O truque de Kamala contra Marçal

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Saiu hoje de manhã a mais recente pesquisa Atlas Inteligência para a corrida, em São Paulo. Pablo Marçal continua crescendo. É quem mais se moveu desde a última rodada. Tinha 11%, pulou pra dezesseis ponto três. Ricardo Nunes, o prefeito, tinha 25, caiu para vinte e um ponto oito. Enquanto isso, lá em Chicago, está acontecendo a Convenção Nacional do Partido Democrata. Kamala Harris já é oficialmente a candidata. Foi nomeada ontem. E, sabe, os democratas encontraram um caminho novo para enfrentar gente como Pablo Marçal. E talvez tenha algo para nós, brasileiros, aprendermos aí.

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Lembra que essa briga em São Paulo, a do Pablo Marçal, é uma pela vaga no segundo turno onde vai ter um candidato de direita e outro de esquerda. Então Marçal não é ameaça para Guilherme Boulos. Eles não concorrem pelo mesmo conjunto de eleitores. Marçal é uma ameaça para Nunes. Eles estão disputando a vaga do candidato de direita. Aliás, ele não é ameaça apenas para Nunes. Se Marçal chega ao segundo turno, ele se torna uma ameaça para Jair Bolsonaro. De todos os nomes que apareceram na esteira do movimento populista e autoritário pelo flanco direito, ele é o primeiro que pode superar o ex-presidente em seu próprio jogo. Marçal domina a comunicação por redes como poucos. Nessa briga, só ele e Tabata Amaral sabem se comunicar pelas redes sociais como nativos. Mas tem uma diferença importante. O algoritmo favorece discursos mais agressivos, mais lacradores. E isso quer dizer que a briga, para uma candidata centrista como Tabata, é bastante mais difícil. Ela terá menos impulsionamento.

Já Marçal, caramba. Como é agressivo. Não tem qualquer pudor, a ponto de inventar essa história de relacionar Boulos com cocaína. Nunca existiu esse rumor. É uma invenção para fazer colar uma caricatura barata de política de legalização de drogas. Uma invenção para forçar a ideia de ligação com o crime pela esquerda. Nem Bolsonaro, cujas campanhas mentiram muito, distorceram muito, foi capaz de chegar a esse nível de agressividade. De empáfia. As mentiras mais absurdas do bolsonarismo, como a mamadeira de piroca lá atrás, eram espalhadas anonimamente. Pablo Marçal diz na cara. E não importa que Bolsonaro apoie Nunes, Marçal está drenando os eleitores do prefeito. Se chegar à prefeitura de São Paulo, estará pré-candidato à presidência da República. Para o desespero de Bolsonaro, tá? Marçal pode levar seu movimento.

É. Isso quer dizer que corremos o risco de entrar na montanha-russa de novo, desta vez com um cara com treinamento de vender autoajuda de coach nas mídias sociais, que fala de Jesus e Bíblia com mais convicção de que Bolsonaro, e que já tem uma máquina equivalente ao bolsomarismo no ambiente digital.

Bem, talvez, apenas talvez, a campanha à presidência de Kamala Harris tenha descoberto uma nova nova arma contra a extrema direita. É não levá-la a sério. O truque, precioso, foi decisivo para a escolha do candidato a vice na chapa, o governador de Minnesotta Tim Walz. Tem alguns pacotes pra a gente desmontar aqui.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Há coisa de um mês, Walz deu uma entrevista ao Morning Joe, da MSNBC. Esse é um programa muito interessante, muito peculiar. A gente não tem nada do tipo na televisão brasileira. Começa pela MSNBC. É uma TV a cabo de notícias, como a CNN ou a FoxNews, que tem origem lá atrás numa parceria da Microsoft com a rede NBC. Só que, com o tempo, virou um canal de esquerda. Quando a gente fala esse tipo de coisa no Brasil, as pessoas logo imaginam algo tipo DCM, tipo ICL, tipo Revista Fórum. O jornalismo que que conta a versão da esquerda. Mas a MSNBC não é isso. Eles não falam à esquerda do Partido Democrata, falam em geral mais à direita do partido. É uma centro-esquerda padrão, um quê mais liberal. Está mais para Clinton e Obama do que para Bernie Sanders e AOC. Com frequência é descrita como o inverso da FoxNews, mas não é a mesma coisa. Não está tanto à esquerda quanto a FoxNews está à direita.
E o Morning Joe, um programa matutino, é apresentado por um ex-deputado federal chamado Joe Scarborough e pela mulher dele, a jornalista Mika Brzezinski.
O Scarborough era republicano, um republicano da Flórida. É um estado onde os republicanos da geração dele costumavam ser bem conservadores. E não é que ele, o Scarborough, tenha mudado de lado, é só que o Partido Republicano caiu tanto pra direita que ele terminou meio que no centro do atual espectro político americano. Então foi nesse programa que apareceu esse cara que, um mês atrás, era um obscuro governador de um estado do Meio Oeste. E aí ele deu essa entrevista. Entrevista normal, pacata. E, num determinado momento, os jornalistas perguntaram mas, vem cá, e Donald Trump, agora com JD Vance, que tal? A resposta do Tim Walz foi a seguinte:

“These are weird people in the other side.”

Me desculpem ter trazido a resposta em inglês. É que é importante pro argumento. Uma tradução possível seria a seguinte: Essas são pessoas esquisitas do outro lado. Estranhas. Só que tem mais do que isso. Porque a palavra weird não tem tradução perfeita em português. A gente acaba traduzindo desse jeito, “estranho” ou “esquisito”. Só que ela carrega mais significados do que esse. O weird é estranho no sentido de pouco comum, não usual, de peculiar. Mas, além deste incomum, peculiar, tem também algo de curioso, de misterioso. É alguma característica que faz da pessoa tão estranha que chega a ser intrigante, sabe? Mas não intrigante a ponto de poder se tornar atraente. É um incomum, intrigante que quase causa repulsa. Não atrai. Não fascina. É meio bizarra. “WEIRD.”

Weird people é uma gente com quem você não quer se misturar muito. Você nunca consegue explicar exatamente por que aquela pessoa é weird, mas você sabe que normal ela não é, e todo mundo em volta sabe exatamente o que você quer dizer. Ela obviamente se destaca, intriga, mas de um jeito que a gente quer distância.

O interessante da palavra weird é que ela não é pesada. Não é fascista. Não é extrema direita. Não assusta ninguém. Mas faz pouco da pessoa. É só a constatação do seguinte: esses caras não são normais. Tipo: eles não batem bem, sabe?
E aí a entrevista do Walz foi uma explosão. Se espatifou em inúmeros cortes, publicados e republicados nas redes sociais, distribuídos pelas redes de mensagem. Engraçado, né? Uma frase bem coloquial, bem simplona, quase comentário adolescente de ‘com aqueles caras não me meto’, ‘não chego perto deles no pátio da escola’, ‘não quero ser visto com eles’. Aliás, tipicamente um comentário de adolescente americano dos anos 80, 90, que o Walz e a Kamala foram. Uma época em que se fazia muito cinema sobre a vida de adolescentes americanos no colégio. E ainda assim causou um baita impacto. Sabe por quê? Porque foi diferente. É um pouco aquela pegada do menino, quando vê o rei desfilando com sua nova roupa feita por alfaiates picaretas, e grita: o rei está nu. Não, na boa. Olha para todos os caras que foram presidentes americanos nas últimas décadas. Aí olha pra Donald Trump. Ele é diferente. Ele se sobressai. Mas ele não se se sobressai de um jeito bacana. Ele é weird. Agressivo, pele laranja, narcisista que nem disfarça, aquele cabelão parafinado. Weird.

O rei está nu.

E isso parece ter ressignificado o Trump para muita gente. Porque, veja, se é perigoso, tem um certo fascínio. Se é esquisito, se é bizarro, aí não. Que pena a gente não ter a palavra perfeita em português. Mas um poeta ou um publicitário pode bem imaginar como recontar essa história. O impacto da entrevista foi tão grande que é por causa dela que Tim Walz foi escolhido o candidato a vice-presidente de Kamala Harris.
Aliás, não só por causa dela. Porque tem um outro detalhe aí. O Walz tem uma cara de normal, uma cara de americano pacato do Meio Oeste tão absurdamente normal que, quando alguém como ele fala que do outro lado a turma é muito estranha, a mensagem fica ainda mais crível.

Aí veio o passo além, porque a mensagem termina ainda mais forte quando Donald Trump e J. D. Vance não conseguem rebater. Ainda não conseguiram, um mês passado dessa entrevista, articular uma boa resposta. Calou fundo. O melhor que rolou até agora foi um “eu não sou weird, weird são eles.” Tipo: jura?

Porque a verdade é essa, né? Olha para o Pablo Marçal. Olha para o nível de agressividade dele. Olha as promessas impossíveis que ele faz na sua carreira de coach. Olha o jeito que ele mistura Bíblia com vocabulário de videogame. Vamos ativar a nova fase da sua vida. Noutros momentos, num período mais pacato da vida política, a gente olharia para ele como olhamos para o Enéas quarenta anos atrás. Um sujeito agressivo, esquisito, desagradável mas que era tão caricato que não dava para ser levado a sério.

O que o Partido Democrata parece ter conseguido foi encaixar essa mensagem de uma forma crível. Tem a ver com muitas coisas. Uma é a renovação política. Entrou, de repente, um rosto que é novo no jogo. Não é mais do mesmo, já está ali, em Kamala Harris, a promessa de uma mudança de ares. E, olha, muita gente está cansada de ficar brigando com o tio no almoço de domingo. Muita gente está em busca de um jeito de fazer as pazes e virar a página. Tem o fato de o vice ser um americano de filme dos anos cinquenta ou dos anos oitenta. Mas não é de filme fantasia, é daquele tipo de filme meio Frank Capra, meio John Hughes, que tentava mostrar a vida cotidiana com as pessoas as mais normais. As pessoas parecem estar dizendo que querem uma oportunidade de mudar o disco. Mudar o clima. Passar para a próxima fase do jogo.

Já deu.

O Partido Democrata, pode ter conseguido esse feito. Desmascarar o mostro no final do Scooby Doo e era só um carinha esquisito dali da vizinhança. Muita metáfora acumulada nesse Ponto de Partida de hoje, né? É porque é difícil descrever o efeito que uma palavra intraduzível pode ter numa nação. Só no dia 5 de novembro, quando acontecer a eleição, saberemos se a estratégia deu certo.

Agora, falando como carioca, para meus amigos paulistanos. São Paulo é a cidade da minha família paterna, onde nasceu meu filho do meio. É minha segunda cidade favorita no país. Onde eu moraria, não morasse no Rio. Força.

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