O espantalho Estados Unidos

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O antiamericanismo na esquerda virou um equivalente ao marxismo cultural do olavismo. É uma bengala a partir da qual se explica o mundo todo. Os Estados Unidos querem dominar o mundo e sugar seu petróleo. Tudo o que acontece no planeta Terra passa a ser explicado por essa premissa. E, claro, China e Rússia são os países capazes de fazer frente aos americanos. A Rússia, militarmente. Os chineses, com o comunismo 2.0, ditando uma nova Guerra Fria na disputa de modelos de sociedade e economia.

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Só que a coisa não funciona assim e a gente precisa falar sobre política americana no mundo. Porque, olha, a esquerda aqui na América Latina, logo a esquerda que sempre apela para fazer leituras complexas do mundo, compreende muito mal os Estados Unidos.

A ideia, aqui, não é dizer que os Estados Unidos sejam o grande herói do mundo. Porque eles não são, nenhum país é. Mas é preciso desmontar esse consenso meio clichezão que parece ter-se formado com tanta gente progressista de que os americanos são um mesmo bloco monolítico que entende o mundo e atua da mesma forma desde 1945. De Dwight Eisenhower para cá, rolaram cinco ideologias diferentes que determinaram a maneira americana de compreender o mundo. Cada uma destas cinco ideologias leva a um tipo de política externa distinta da outra.

Sabe, deixa eu fazer uma provocação a vocês. Nem toda esquerda se move por um motor antiamericano. Mas existe uma esquerda muito forte, uma esquerda com ampla representação no governo, que considera que onde os Estados Unidos estão, o Brasil deveria estar do outro lado. Para o governo Joe Biden, foi um imenso desapontamento. A Casa Branca esperava encontrar, no governo Lula, um aliado no combate ao autoritarismo de extrema direita no mundo. Um aliado na defesa das democracias nesse momento de fragilidade. Aí descobriu que o governo Lula não vê os Estados Unidos, não importa o presidente, com bons olhos. Não é que o Brasil seja rival dos americanos, mas não é um aliado e consistentemente vai se movimentar, no cenário global, em oposição a Washington.

Ainda assim, há encontros. Estados Unidos e Brasil estão bastante próximos, diplomaticamente, na conversa sobre Venezuela. As conversas estão acontecendo, nos bastidores, com intensidade.

E qual é a provocação que eu quero fazer? Bem, as cinco ideologias adotadas por governos americanos desde os anos cinquenta do século passado explicam com bastante clareza por que as ações americanas foram do jeito que foram. Podemos simpatizar com algumas, odiar outras, o fato é que é um jeito de pensar.

Quando se encerrou a Segunda Guerra, em 1945, os Estados Unidos se viram num cenário global em que pela primeira vez, desde os descobrimentos, a Europa estava esvaziada, destruída, e americanos e soviéticos eram as potências vencedoras do conflito. Foram os dois Exércitos que chegaram a Berlim e a dividiram. Ambos, que haviam sido aliados durante a guerra, agora representavam dois regimes muito diferentes. A existência da bomba atômica e, logo depois, da bomba nuclear, fez com que um conflito direto se mostrasse de alto risco. Poderia, literalmente, destruir o mundo. Então os dois precisaram encontrar um jeito de disputar quem tinha o melhor sistema de sociedade, de economia, é o que a gente chama de Guerra Fria.

Entre o governo Eisenhower e o governo Johnson, estamos falando aqui do período que vai de 1953 até 1968,

todos os governos americanos, republicanos ou democratas, acreditam naquilo que batizaram Teoria do Dominó. É a primeira das maneiras de compreende o mundo que formaram a política externa americana desde então.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Estamos no ano dois da corrida da inteligência artificial. É uma tecnologia que vai mudar radicalmente o mundo, assim como aconteceu com a internet. Só que a internet demorou vinte anos. IA vai mudar em dez. Estamos no ano dois, pois é.

Por isso publicamos o Meio Perspectiva: IA 2024, disponível para download para assinantes premium. A gente conta o que está em jogo nessa corrida. Olhamos para as forças que impulsionam o desenvolvimento da inteligência artificial e o que podemos esperar de evolução nos próximos anos. Explicamos também os conceitos que definem as IAs generativas e como elas irão afetar o mundo do trabalho, além de trazer um guia das principais ferramentas disponíveis hoje, dos chatbots às aplicações de geração de imagens, áudio e vídeo.

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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

A lógica da Teoria do Dominó é a seguinte: se um país se torna comunista, as chances de o país vizinho virar comunista na sequência, aumentam. Olha, existem dois períodos de uma política externa americana muito agressiva. É esse período, da Teoria do Dominó, e agora mais recentemente o governo George W. Bush. É quando os americanos atuam como se o mundo todo fosse de seu interesse e consideram sua obrigação intervir militarmente ou com golpes de Estado por toda parte.

Toda ação americana nos anos 50 e 60 se baseia meio que num jogo de War. Ou a gente controla o mundo ou os soviéticos controlam. Então é preciso, a todo custo, evitar vitórias comunistas. Tinha um primeiro ministro ultranacionalista no Irã, com umas tiradas meio de esquerda demais? Manda a CIA organizar um golpe de Estado contra o Mossadegh. O Vietnã periga cair pros comunistas? Já foi a China, já foi o Camboja, daqui a pouco chega na Índia. Invade o Vietnã. Cuba virou comunista? Tragégia máxima, é na vizinhança de casa. Foco total na América Latina. Tem um cara lá no Brasil falando em nacionalizar as coisas, parece comunista? Ajuda os generais lá a derrubar o cara. Não importa que virasse ditadura, desde que fosse nossa ditadura.

Essa, aliás, é uma paráfrase do Franklin Roosevelt, quando alguém comentou com ele que o ditador nicaraguense Anastasio Somoza era um filho da………, bem, filho da mãe. Aí o Roosevelt respondeu: Pode ser um filho da mãe, mas é o nosso son of a bitch. Esse tipo de jeito de ver o mundo, nas duas décadas seguintes, é catapultado a extremos.

Aí vem Richard Nixon, e a coisa muda. Nixon teve um dos mais brilhantes, e mais frios, mais cínicos secretários de Estado da história americana. Harry Kissinger. Era um alemão fugido do Holocausto. Kissinger era um realista. E o realismo acredita, em essência, que existem grandes potências e cada potência tem sua área de influência. Você evita conflitos se agir na sua área de influência mas não interferir demais na área de influência dos outros.

Neste sentido, os americanos continuaram a espalhar ditaduras pela América Latina. Uruguai caiu, Chile caiu, Argentina caiu, todas são ditaduras militares de direita, pró-Estados Unidos, que vêm já sob esta visão realista. Estavam na área de influência americana, então tudo bem. Mas, veja, os americanos saem do Vietnã, reatam relações diplomáticas com a China. Cada um no seu canto, cuidando do seu pedaço do mundo.

Não é um elogio, tá? É um jeito de ver autoritário pacas, cínico, mas bem ou mal tem ali uma tese de como se evita conflitos. No tempo da teoria do dominó, não se evitava conflitos. Era guerra até o fim, disputa de cada palmo do planeta.

Entre 1977 e 81, os Estados Unidos foram governados por Jimmy Carter. Ele era um liberal. O que eu quero dizer com isso é: ele tinha uma visão liberal de política externa. É um outro jeito de compreender o mundo e, no governo Carter, foi muito mal implementado. Ele acreditava que o país ganharia mais com mais democracias no planeta. Teve uma brava luta como presidente, denunciou todas as ditaduras latinoamericanas e não só elas, mas foi um desastre. Mas não conseguiu nada.

Ronald Reagan e George Bush pai trazem de volta o realismo pra Casa Branca. Então acontece a aproximação com a União Soviética, negociações de desarmamento, e de certa forma eles ganham a Guerra Fria com essa política. Embora, sejamos justos, foram mais os soviéticos que perderam do que os americanos que ganharam. Aquele negócio entrou em colapso.

O liberalismo volta à Casa Branca com Bill Clinton. Dessa vez, muito bem implementado. Está lá nos dois governos Clinton, nos dois governos Obama, no governo Biden e, se for eleita, no governo Harris.

Os liberais acreditam que o caminho da paz é a existência de mais democracias. Acreditam em instâncias internacionais de negociação. Acreditam que quanto mais democracias com economias de mercado, maior o tráfego de comércio internacional, mais mercados para os Estados Unidos, mais mercados pra todo mundo. Todos enriquecem. Mas acreditam, também, que democracia nasce de baixo pra cima. Ou seja, ou a sociedade de um país luta por sua democracia, ou não adianta. Então desde o governo Clinton começam a nascer organizações privadas como a Fundação Ford, a Open Society, que em essência financiam ongs e outras entidades da sociedade civil que trabalham por valores democráticos. Imprensa livre, direitos de mulheres, sindicatos, educação, não importa. É ajudar a fomentar um espírito de desejo de democracia na sociedade.

O primeiro grande experimento é feito na Europa Oriental. É até curioso, boa parte das ONGs de esquerda e sindicatos que acusam o imperialismo americano são financiadas por estas organizações de fomento liberais americanas. Mas, olha, a expansão da OTAN, o fortalecimento do G20 que o Brasil preside este ano, coisas como o encontro anual em Davos ou até o ciclo de palestras TED, a máquina internacional de combate a mudanças climáticas, tudo está ligado a esse jeito liberal de pensar o mundo conjuntamente. Não no nível nacional, de cada país, mas no nível global, de todos nós humanos juntos pensando sobre o planeta.

Existe, claro, um interregno neste jeito americano de pensar. É o governo George W. Bush. Eles são neoconservadores. Eles pegam ali dos liberais a ideia de que é bom para os Estados Unidos espalhar democracias. Mas sua convicção é de que democracias podem ser fabricadas. Quando tem o Onze de Setembro, os americanos são atacados e têm motivo para entrar em guerra contra o Afeganistão. Mas não tinham nada contra o Iraque. O Iraque não tinha nada a ver com a história. Só que os neoconservadores têm esse plano mirabolante de que poderão transformar o Iraque numa democracia. É facinho. Basta entrar lá com uma desculpa, Saddam Hussein tem armas de destruição em massa, mentira, mas e daí? Entra lá, derruba o cara, bota um governo e implanta a democracia de cima pra baixo. Deu tudo errado, implodiram metade do Oriente Médio, foi um desastre. Nunca mais voltaram ao poder, perderam controle até do seu partido.

Porque é isso, né? A teoria do dominó levou a um mundo de escalada de conflito entre americanos e soviéticos. Os realistas, bem ou mal, produziram uma paz armada. Os liberais conseguiram, por um tempo, fomentar um aumento imenso de democracias no mundo, além de crescimento do mercado para muitos países, inclusive o Brasil. Os neoconservadores conseguiram destruir o Oriente Médio e deixar a batata quente na mão dos outros.

Quatro ideologias, eu falei em cinco, não é? Bem, tem Donald Trump. E, no primeiro governo dele, além de uma pegada isolacionista, não ficou muito claro como ele via o mundo, não. No máximo uma certa atração que o Trump tem por homens fortes, autoritários. Ele quis invadir a Venezuela, em um determinado momento. Seus assessores o dissuadiram. Ia ser loucura, maluquice, uma derrama de sangue com resultados imprevisíveis. O Iraque já devia ser mostra de como essas coisas dão errado, e a Venezuela não é tão fragilizada quanto o Iraque era. Mas isso não chega a formar propriamente uma doutrina, uma ideologia.

A gente não sabe como Donald Trump seria. Mas que ninguém tenha dúvidas. Tem gente por aí que diz assim: governo democrata ou republicano é igual na política externa. Em alguns momentos da história tendem a ser, mesmo. Mas faz algum tempo que não é. E, neste momento, a diferença entre um governo Trump e um governo Harris é gigante.

Da próxima vez que alguém disser para você que os Estados Unidos são simples, são só um monstro devorador de petróleo que faz de tudo para devorar quem tem, olha… Você pode responder: a coisa é um pouco mais complicada do que isso.

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