Venezuela e a miopia do PT

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Como é que se justifica uma ditadura?

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Se ela é fruto da resistência a uma tentativa de golpe de outro grupo político, vale? E se for pra impedir que outro país tenha ingerência sobre o seu país?

Aliás, o que define uma ditadura?

É com essas perguntas que cada grupo político tem de se confrontar se quiser ser honesto intelectualmente.

Ditadura, numa leitura mais simplificada e bruta, é o oposto de democracia. É quando todos os mecanismos de distribuição de poder e de controle decisório são concentrados nas mãos de uma só pessoa ou de um só grupo. Ditadura é o que sufoca liberdades políticas e civis daqueles que são diferentes.

Para isso, normalmente, uma ditadura é implementada e sustentada por militares. Afinal, é preciso que haja alguém com uma força incontestável — a das armas — para impor suas vontades a todos os outros.

Agora, especialmente de uns anos pra cá, ficou claro que um ditador não chega ao poder necessariamente por meio de um golpe de Estado. Ele pode se eleger democraticamente e, uma vez instalado no comando, agir para minar as instituições a tal ponto que elas perdem a capacidade de confrontá-lo, puni-lo.

O líder eleito democraticamente vai deteriorando o sistema eleitoral que o botou ali, a reputação dos juízes que podem arbitrar sobre a saúde da democracia e seus participantes. Nas eleições seguintes, que só por serem eleições já soam como democráticas, esse líder arma para prender opositores ou tirá-los das disputas eleitorais, para boicotar o acesso do povo às urnas e para melar a contagem transparente dos votos dos cidadãos. Se diante de tudo isso ainda houver uma chance de perder, ameaça com confusão, levantes, insurreição.

Soa familiar?

Pensou em Donald Trump ou Jair Bolsonaro? Pois esse é exatamente o modus operandi de Nicolás Maduro também.

E, cá entre nós, a parcela da esquerda brasileira que ainda não reconhece em Maduro um líder autoritário e antidemocrático está fazendo malabarismos inaceitáveis para defendê-lo depois de tudo que se sabe do que aconteceu na Venezuela.

Por que eu disse “parcela da esquerda brasileira”? Porque sim, há pessoas na esquerda que já entenderam que não dá pra passar pano para Maduro só porque, na origem do governo de Hugo Chávez, havia ideais de esquerda que o norteavam.

Esses ideais foram sendo abandonados um a um e Maduro nunca os encampou. Gente, boa parte da esquerda da Venezuela não apoia Maduro, rompeu com ele porque essa coisa de impedir adversários de competir atingia também esse campo.

O Partido Comunista da Venezuela rompeu com Maduro em 2020. E, assim como o Marea Socialista, criticou duramente a falta de transparência no processo eleitoral. Uma das acusações que a esquerda venezuelana faz ao governo de Maduro é que ele banca “candidaturas-laranja” à esquerda para emprestar alguma legitimidade ao pleito — e que esses candidatos rapidamente reconheceram Maduro como vencedor como parte da estratégia.

Então, o que explica o PT e outros militantes de esquerda defenderem Maduro a qualquer custo? É tudo em nome do anti-imperialismo americano? Ou por causa da tentativa de golpe contra Chávez em 2002?

Eu sou a Flávia Tavares, editora do Meio. Ficou sabendo do nosso especial, o Meio Perspectiva: IA? A gente preparou um material super completo com artigos, pesquisa, guia de apps, e tudo que você precisa saber pra ter uma conversa inteligente e bem-informada sobre essa revolução tecnológica. Ele está disponível pra todos os assinantes premium do Meio, em uma versão pra desktop e outra pra celular. Assine o Meio!

Os ditadores e autocratas parecem estar mais espertos do que eram no passado. Encontraram formas menos óbvias e violentas de tomar e manter o poder. Mas uma tática é a mesma desde sempre: eles embaralham discursos e ideologias e confundem a opinião pública sobre suas intenções. Costumeiramente dizem agir em defesa da pátria, contra inimigos externos e internos poderosíssimos e se autoproclamam os únicos capazes de salvar, justamente, a democracia do país.

É por causa desse novo grau de sofisticação que já há algum tempo os cientistas políticos oferecem classificações diferentes para o nível de democracia dos países ou de seu estágio de autocratização. As coisas não são assim preto no branco, há formas de medir isso. Um dos parâmetros mais aceitos globalmente é o oferecido pelo V-Dem, que junta quase 4 mil pesquisadores de diferentes países pra avaliar o estado da democracia em cada nação.

Com esse volume de cientistas, claro, elimina-se a possibilidade de viés ideológico. Os critérios também são objetivos, não subjetivos. E o saldo é o de que a Venezuela é considerada uma autocracia eleitoral, ou seja, um regime fechado onde há ainda eleições em que a oposição tem chance de ganhar — mas com viés de baixa, por assim dizer. Com sinais claros de que há uma tentativa real de acabar com essa possibilidade.
E aí chegamos a 2024 com qual cenário? O governo de Maduro agiu pesado para desabilitar ou prender candidatos de oposição. Limitou a votação de venezuelanos que moram no exterior. Barrou observadores internacionais. Mudou locais de votação.

Estendeu o horário de votação em alguns locais. Chamou embaixadores pra reuniões sobre o processo eleitoral. Enfim, alguns truques até lembram o que aconteceu no Brasil em 2022 — e que foi, corretamente, apontado como tentativa de fraude pela esquerda daqui.

Teve mais. O TSE deles, o CNE, escondeu as atas da maioria das urnas do país. É nesse ponto que o governo brasileiro está pressionando a Venezuela, assim como quase toda a comunidade internacional. Sem ver esses documentos, não dá pra declarar Maduro vencedor, simplesmente não dá.

A situação é tão delicada que o presidente Lula, que foi fiador de Maduro por tanto tempo, falando que ele tinha de lutar contra as “narrativas” construídas contra ele e tal, percebeu que era hora de recuar – e bastante. Ao ouvir falar da ameaça de “banho de sangue”, se disse assustado. Mas vem bancando até aqui a posição firme de não reconhecer a vitória de Maduro enquanto não vir essas atas.

Seu partido, o PT, foi em direção diferente. Soltou uma nota em que diz que Maduro foi “reeleito” e deve seguir “dialogando” com a oposição. Não, gente, fraude eleitoral não se resolve com diálogo. Apuração da repórter Luciana Lima, do Meio, dá conta de que Lula não gostou nada disso e pediu pra direção do partido explicar como se chegou à nota.

O texto diz ainda que os problemas da América Latina e Caribe devem ser tratados “pelos povos da nossa região, sem nenhum tipo de violência e ingerência externa”.
Isso aqui ecoa de forma cristalina o principal argumento da esquerda para justificar todo e qualquer apoio a ditaduras de esquerda pelo mundo. Elas seriam simplesmente uma forma de resistir ao imperialismo americano. Talvez a única.

Aí, começam a pipocar os vídeos que comprovam esse imperialismo, com falas de autoridades dos Estados Unidos deixando claro que eles querem mesmo é se apossar do petróleo da Venezuela e tudo mais.

Rola também a ideia de que os opositores atuam em nome dos interesses capitalistas dos yankees.

E veja que a sede comercial dos Estados Unidos e a possível aliança de opositores a partir dessa visão capitalista de mundo não são falsas. Têm base na realidade. Não é um delírio esquerdista, mas também não tem esses ares conspiratórios. É o que é num mundo globalizado e capitalista como é essa Terra redonda em que vivemos.

Supondo, então, que Maduro só aja dessa forma autoritária pra proteger a Venezuela da investida imperialista dos Estados Unidos. É isso que basta para se abrir mão da democracia? Mesmo que o povo queira eleger um governo alinhado com os americanos?

O mesmo argumento não poderia, então, ser usado pela extrema direita com relação a países e governos que queiram se alinhar à China? Ou à Rússia?
Essa miopia democrática tem feito o próprio PT justificar o governo ditatorial de Putin, que de esquerda não tem nadica de nada. Ou exaltar a democracia chinesa, o que soa até como piada.

O que me agonia profundamente é ver como parte da militância de esquerda se recusa a admitir o quanto Maduro, Putin e ditadores da direita têm em comum em seus métodos. Porque ditadura não é ideologia, é forma. É a supressão da democracia em nome de uma visão imposta de mundo.

Aí vem uma separação importante. Uma coisa é o governo de um país, o governo Lula, por exemplo, ter relações diplomáticas e comerciais com ditaduras, de esquerda ou de direita. Mais do que isso, abrir diálogo com elas num esforço de ampliar as chances de um regime democrático vingar nesses países. Outra é chamar isso de democracia. Não dá. Simplesmente, não dá.

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