A culpa dos homens conservadores

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No sábado, a convite de um amigo querido, o Helber Oliveira, fui assistir com a Lya, aqui no Rio, ao show de Caetano Veloso e Maria Bethania. É um desses convites preciosos. Tudo o que os dois fazem me interessa. O Caetano em particular, ele é um pouco um Mario de Andrade moderno. Ele é um artista raro sempre muito preocupado em fazer uma síntese do que o Brasil é culturalmente. E, nesse show, ele canta um louvor evangélico que já tinha gravado com o pastor Kleber Lucas. É uma música chamada Deus Cuida de Mim.

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Quando o Caetano grava, começa aos poucos a legitimização de uma das subculturas brasileiras. Ele faz a ponte para uma certa intelectualidade, uma certa classe média, que é muito sofisticada, é muito lida, cosmopolita. Quase sempre progressista. Mas que tem muita dificuldade de aceitar o que não é espelho. Só que aí, quando o Caetano grava, quando ele vai lá na subcultura evangélica, por exemplo, e pinça um louvor, e canta com sinceridade, do seu jeito, o que ele está dizendo é o seguinte. Tem qualidade, aqui. E aí um grupo maior de pessoas consegue transpor a barreira dos seus preconceitos e ouvir.

A gente está precisando muito de pontes desse tipo. Olha, existe sim um movimento autoritário de extrema direita que parasita um conjunto grande de brasileiros. Mas os embates que estamos tendo não ocorrem apenas por conta desse movimento. Ocorrem também porque perdemos a capacidade de nos identificar uns com os outros. Perdemos a capacidade de nos vermos, conjuntamente, como brasileiros. Como um só povo. E se isso aqui está soando a você como papo de patriotada, não se engane. Porque não é. Não se trata de discurso sobre pátria. É sobre povo. Nós somos um só povo e perdemos a capacidade de nos reconhecermos dessa forma.

Claro. Isso acontece porque tem um bando de gente fanatizada que olha para a esquerda como se fossem pessoas que desejam o mal. Claro. É uma barreira dificílima de transpor. Mas tem o outro lado, né? Tem uma turma que olha para evangélicos, por exemplo, como uma gente atrasada, preconceituosa, cujos valores são inaceitáveis. Não é só com os evangélicos, né? Com o mundo sertanejo é bastante parecido. Uma gente cujos valores são inaceitáveis. Bem, muitos deles acham de progressistas o mesmo. Que seus valores são inaceitáveis.

Nossas dificuldades começam um pouco aí, né? Uma metade do Brasil olha para a outra metade e diz: seus valores são inaceitáveis. Isso não tem como ser. Não tem como durar. Um país assim dividido não fica de pé. E a gente não tem escolha. Que ninguém se iluda. Um lado não vai vencer o outro se impondo. É gente demais em ambos os lados. A gente vai ter de chegar a consensos, e a consenso só se chega de uma de duas maneiras. Ou um lado se arma e impõe-se ao outro. Ou então cada lado cede um pouco.

Também nesses últimos dias andei conversando, no Instagram, com uma seguidora. Ela mora no Reino Unido há bastante tempo. Eu fiz um reel, um vídeo rápido, comentando sobre como Elon Musk usou o Twitter para incentivar o conflito por lá. Ele chegou a escrever que, do jeito que as coisas estavam, a polícia estava a serviço da esquerda, contra os cidadãos britânicos de bem, e que o risco de guerra civil era iminente. O cara estava incitando violência.

Pois é, na última semana uma parte da sociedade britânica, a turma do Brexit, a turma mais radical de direita, partiu para a violência de fato.

Aí comecei a conversar com ela sobre a situação. Sobre a insatisfação que a classe média baixa britânica tem nesse momento. E ela comentava, comigo, que compreende as dificuldades econômicas desse povo mais pobre. Isso é muito comum de pessoas progressistas. Entendem as dificuldades econômicas, mas não entendem as psíquicas. As dificuldades de natureza pessoal. O choque da perda de status e o que isso diz, para muitas pessoas, a respeito de si mesmas. Ela me argumentava que muitos dos trabalhos que os imigrantes fazem, os brancos ingleses se recusam a fazer. E ela tem razão. Mas não é só isso. O Reino Unido e o Brasil são diferentes. Mas são também bastante parecidos. A crise da democracia se mostra diferente em cada país, mas no seu coração ela é igual. Ela vem da incapacidade de dois grupos se enxergarem. E nós falamos pouco demais sobre o lado de nós, progressistas, neste jogo de mútuos preconceitos.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Estamos no ano dois da corrida da inteligência artificial. É uma tecnologia que vai mudar radicalmente o mundo, assim como aconteceu com a internet. Só que a internet demorou vinte anos. IA vai mudar em dez. Estamos no ano dois, pois é.

Por isso publicamos o Meio Perspectiva: IA 2024, disponível para download para assinantes premium. A gente conta o que está em jogo nessa corrida. Olhamos para as forças que impulsionam o desenvolvimento da inteligência artificial e o que podemos esperar de evolução nos próximos anos. Explicamos também os conceitos que definem as IAs generativas e como elas irão afetar o mundo do trabalho, além de trazer um guia das principais ferramentas disponíveis hoje, dos chatbots às aplicações de geração de imagens, áudio e vídeo.

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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Você consegue se botar no lugar de um homem adulto de classe média baixa? Não de uma mulher, não de uma criança. De um homem adulto. Talvez de 25 anos. Talvez de 35 ou 45 ou 50. Para poucos grupos demográficos a perspectiva de vida piorou tanto quanto para essa turma nos últimos vinte, trinta anos.

Sabe, uma dos segredos do arco final da Revolução Industrial, o período entre o fim da Segunda Guerra e a década de 1990, talvez início da de dois mil, é o emprego de operário em fábrica. Em todo o Ocidente, onde havia industrialização havia esse algo de particularmente precioso. O emprego de operário oferecia para uma pessoa sem ensino superior estabilidade financeira e uma renda capaz de manter você na classé média, ainda que na classe média baixa. Operários tinham casa, geladeira, televisão. Muitas vezes carro próprio. Podiam viver num bairro um pouco pior, e a vida era um pouco mais apertada, mas tinha uma segurança. Eram de classe média.

Esses dois processos simultâneos, a digitalização do mundo e a globalização, acabaram com esse tipo de emprego na maioria dos países. Não foi só a transferência das grandes fábricas para o Sudeste Asiático, não. Mesmo lá, essas fábricas são cheias de robôs. Por que ocorre um enfraquecimento generalizado dos sindicatos em todo o mundo? Porque empregos de operário estão acabando em todo o planeta. É um emprego menos necessário. Além disso, a maneira de fazer dinheiro está se transformando. A Apple é a segunda maior empresa em valor de mercado do mundo e terceiriza a fabricação de todos seus produtos. O valor não está na manufatura. Não está no objeto feito. Está na patente, no conhecimento. O que dá muito dinheiro, hoje, é o que sai do cérebro na forma de código de computador, na forma de moléculas, na forma de genética.

Está diminuindo rapidamente no mundo o número de empregos capazes de dar dignidade a alguém sem ensino superior completo. E, olha, não é daquelas coisas que resolve na base da legislação. Força os empregadores, manda construir fábricas, o problema é mais complexo do que isso. Esse tipo de trabalho, com essa qualificação, perdeu valor porque a economia se transformou. O mundo se transformou. Só que tem um problema. A maioria das pessoas não compreende este processo. Não entende que tecnologia é uma força histórica que impõe transformações e que fomos sorteados. Estamos vivendo isso em tempo real. A maioria das gerações não vive, aconteceu na nossa vez. A maioria das pessoas acha que os governos estão fazendo alguma coisa errada. A culpa deve ser de alguém, e processo histórico não é alguém.

Então voltamos a esse camarada. A cultura em que ele vive deixa uma mensagem muito clara: o valor do homem está na capacidade de sustentar sua família, a mulher, os filhos. Adianta de muito pouco vir com um discurso de sociedade patriarcal, machismo, atraso. O mundo em que a maioria das pessoas vive é assim. O valor do homem está na capacidade de dar dignidade a sua família. Essa é a essência de sua missão. E, para um naco imenso de homens, nos últimos anos isso ficou barbaramente mais difícil. Exige muito mais horas de trabalho do que o nove às cinco, não tem mais férias remuneradas. Muitas vezes é o estresse de uma vida controlada por um aplicativo, pelo celular que traz o trabalho. Que é muito trabalho.

A sensação é de humilhação e de emasculação. Você se sente menos homem. A sensação é de fracasso pessoal, também. Tem alguma coisa que você não está sabendo fazer, você não está conseguindo. Então culpa quem? Depende. Depende da história que lhe contam. Depende do que você ouve e o que compreende. Talvez lhe digam que o governo ajuda os imigrantes, mas não ajuda você. Talvez contem que o governo quer dar privilégios para as mulheres, para os gays, para quem não trabalha. E você trabalha pra caramba numa vida que é puro stress. Do outro lado, você ouve só que é o mal por ser homem com os valores que tem, que você é atrasado, que você é um perigo. Que você é o vilão da sociedade. E têm esses caras aqui acenando com símbolos de masculinidade. Que é justamente onde você perdeu, sabe? Tratam você como o chefe da família. Você. Dizem que é para você se armar para mostrar força. Dizem, ainda, que bom é como era antigamente. E sabe do quê? Antigamente era bom mesmo. Você, ou o seu pai, conseguia mais coisa antigamente. A vida era melhor.

E, olha, pros homens mais jovens é ainda mais difícil. É falta de perspectiva, mesmo. Perspectiva de futuro. Que tipo de carreira você cria pra seguir e melhorar de vida com o tempo? Não tem muita escolha, não. No Reino Unido, nos Estados Unidos, aqui no Brasil. Mudam algumas coisas mas a história é a mesma. Enquanto para inúmeros grupos há conquistas importantes nos últimos vinte anos, esse grupo de pessoas sofreu uma queda gigante na sua perspectiva de que a vida pode ser melhor.

Aí vem o jogo da política, e só um movimento político está apresentando para esse eleitor uma história através da qual ele entende o que aconteceu e, nela, nessa história, tem um lugar de mocinho para ele. Para este grupo político, esse cara tem valor. E esse conjunto de eleitores é uma parcela imensa dos homens em idade produtiva em boa parte das democracias. O coração da extrema direita está neste conjunto. E na incapacidade de a sociedade educada olhar para este cara com empatia, compreender suas dificuldades, tratá-lo com dignidade e construir políticas públicas que possam voltar a lhe dar esperanças.

Da próxima vez que você encontrar com um homem evangélico empobrecido, lembra disso. A vida dele está muito, muito difícil. E, sim, talvez ele discorde de você em muitas coisas. Mas ele é cidadão, também. Tem o direito de ser ouvido. Tem o direito de suas ideias serem levadas em conta. Então a gente precisa voltar a conversar e redescobrir, reaprender, como negociar as diferenças. Deus cuida de mim, claro. Mas não devia ser só Deus. Devíamos todos cuidarmos uns dos outros só pelo fato de sermos concidadãos. Começa respeitando. O país tem de ser bom pra todo mundo, sabe?

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