Pablo confessou
Vocês assistiram à entrevista do Pablo Marçal à GloboNews, na segunda-feira? Tem um momento muito, muito importante ali. Um momento em que o Pablo confessa ter cometido uma ação que pode levar à cassação da sua candidatura. Ele não percebeu. Agora, a Justiça Eleitoral vai ter de encarar o problema.
A jornalista Júlia Duailibi estava repetindo, ali, o mesmo argumento que fiz no último Ponto de Partida. Marçal não foi vítima de censura quando suas redes sociais foram tiradas do ar. Ele teve a permissão de criar novos perfis, não foi banido das plataformas. Só que aquelas redes ele não podia usar porque elas cresceram usando, como um dos instrumentos, o pagamento de prêmios num concurso de cortes. A lei não permite nenhum tipo de pagamento que não esteja declarado claramente e feito com dinheiro que a campanha pode usar. E a Júlia, se vocês voltarem ali à entrevista vão ver, entende exatamente como a Lei Eleitoral funciona. Ela tenta explicar para o Marçal que aquilo não configura censura. Aí ele responde. Vou citar as palavras exatas dele.
“Eu não coloquei dinheiro nesta eleição. Nem eu, nem meu grupo. É censura porque eu preciso publicar na minha.”
Aqui ele está se referindo às contas de redes sociais dele. Continua.
“É como se fechasse o canal de televisão de vocês e mandasse todo mundo pra casa. Aquilo ali é um super-canal de televisão. Se você pegar os últimos dez canais de televisão do Brasil, eu tenho mais audiência que esses dez canais juntos. Você derrubou o trabalho de um monte de gente. Você não está entendendo. O que vocês estão fazendo é censura. Não é pelo que eu falei, é pelo que eu deixei de falar. Vocês estão tirando a minha voz. A única coisa que eu tenho.”
Eu conversei com mais de um advogado eleitoral sobre esse trecho da entrevista. E, com os três com quem conversei, todos já tinham visto a coisa e está uma buxixo só entre os advogados eleitorais de São Paulo. Todo mundo no debate sobre o que fazer, como fazer.
O que o Pablo fez é uma confissão, simultânea, de abuso de poder econômico e dos meios de comunicação. Ambos estão previstos como falta que leva à inelegibilidade, no Brasil, desde 1990. O Pablo obviamente não percebeu porque a Lei Eleitoral é grande, é confusa, e não é tanta gente assim, mesmo entre advogados, que a compreende. Precisa ser especialista.
A gente está falando aqui de uma lei bem específica, a Lei número 64, sancionada pelo presidente Fernando Collor em 18 de maio de 1990 e emendada trocentas vezes desde então. É a Lei da Inelegibilidade, que regulamenta o artigo catorze, parágrafo nove, da Constituição federal.
No total, essa lei tem 28 artigos, a maioria deles com um monte de subitens, que no fim faz duas coisas. Uma é explicar o processo jurídico para definir como alguém vai ser considerado inelegível. Quem pode denunciar, como se faz a investigação, que juiz decide, a quem se recorre. Por aí vai. A outra coisa é listar o que impede a pessoa de poder ocupar um cargo eletivo. O que torna alguém inelegível. Então ali tem coisas básicas, tipo uma pessoa analfabeta não pode ser eleita. Esses cargos exigem que sejamos capazes de ler e compreender o que lemos. Mas aí tem outros itens. E o problema do Marçal está no artigo 22.
O texto é o seguinte: “Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político.”
Qual é o problema, aqui? O que a lei quer fazer, nesse artigo, é garantir que a eleição seja justa. Os advogados e juízes eleitorais costumam falar em paridade de armas. Ou seja, alguém muito rico ou muito poderoso não pode aparecer de repente e usar essa estrutura de poder para se impor numa eleição.
É muito curioso o Marçal comparar, citando como se fosse absurda, a ideia de fechar um canal de televisão e mandar todo mundo para casa. Porque, veja, nessa mesma eleição para a prefeitura paulista, José Luiz Datena teve um prazo para deixar seu programa de televisão para poder ser candidato. É assim. Ele não poderia ter um programa de TV e disputar uma eleição. Não pode porque é considerado uso indevido dos meios de comunicação.
Digamos que Silvio Santos, que tinha um canal de televisão, tivesse saído candidato à presidência. Ele quis isso uma época. Se aí o Silvio sai candidato e o SBT, a rede dele, tivesse feito uma única reportagem favorável ao patrão. O que acontece? A Justiça Eleitoral ia sim fechar o canal de televisão inteiro durante o período da eleição. E se isso quisesse dizer que as pessoas iam perder o emprego, bem, a lei é assim.
Mas aí vocês vão perguntar? Tudo bem, o Pablo Marçal fez uma comparação infeliz, mas rede social não é a mesma coisa que canal de televisão. O problema é que, no caso do Pablo, a comparação que ele fez é perfeita. Vem cá, eu explico.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
Existe jurisprudência, ou seja, um jeito pelo qual a Justiça eleitoral interpreta o artigo 22 dessa lei. Faz trinta anos que é assim. O abuso de poder acontece quando você usa uma estrutura que construiu para seus negócios para te trazer vantagem como político.
Lula e Bolsonaro, Tabata e Boulos, Ricardo Nunes, todos construíram suas redes sociais para usarem em campanhas eleitorais. Para fazerem política.
Pablo Marçal não fez isso. Ele construiu suas redes sociais como coach, para vender seus serviços e fazer propaganda dos seus negócios. Construiu para ser influente. Ele tem funcionários que trabalham esses perfis, equipes que produzem vídeos, fotos, textos. Gente que analisa os números, os dados, as estatísticas.
Ele compreende a tese da lei. Tanto que ele fala: “Eu não coloquei dinheiro nesta eleição. Nem eu, nem meu grupo.” Ele entende, perfeitamente, que não pode colocar dinheiro próprio em sua campanha. Que não pode usar os recursos financeiros dele, pessoais, nem os de suas empresas, para ajudar a se eleger. E reclama disso. É a campanha com menos recursos. E, possivelmente, deve ser mesmo. Partido pequeno, com poucos parlamentares, tem pouco tempo na TV e pouco dinheiro do fundo eleitoral.
O problema é que não para aí. Não é apenas dinheiro seu e de suas empresas que ele não pode usar. Sengundo a lei, ele não pode usar nenhum recurso de seus negócios na campanha eleitoral. A lei não deixa. Pois é, mas aí ele manda essa pra Júlia:
“Se você pegar os últimos dez canais de televisão do Brasil, eu tenho mais audiência que esses dez canais juntos. Você derrubou o trabalho de um monte de gente.”
Deixa eu repetir aqui. Sublinhar. “Você derrubou o trabalho de um monte de gente.” O juiz derrubou o trabalho de quem? Trabalho das pessoas que constróem as redes sociais dele. Ou seja, trabalho de quem ergue o principal negócio dele, o negócio que deu notoriedade a ele. O negócio de ser influenciador digital. Ele está usando a sua estrutura empresarial em favor de sua campanha eleitoral. Mesmo que as pessoas não estivessem trabalhando a partir do início da campanha, só o fato de que construíram aquelas redes para fazerem o serviço do coach, para servirem a suas empresas, já faz do uso daqueles perfis construído por aquelas pessoas ilegal. E, ao que parece, as mesmas pessoas continuaram trabalhando nos perfis. É o que ele falou.
É o Silvio Santos candidato usando o SBT para fazer sua propaganda. Não pode. Lei sessenta e quatro de 1990, artigo vinte e dois. Simultaneamente abuso de poder econômico e utilização indevida dos meios de comunicação social.
E agora?
Bem, numa eleição para prefeito, o juiz responsável pelo pleito é um juiz de primeira instância. É assim, mesmo numa cidade do porte de São Paulo com seus mais de doze milhões de habitantes. Tem umas pesquisas dessas que ninguém nunca ouviu falar por aí mostrando Marçal já como número um na corrida. Ainda precisamos ver as pesquisas de qualidade. Na semana passada, Datafolha e Atlas já mostraram que Nunes está em queda e Marçal está em alta. Na Quaest de hoje, Marçal e Nunes estão empatados numericamente com dezenove pontos. E empatados na margem de erro com Boulos, 22 pontos.
Digamos que as próximas pesquisas mostrem que esse ritmo segue, Nunes cai pra terceiro, Marçal aparece em segundo ou mesmo em primeiro. A tendência das curvas é de que esse movimento ocorra. Vamos dizer que acontece. Um juiz de primeira instância vai ter de ter a coragem de tornar inelegível o cara que é, possivelmente, o candidato favorito da maioria dos paulistanos.
É uma decisão muito difícil de tomar. E tem de ser muito difícil, mesmo. Sabe, para uma democracia ficar de pé, a sociedade precisa acreditar na democracia. E acreditar na democracia quer dizer que todos as correntes ideológicas precisam acreditar que têm uma chance de chegar ao poder, se jogarem o jogo. Se uma quantidade grande de brasileiros acreditar que esse jogo é viciado, a democracia não se sustenta.
E este é um dos riscos profundos de cassar a candidatura de alguém como Pablo Marçal, sabe? Tá. Eu sei. Muitos assistindo estão aí numa de “para de besteira, o cara é uma ameaça à democracia, tira ele e pronto”. Tudo certo. Há seis anos, Luiz Inácio Lula da Silva foi declarado inelegível por conta do artigo primeiro, parágrafo primeiro dessa mesma lei.
“Serão inelegíveis os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado.”
E o que uma quantidade grande de pessoas dizia, ora, “para de besteira, o cara é uma ameaça à democracia, tira ele e pronto”. Não estou comparando as duas situações, não estou entrando no mérito de se a condenação de Lula estava correta ou não. Mas ele havia sido condenado por um processo judicial, por um tribunal colegiado, e pronto. E uma quantidade imensa de pessoas, outras pessoas, evidentemente, viram aquilo como um ato de tirar do jogo o seu candidato. Como uma trapaça.
Bolsonaro foi declarado inelegível. Num processo limpo, claro, previsto pela lei. Se Marçal foi considerado inelegível, vai ter muita gente, que já vê o sistema como armado contra elas, vendo que seu grupo, seu movimento, está banido. Não tem chance de se eleger. A democracia não funciona para elas. Isso confirma a tese de que o sistema é viciado.
Razão para inelegibilidade tem, tá? Como tudo na Justiça, dependerá da interpretação que o juiz faz. Mas não achem que esta é uma decisão simples. E não achem que a gente consegue prever com clareza as consequências de uma decisão assim. Porque haverá consequências.