma conversa muito desajeitada. Seria simples, a coisa, e democracias seriam facinhas, se fosse tudo ali na onda do discurso do Musk, do Durov. Tem de deixar falar tudo. Só que democracias não são fáceis. São difíceis. São difíceis não apenas porque temos de ouvir coisas das quais não gostamos. São difíceis porque precisamos frequentemente fazer escolhas entre que direitos devemos sacrificar para manter outros. Se a gente precisa ter um debate público profundo, como é que a gente lida com um vírus que mata o debate público? Direitos fundamentais estão sempre tensionados. O seu direito acaba quando começa o do outro. Mas quem disse que essa fronteira é trivial? Ela não tem nada de trivial. E quando aparece um dilema novo, que ninguém nunca viu, a gente fica ainda mais perdido. Sem respostas.

O problema que nem os Estados Unidos, nem a França, nem o Brasil estão atacando é o seguinte: o problema está no algoritmo que privilegia o conteúdo que engaja emocionalmente. Pablo Marçal pegou a eleição de São Paulo e a transformou num ringue de telecatch. Se tornou impossível discutir São Paulo Vai acontecer de novo. E não tem prisão de Durov ou de Musk, não tem suspensão de rede social que vá resolver este problema essencial. Enquanto as redes estiverem livres para escolher pelo critério do engajamento emocional o que nos mostram, a democracia será refém.
O problema não está no que é dito e não dito. Não está na mensagem. Está na mídia. Porque o McLuhan estava certo, só anda esquecido. A mídia é a mensagem.

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