Musk trucou Alexandre

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Olha, muita gente aqui não vai gostar disso. Mas Elon Musk trucou o Supremo. Ao decidir encerrar o escritório do Twitter no Brasil, ele pôs um desafio para a Corte. Vai continuar desobedecendo as ordens do STF. Como não há mais uma empresa no Brasil, não tem quem receba as ordens. Só vai sobrar uma de duas saídas. Ou o Supremo deixa pra lá, e Musk faz o que quer. Ou vem a ordem de cortar acesso à plataforma em todo o país.

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Dos quinhentos milhões de usuários do X no mundo, a rede que se chamava Twitter, somos 25 milhões aqui no Brasil. Já fomos o segundo país em presença na plataforma, hoje somos o quinto. Ainda assim tem uma importância. A ausência de um escritório aqui também quer dizer que não terá mais renda publicitária. O problema é o seguinte: Musk não está nem aí. Lá nos Estados Unidos, ele está processando os anunciantes por não anunciarem. Não parece alguém querendo vender nada, né?

O Supremo se colocou nesse lugar. Jogou o jogo de Musk sem entender que ele estava lutando judô.

O ponto é o seguinte: a gente está vivendo uma polarização tão maluca que parece que só existem duas posições. Ou Alexandre de Moraes é o grande herói da democracia brasileira ou é um vilão, um tirano dedicado a calar a direita. De alguma forma, a gente perdeu a noção de que ele é um juiz. Só isso. Um juiz do Supremo, claro, um ministro. Um constitucionalista. Um juiz.

Já não era hora de termos aprendido? Joaquim Barbosa com a capa do Batman, Sérgio Moro e aquela empáfia moralista. Quando que a gente vai parar de transformar juízes em o maior herói ou o maior vilão do país, dependendo do grupo em que estamos?
Tem duas conversas para a gente ter aqui. A primeira é sobre os dois inquéritos abertos de ofício por José Antonio Dias Toffoli, quando presidente do STF. Toda a dor de cabeça está nestes dois inquéritos. E depois o jogo político de Musk.

Vamos falar com todas as palavras: Jair Bolsonaro planejou e tentou executar um golpe de Estado no Brasil. Nós temos trocas de zap, minuta de decreto, até gravação em vídeo. Sabemos que quatro generais de Exército e um comandante da Marinha foram encarregados de organizar o golpe que impediria a posse do presidente eleito. Eu sei que nos comentários vai pintar um monte de gente dizendo “que golpe?”, “vão vi golpe”. Está tudo documentado numa ampla investigação da Polícia Federal que virá a julgamento nos próximos anos.

A grande qualidade desta investigação da Polícia Federal é tudo que o Inquérito das Fake News e o Inquérito das Milícias Digitais não tem: transparência.

Uma das estratégias adotadas pelo golpismo bolsonarista foi tentar ao máximo bloquear a ação do Estado brasileiro. Ele não conseguiu muito. Não teve tempo e competência para fazer o que Hugo Chávez fez na Venezuela, Viktor Orbán fez na Hungria, Vladimir Putin fez na Rússia. Ou seja, conseguir botar pessoas suas, nos lugares certos, de forma a em essência matar a independência dos três poderes.

Como assim Chávez e Órban e Putin e, olha, Erdogan também fizeram todos a mesma coisa? Pois é. Só uma afirmação assim já vai incomodando um monte de gente.
Bolsonaro não conseguiu, mas o que deu, fez. Uma das coisas que fez foi colocar na Procuradoria-Geral da República um sujeito que não ia dar problema para ele. Quando o Poder Executivo sai da linha, quem é o advogado que representa a sociedade? O procurador-geral da República. Ou seja, se não tem PGR trabalhando pra sociedade, quem a representa quando o presidente ataca a democracia? Ninguém.

O Supremo sacou da manga um truque. Ocorre que existe um tipo de inquérito que o Supremo pode abrir de ofício. Ou seja, pode abrir sem a necessidade de alguém de fora pedir. É quando o problema acontece dentro do prédio do STF. Como muitos dos ataques vinham pelo email e pelas redes dos ministros, eles fizeram aquilo que a lei permite que façam. Ou seja: interpretaram os ataques digitais como sendo ataques que ocorrem dentro do prédio. Afinal, chegam pelos computadores que estão lá no Palácio.
Não vamos nos enganar: a interpretação exige que se estique a muito a compreensão da coisa. Mas ela é possível e é legal. Este inquérito é legal e a interpretação esticada nasceu porque havia uma razão concreta. O presidente planejava um golpe de Estado aos olhos de todo mundo e tinha neutralizado o Ministério Público. A PGR. Foi um atalho.

Este atalho tem consequências. Ele concentra uma quantidade imensa de poder nas mãos de Alexandre de Moraes. Ele é simultaneamente procurador e juiz. Ou seja, ele é o advogado que ataca e o juiz que decide. Não precisa de muito para compreender que o advogado de defesa não tem muito espaço para trabalhar. E, como os atos dos inquéritos são secretos, não sabemos de nada. Não sabemos o quê, quando ou por quê. Pessoas podem ser caladas, podem ser presas, porque o ministro decidiu que sim.
Isto não quer dizer que não existam razões. Quer dizer que não sabemos. Quer dizer que Alexandre pode o que quiser. Só que Bolsonaro não é mais presidente. E o novo procurador-geral da República já está em seu cargo faz quase um ano. Estes poderes excepcionais que foram dados ao ministro lá atrás não têm mais razão de ser.

De alguma forma, ficou impossível a gente ter essa conversa sem ser em tons absolutos. Ou é vilão, ou é herói. Não é nenhum, nem outro. É um juiz que, num momento chave da democracia brasileira, enfrentou os golpistas. Para isso, precisou incorporar legalmente poderes que democracias muito raramente concedem a juízes. E agora, porque não largou estes poderes, vê a luta pela democracia ameaçada por risco de levar um ippon. Musk acaba de pegar em seu quimono e armar a cama para fazer Moraes cair de costas para o chão.

Vocês sabem qual o truque do judô, né? É usar a força e o peso do adversário contra ele mesmo.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

O que constrói um movimento político, no tempo das redes sociais, é uma história com início, meio e fim. Em geral, essa história tem na raiz um populismo. Ou seja, o povo sofre por causa de um grupo minoritário que manda. Um líder forte aparece, que representa este povo como ninguém. É um membro do povo, ele próprio. Este líder é perseguido. Tentam calá-lo. Este grupo que manda é muito poderoso. Para que a ilusão toda se sustente, é preciso que exista uma figura que represente muito poder e que cumpra bem seu papel na história.

Alexandre de Moraes é isso. Percebam que há dez anos aqui, nos Estados Unidos, em toda parte que há movimentos populistas autoritários, o discurso é o mesmo. O inimigo lá fora é muito poderoso. Pode ser o imperialismo americano, pode ser o marxismo cultural, essas máquinas com poder difuso que querem roubar nossas riquezas, corromper nossas famílias, o que for. Cada um conta sua história. A força do inimigo é sempre difusa, mas sempre ser encarnada numa ou noutra figura. Quanto melhor alguém se encaixar nesse papel que a história espera, mais pontos marca o movimento.

Alexandre de Moraes é isso. Ele se encaixa como uma luva. Ele literalmente quer calar os caras. Quanto mais poder Alexandre tem, quanto menos transparentes são suas decisões, mais sólida é a história que o autoritarismo populista conta. Vejam, é isso que Elon Musk está fazendo o tempo todo. Falando que vivemos numa ditadura woke, aqui e nos Estados Unidos. Que a esquerda só quer calar a direita, e a direita é o povo bem intencionado. Musk é um bilionário que comprou uma rede social para garantir voz a quem não pode falar, a quem é calado pelo sistema.

E o que faz Alexandre? Ele cala. Manda calar em segredo. E agora ele está pedindo a Alexandre que dê o golpe final. Que tire uma rede social inteira de 25 milhões de brasileiros. Antes, só umas dezenas de bolsonaristas eram calados. Agora serão todos os brasileiros.

Porque é isso, né? Se o Twitter, o X, parar de obedecer as ordens judiciais brasileiras, só vai restar uma alternativa. Mandar suspender seu acesso em todo o país. E, se isso acontecer, Musk vai ter vencido. Terá comprovado seu ponto. Seus comentários vão circular loucamente por todo o país pelo Zap e outras redes. E a ideia de que o Supremo quer calar a direita vai se consolidar de vez.

Só existe uma saída. Os inquéritos sigilosos, sem direito a procurador, precisam ser encerrados. Bolsonaro não é mais presidente, Aras não é mais procurador, é hora de voltarmos à normalidade democrática. Precisamos de transparência, de Ministério Público presente, de uma ação clara em que os crimes contra a democracia sejam explicitados.

Precisamos mostrar onde está o problema, onde houve a tentativa de golpe, como aconteceu. Não precisamos de decisões de força e em segredo. Precisamos da Justiça trabalhando de volta na normalidade democrática. No judô, mais poder tem quem usa menos força.

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