O cinismo de Lira e Pacheco
Uma das primeiras coisas que um jornalista aprende em Brasília, ao fazer a cobertura cotidiana do Congresso e do Executivo, é a identificar o lado prático da política e compreender que ele é tão parte da democracia quanto o lado mais utópico dela.
É claro que num mundo idealizado os políticos seriam cidadãos imbuídos dos mais nobres propósitos, colocariam o bem público e o projeto de nação acima de qualquer outra coisa. Seriam pessoas com princípios e discernimento, com capacidade e boa vontade.
Só que a realidade é bem outra e isso não é de agora. Os eleitos e eleitas para representar o povo são, acima de tudo, seres humanos que, frequentemente, cedem às tentações do poder. Ou acabam engolidos pelos aspectos mais pragmáticos das negociações partidárias, das coalizões, dos acordos.
Isso também é política. É o que se convencionou chamar de realpolitik, aquela menos baseada nos ideais e mais no concreto, no possível. A realpolitik tem seu valor e eu mesma já falei dela aqui nesta coluna, logo que o presidente Lula, recém-eleito, mas ainda não empossado, passou a negociar com o Congresso a PEC da Transição, que permitiu que seu governo tivesse caixa pra começar sua gestão.
Acontece que o pragmatismo vem dando lugar ao cinismo. E de forma absolutamente desproporcional.
É do jogo que anos eleitorais tenham menos produção legislativa. Deputados e senadores se dedicam intensamente em suas bases a eleger aliados ou a buscar a própria eleição.
Uma democracia pujante, em que o voto é respeitado e sagrado, acaba tendo as eleições como evento máximo mesmo e muito da atividade política gira em torno dos pleitos, sejam eles municipais, estaduais ou federais.
Então, não adianta olhar pra inércia da Câmara dos Deputados e do Senado, neste ano, com ingenuidade e acusar de algo que todos sabemos ser corriqueiro quando se tem eleição em outubro.
Agora, cá entre nós, é possível apontar como Arthur Lira e Rodrigo Pacheco levaram essa inércia a outro patamar.
Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Você também sente que os algoritmos das redes sociais tentam moldar sua maneira de pensar, te prendem a uma bolha e limitam seus argumentos aos clichês e frases feitas das discussões políticas? Acha que é capaz de formar suas próprias opiniões se for exposto a mais nuances e visões de mundo, sem radicalismos? É isso que o Meio se propõe a fazer. Oferecer um jornalismo plural, crítico e com muito contexto e análise pra que você construa seu próprio repertório.
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Para não escrever essa coluna só com o fígado, bati um papo com a cientista política Beatriz Rey, que estuda o Congresso e milita para que se separe a instituição dos homens que a lideram e suas infelicidades no comando das Casas. Ela sempre me lembra de ressaltar como o Poder Legislativo é essencial na democracia, é digno quando feito direito e merece ser exaltado apesar do desserviço que muitos parlamentares prestam.
Pois bem. A gente está em plena retomada dos trabalhos no Congresso depois de três semanas de recesso informal. “Esforço concentrado” é o apelido carinhoso que os parlamentares dão a esses curtos períodos em que se busca votar uma baciada de projetos de uma vez só.
O esforço concentrado, normalmente, iria até quinta-feira. Mas vai só até quarta nesta segunda semana de agosto. Deputados e senadores se dispuseram a fazer mais duas semanas de esforço concentrado daqui até o primeiro turno das eleições municipais, no dia 6 de outubro. Vão ser três semanas em três meses.
A questão não é só o pouco esforço, concentrado ou não. É ao que ele está direcionado.
Se, por um lado, é do jogo que os parlamentares atuem menos em Brasília para fazer política em suas bases — e isso não necessariamente deponha contra o trabalho legislativo —, por outro, no que eles escolhem atuar muda, sim, os rumos do país e as vidas das pessoas.
É aqui que entra o cinismo dos presidentes das Casas. Tanto Lira quanto Pacheco não estão preocupados em pautar projetos relevantes e estruturais para o Brasil, para que os parlamentares se concentrem e se esforcem para aprovar.
Tirando um ou outro da agenda econômica do governo federal, em que há um consenso construído a base de muita liberação de emenda e de lábia do ministro Fernando Haddad, Lira e Pacheco estão de olho nos projetos de lei e de emenda à Constituição que possam influenciar outra eleição: a de fevereiro de 2025, para fazer seus sucessores.
Isso fica ainda mais latente na Câmara, onde a sucessão de Lira está francamente aberta e ele sequer definiu ainda que nome vai apoiar.
Atual dono do Centrão, Lira concentra um imenso poder. Esse poder aumentou exponencialmente no governo Bolsonaro, que, por incompetência e medo, abdicou de negociar com os deputados e entregou orçamento e poder de decisão nas mãos de Lira. Mas já vinha de antes. Pelo menos desde 2009, as mini-reformas políticas promovidas pelos próprios parlamentares entregam mais poder, adivinha pra quem?, pra eles mesmos.
O modelo que eles criaram coloca nas mãos do presidente da Câmara uma enorme autoridade e uma miríade de decisões monocráticas.
Eduardo Cunha surfou essa onda o quanto pôde, capitaneando o impeachment de Dilma Rousseff e formando feudos na Casa. Lira aperfeiçoou esse modelo, abastecido pelo Orçamento Secreto que Bolsonaro lhe concedeu e que foi se transfigurando, mas ainda vigora de certa forma.
Ainda assim, para fazer seu sucessor, Lira precisa garantir votos. E mesmo os deputados afinados com ele veem nessa necessidade uma chance de fazer avançar suas próprias agendas. Notadamente, a bancada religiosa, que tem 212 deputados, e a do agronegócio, com 304, ambas as mais poderosas da Câmara e com pontos em comum em seus projetos.
É assim que devem entrar no cálculo de Lira a instalação da comissão que vai analisar o PL do Estupro, que tem tudo pra se tornar um palco quente para políticos conservadores gravarem suas lives, por exemplo, e a votação do pacote anti-invasão, de medidas para criminalizar as ações do MST.
Ora, pensando numa matemática simplista de democracia, se elas são bancadas numerosas, são representativas do povo brasileiro e merecem ter seus desejos contemplados, certo?
Mais ou menos. Quando Lira usa esse tipo de pauta tão somente para fazer acenos e conquistar votos para seu projeto de poder, está sacrificando o tempo do debate público, o respeito às minorias. Mais do que isso, deixa de pautar projetos que poderiam ser mais relevantes para o Brasil em nome de atender uma demanda dos conservadores para que se discutam as chamadas pautas de costumes, que são as que mais mobilizam o eleitorado. É uma escolha vazia, supérflua, vinculada unicamente à lógica eleitoral. Isso empobrece grandemente a política.
Pacheco não fica nada atrás. Também apresentou projetos e acelerou votações com o mesmo tipo de objetivo, só que de forma bem mais ambígua, típica do partido que o abriga, o PSD, e dos mineiros. Enquanto se faz de aliado do governo Lula em alguns pontos, faz questão de sinalizar com pautas conservadoras, como na PEC de sua autoria, que criminaliza o porte de qualquer droga, a despeito da decisão do Supremo Tribunal Federal em sentido contrário.
Além disso, Lira e Pacheco dão muita força a candidatos desse perfil, do Centrão conservador, do ponto de vista de recursos financeiros, por meio das emendas parlamentares. E, na prática, isso se reverte em votos ali na ponta. O deputado compra ambulância, constrói uma quadra. Com isso, faz um vereador, um prefeito, e se reelege no ciclo eleitoral seguinte.
As políticas públicas pensadas de forma mais macro, para o país como um todo, vão se perdendo — por mais legítimas que sejam eventuais demandas locais específicas que esses deputados atendam. E na legislatura seguinte, o que acontece? O parlamentar repete esse método, de achacar em troca de emendas para se garantir eleitoralmente.
Não é um ciclo virtuoso da democracia. É vicioso.
Rompê-lo demandaria um tanto daquela utopia que eu mencionei lá no começo. Sem ingenuidade boba. O Centrão nasceu na Constituinte e não era exatamente elevado em seus objetivos. A ideia era se contrapor ao renascimento legal da esquerda e evitar que a Constituição ganhasse ares progressistas demais.
Ainda assim, havia no Centrão o que alguns pesquisadores passaram a chamar de Centrinho, um grupo de parlamentares conservadores dispostos a negociar com a centro-esquerda em nome de alguns projetos e consensos. Foi assim que nasceu a Constituição Cidadã que nos rege hoje.
Lira e Pacheco desonram essa tradição e esse fazer político. Aproveitam-se da baixa qualidade de boa parte dos parlamentares para bancar seus projetos pessoais de poder, olhando só para o ciclo eleitoral e minando ainda mais a confiança do povo no Congresso. Trabalham contra a instituição que lideram e, assim, contra a democracia.
Aquela máxima de que “pior que essa legislatura, só a próxima” é perpetuada por posturas desse tipo. Esse esforço concentrado que Lira e Pacheco estão empreendendo pode entrar para os anais de Brasília como um dos mais vergonhosos da história.