Rebeca Andrade e a Bolsa Atleta

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Rebeca Andrade arrebentou, ganhou tudo que podia e o que não podia, enlouqueceu o Brasil. Foi reverenciada por duas atletas americanas no pódio, entre elas a até então insuperável Simone Biles.

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Foi um momento lindíssimo de atletas gigantescas se respeitando, de mulheres se congratulando, de mulheres negras reconhecendo os enormes sacrifícios que têm de fazer pra chegar ao topo.

Quase um ano antes de receber seu ouro olímpico, em outubro do ano passado, quando faturou suas medalhas no Panamericano, Rebeca deu um depoimento às redes do Ministério do Esporte exaltando a Bolsa Atleta. Ela fala do quanto esse dinheiro é importante para que os esportistas possam comprar seu equipamento, viajar para competir, e ajudar suas famílias. Fala dela mesma e de todos os outros que recebem o benefício do governo federal.

Se você está no espírito olímpico e nas redes, como quase todo o planeta, deve ter visto que o apresentador Marcos Mion fez um vídeo criticando a falta de investimento do governo federal no esporte, citando dados, que depois ele mesmo admitiu que estavam equivocados, de salários na faixa dos 2 mil reais para atletas brasileiros e tudo mais.
Mion se retratou depois, dizendo que o vídeo não era “uma crítica ao governo atual, nunca foi. Mas era uma reflexão para estimular um debate sobre melhorias aos incentivos financeiros possíveis para o esporte brasileiro”.

A questão é que o debate cresceu e, pra variar, muita desinformação e viés de confirmação rolaram pra alimentar cada um dos lados da briga.

Teve gente jurando que Rayssa Leal ganha R$ 400 contos de Bolsa Atleta. Isso é falso.
Teve quem dissesse que o que vale mesmo pra Fadinha são os patrocínios — o que também é só parcialmente verdadeiro.

Houve quem se lançasse numa campanha para que o dinheiro recebido pelos medalhistas olímpicos não seja sujeito a impostos, o que pode até virar lei.
E aí o papo já descambou pra meritocracia, investimento estatal, China…

Cá entre nós, o próprio vídeo do Mion, além de conter informações incorretas, fez uma confusão danada entre o que é investimento público e o que é privado e qual o papel de cada um no desenvolvimento do esporte.

Só que aqui no Meio a gente faz justamente isso: dá contexto, dados e faz análises que possam ajudar você a navegar melhor no mundo digital. Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. E te convido a ser nosso assinante premium para ter acesso a reportagens, entrevistas e artigos aprofundados, bacanas, que você não vê por aí, não. Sábado passado, por exemplo, a gente contou detalhadamente os bastidores da nota do PT em apoio a Nicolás Maduro. Mas também falamos da cena de música eletrônica e de inteligência artificial. Assine o Meio! São só 15 reais por mês.

Quem deve financiar os esportes de um país? Pagar os salários dos atletas de alta performance? E os mais iniciantes? Ah, mas isso em todo e qualquer esporte?
Essas são perguntas que uma nação pode decidir se fazer e chegar a diferentes respostas. Não há um modelo certo ou errado. Há aqueles que são ou não viáveis para cada tipo de país.

Pra começar pelas duas maiores potências esportivas do planeta, que, não por acaso, têm modelos diametralmente opostos — assim como regimes de governo. Os Estados Unidos são o país com o maior percentual de medalhas conquistadas. Entre 2000 e 2021, faturou 11% de todas as medalhas olímpicas disputadas. Em seguida, vem a China, com 8%.

O governo chinês investiu US$ 3,2 bilhões em 2023 em esportes.

No caso americano, o comitê olímpico do país e todas suas federações esportivas são bancadas com recursos privados: patrocínios, permutas, bolsas, material, tudo vem de empresas ou entidades sem vínculo com o governo.

Em termos, claro. O economista Andrew Zimbalist, um dos maiores especialistas em economia do esporte do mundo, tem livros e estudos que mostram que o subsídio do governo americano vem de outras formas, como na construção de estádios e ginásios esportivos e no investimento direto e indireto nas universidades, que têm por tradição fomentar os esportes olímpicos e lucrar com eles. O lucro de ingressos e merchan vendidos em torneios universitários não paga imposto, por exemplo.

Agora, olhem só a diferença de abordagens, de tradição e de efeitos de cada escolha.
Ambas as nações compreendem os benefícios de serem potências no esporte.

Internamente, porque o esporte é um espaço de socialização e educação fundamental para crianças e jovens. Externamente, é a boa e velha estratégia de soft power. De conquistar o mundo por meios não militares, mais simpáticos, de exportar mais de sua cultura e de sua visão por meio de seus atletas. E de projetar uma imagem vitoriosa, de poder e soberania.

A China faz isso por meio do seu método tradicional — e que só é possível mesmo numa ditadura. Investe pesadamente desde a infância com a força estatal e forma um contingente enorme de atletas para disputar em tudo que é categoria.

Os EUA também usam de seu método tradicional: a força do mercado. Universidades e marcas esportivas faturam alto, altíssimo com os atletas de boa performance e as ligas multibilionárias de cada modalidade.

Mas não pensem que necessariamente, tanto em um caso quanto o outro, essa pujança necessariamente chega aos atletas que não são as grandes estrelas.

No caso chinês, claro, pelo modelo político. Mas no caso americano porque os atletas que não são os de ponta também não veem chover patrocínios em seus quintais. Mais de 90% dos atletas olímpicos gastam até 22 mil dólares em taxas para competir, e mais de 25% dos atletas olímpicos dos EUA ganham menos de 15 mil dólares por ano.

Muitos atletas trabalham em empregos paralelos para complementar sua renda: são advogados, enfermeiros ou funcionários de supermercado?.? Alguns recorrem a plataformas de financiamento coletivo como GoFundMe para custear seus treinamentos?.

Bem, aí temos o Brasil. E seu modelo, já adianto, é parecido com países como Canadá e Reino Unido.? O Ministério do Esporte foi criado no governo Fernando Henrique Cardoso e teve Pelé como seu primeiro ministro. No governo Lula, em 2005, foi criada a Bolsa Atleta.

Ou seja, compreender que investir no esporte é papel do Estado foi consenso entre governos de diferentes ideologias. Especialmente num país onde o esporte cumpre um papel social tão essencial, sendo, muitas vezes, o único refúgio de educação e lazer de áreas inteiras.

Mas não só. Com exceção do futebol, que sempre atraiu patrocinadores de todas as estaturas e a atenção da cobertura jornalística televisiva, as demais modalidades nunca prosperaram no Brasil com apoios vultosos de empresas privadas. Da mesma forma, não existe por aqui a tradição de universidades privadas bancando atletas.

O que temos são os clubes privados de algumas das grandes metrópoles. E aí vem a confusão toda que Mion fez quando falou do Pinheiros, um dos mais fortes de São Paulo. Ele só esqueceu de mencionar, por exemplo, que um título pra se tornar sócio do clube custa coisa de 100 mil reais. E que o clube, assim como vários outros, conta com recursos da Lei de Incentivo ao Esporte — que nada mais é do que a opção de uma empresa de, em vez de pagar o total do que deve de impostos, repassar 2% para o clube e abater. Ou seja, é o governo federal abrindo mão de recursos para que eles subsidiem o esporte de ponta.

A Bolsa Atleta é apenas um dos pedaços do que a União investe no esporte hoje — e, claro, até se pode discutir se é muito ou pouco. Mas, primeiro, aos fatos:
Criada por Lula em 2005, ela não recebia reajustes desde 2010. Foi reajustada agora, em julho, em 10,86%.

Os valores variam de acordo com o estágio de evolução do atleta. O estudantil ganha 410 reais por mês. O olímpico e paralímpico, 3.437 reais. E o pódio, aquele que pode ganhar medalha mesmo, até 16.629 reais. É o que ganham Rayssa e Rebeca. Desde 2012, é permitido que, além da bolsa, o atleta também receba patrocínios. Também é o caso delas.

A briga ideológica passou pelo fato de que bolsonaristas criticaram os valores dados pelo governo Lula. Mas vale lembrar que no governo Bolsonaro, que extinguiu o Ministério do Esporte, a Bolsa Atleta não só não foi reajustada como, durante a pandemia, o edital não foi lançado e os atletas ficaram sem pagamento por meses. Independentemente de quererem ficar em casa ou não, tá?

Também houve quem atribuísse o sucesso das nossas medalhistas tão somente aos recursos privados, ao incentivo dos patrocínios. Isso também não é verdadeiro, como a própria Rebeca deixou claríssimo em seu depoimento.

O governo Lula vem exaltando as conquistas olímpicas nas redes sociais. A primeira-dama, Janja, idem. Há quem lembre que o mesmo governo Lula demitiu Ana Moser, uma lenda e ativista do esporte como instrumento de educação e desenvolvimento, do Ministério do Esporte para acomodar o Centrão. Há quem critique Lula e Janja por estarem “surfando” nas vitórias dos atletas para tirar proveito político. Fato é que a Bolsa Atleta e a escolha de se investir no esporte como política pública, é, sim, política.

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