Vamos ver quem é democrata, agora
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Vamos falar com clareza, aqui. Não é só que a eleição na Venezuela foi fraudada, e foi fraudada. O que está em curso em Caracas tem nome. É um golpe de Estado. Tem gente dizendo algumas coisas nas redes sociais. Uma, que não dá para chamar a Venezuela de ditadura. Outra, que não dá para afirmar que houve fraude. Dá para fazer as duas afirmações com tranquilidade e com base naquilo que é de conhecimento de todos.
A Venezuela, como o Brasil, tem voto eletrônico. E, como o Brasil dos sonhos bolsonaristas, tem também voto impresso.
Como é que funciona o voto eletrônico no Brasil? A maioria das pessoas vê a totalização de votos que o Tribunal Superior Eleitoral faz só pelo número grande. Mas quando a gente na imprensa faz aquele anúncio, vinte por cento das urnas apuradas, fulano tem tanto e beltrana tanto mais, esta não é a única informação que o TSE está dando. Os jornais plugam nos servidores do TSE em tempo real, mas qualquer brasileiro pode entrar lá no site e ver o resultado urna a urna. Quantos votos cada candidato teve em cada urna. Está tudo lá.
E não é só isso. O presidente de cada seção eleitoral do Brasil, quando encerra o dia de votação, digita um código e imprime o que nós chamamos de boletim de urna e os venezuelanos chamam de ata eleitoral. É a mesma coisa. Tem, ali, a soma de cada voto que foi digitado na urna para cada candidato. Estes votos não estão conectados com os eleitores, claro que não. Isso quebraria o sigilo do voto. Mas o número total que cada candidato a vereador ou a presidente da República teve naquela urna específica está lá registrado. E esse boletim de urna é público, afixado na entrada de cada seção eleitoral do país. Ou seja, qualquer brasileiro que queira pode ir lá com seu celular, fotografar o boletim de qualquer urna, entrar no site do TSE e bater os números. Já fiz isso várias vezes. Sempre bate igualzinho. Tem cidade que faz mutirão pra pegar todos os boletins e conferir. Sempre bate. E bate porque, entre outras coisas, o TSE faz tudo isso muito rápido e em tempo real.
O sistema na Venezuela é mais ou menos igual. A diferença é que lá todas as urnas têm biometria, então há uma proteção a mais para o eleitor. Ou pelo rosto, ou pela digital, ninguém pode votar no seu lugar.
O que aconteceu esta madrugada de domingo para segunda? Algumas coisas. Primeiro, os boletins de urna não foram afixados em 60% das seções eleitorais. Isso mesmo. Bem mais que a metade. Onde estão esses boletins de urna? Ninguém sabe. Sumiram.
Com base nos 40% de boletins que foram afixados, a oposição vinha calculando uma vitória grande. No Brasil seria inimaginável um cenário desses, boletins de urna não serem tornados públicos. Você só faz isso se quer esconder o resultado. Aí, de noite, de repente, o Conselho Nacional Eleitoral, o CNE, o TSE deles, veio com essa de que já haviam apurado 80% das urnas e Maduro estava confortavelmente na frente.
Como assim apuraram 80% das urnas? Cadê os boletins? Quantos votos havia para quem em cada urna? Não o detalhe. Não tem nenhum detalhe. Só um número total. Maduro ganhou porque nós estamos dizendo, confie em nós, não tem nada atrás da cortina. Um resultado contra todas as pesquisas. Todas menos uma, que circulou muito nas redes da esquerda brasileira. Era uma pesquisa falsa de um instituto que não existia. Conforme gravo este Ponto de Partida, o site do CNE está fora do ar faz vinte e quatro horas. É por isso que o governo brasileiro, com a cautela que a diplomacia precisa mesmo ter, diz que espera ver os dados abertos da votação. Sei que tem muita gente de direita impaciente com o governo Lula. Desconfiada com o governo Lula. Mas calma. Por enquanto, o Itamaraty está fazendo tudo muito certo. A gente chega lá.
Vamos seguir na fraude porque, no caso venezuelano, é ainda pior do que o caso brasileiro. Sabe por quê? Porque lá tem o voto impresso. Aquele que os bolsonaristas queriam. Isso quer dizer o seguinte: cada eleitor votou na urna eletrônica, imprimiu num papel seu voto, conferiu, e depositou em uma urna. Ou seja, mesmo que os boletins de urna desapareçam, mesmo que o CNE não abra os votos, ainda existem as urnas físicas com votos em papel que podem ser contados manualmente. Vão se negar a fazer? Por quê?
A tentativa de fraude é óbvia. E, no caso de fraudar uma eleição presidencial, trata-se de um golpe de Estado. Uma tomada ilegítima do poder.
Ser de esquerda não quer dizer ser democrata. Algumas pessoas de esquerda são democratas, algumas pessoas não são. O bolsonarismo mostrou, para os brasileiros, quem na direita era realmente democrata e quem não era. A eleição venezuelana, uma fraude evidente, uma tentativa de golpe de Estado, vai fazer o mesmo com a esquerda.
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
O que faz de um país uma democracia? O que faz dele uma autocracia? Dá para dizer qual é o quê? Dá para classificar. Existem três medições, todas mais ou menos similares. Como eu estudei ciência política nos Estados Unidos, sou mais familiarizado com a da Freedom House, que é o padrão por lá. Mas existem outras duas medidas, a da Economist Inteligence Unit e a do Instituto V-Dem, que é europeu e o padrão preferido dos cientistas políticos brasileiros. Então vamos ficar com o V-Dem.
Como é que estas medidas funcionam? Bem, eles juntam um bando de cientistas políticos, cada grupo especializado em acompanhar um país ou uma região. Essa turma então faz uma avaliação rigorosa de inúmeros quesitos. É mais de um cientista político para cada país, tá? Como funciona a Justiça num país? Como são as eleições? Liberdade de imprensa? Livre manifestação? Eles vão dando notas, fazendo a média de cada país, tabulando. Aí, dependendo das notas de dezenas de itens, encaixam em uma de quatro classificações.
Democracia liberal. É democracia, portanto a cada eleição tanto governo quanto oposição têm amplas chances de chegar ao poder. E é liberal: as pessoas têm plenos direitos e são realmente consideradas iguais perante a lei. Aí tem a democracia eleitoral. O Brasil é uma democracia eleitoral. As eleições são livres, governo e oposição têm plena oportunidade de se eleger. Mas os direitos individuais, aí a coisa fica torta. A Justiça não garante que todo mundo tenha realmente os mesmos direitos, sabe? É o que nós somos, é o que a maioria das democracias são. Imperfeitas.
Têm as autocracias eleitorais. São ditaduras, mas ditaduras, digamos assim, mais leves. Os direitos individuais valem muito pouco, não há liberdade de imprensa ou muito pouca, direitos políticos não são garantidos. Mas as eleições meio que funcionam. A oposição tem dificuldades, muitos de seus políticos são impedidos de concorrer, mas têm alguma chance. Na América, temos três autocracias eleitorais de acordo com o V-Dem. A Venezuela, a Nicarágua e El Salvador. São ditaduras mais leves, mas que ninguém se engane. São ditaduras. E por fim existem as autocracias fechadas. Podem até ter eleições, mas não são de verdade, a oposição não tem qualquer chance de vencê-las. Nas Américas temos um país assim. Cuba. Ditadura fechada.
É assim que a ciência política classifica. Você não pode reclamar que o bolsonarismo ignorava a ciência na Covid e ignorar a ciência, aqui, por ser ciência humana. Três entidades formadas por cientistas políticos avaliam a qualidade das democracias no mundo. As três, com critérios estabelecidos pela ciência que estuda política, consideram a Venezuela uma autocracia. Um regime não livre. Uma ditadura. O V-Dem, a medida mais amplamente utilizada no Brasil, trata a Venezuela, no relatório de 2024, como uma autocracia eleitoral. E vocês já estão entendendo onde quero chegar, não é? Porque o que separa uma autocracia eleitoral de uma autocracia fechada é a chance, ainda que mínima, de a oposição chegar ao poder via eleições. Se não tem chance nenhuma nem quando a coisa está 60 a 30 nas pesquisas, aí já não é mais autocracia eleitoral. Aí vira autocracia fechada. É o pior nível que uma ditadura pode alcançar. Só havia uma no Hemisfério Ocidental. Se este golpe se concretizar, serão duas. O V-Dem, no ano que vem, vai classificar a Venezuela junto com Cuba.
Mas esse jogo não terminou. A fraude é clara, é evidente, Maduro já foi declarado vencedor mas, até agora, só cinco países reconheceram o resultado. Cuba, Nicarágua, Bolívia, China e Rússia. Deles, quatro ditaduras. Há pressão internacional. O governo brasileiro está falando manso porque se alguém tem chance de negociar o fim dessa farsa é o Brasil. E o fim negociado acontece sempre de um jeito: Maduro é aceito como exilado em algum país do mundo e, no acordo, leva a grana que juntou de corrupção nas últimas duas décadas. A vantagem da saída negociada é que não tem derrame de sangue.
Qual a chance de isso acontecer? Vai depender do povo da Venezuela. Essa gente foi humilhada. Foi às urnas com gana de mudança e calaram sua voz. Se o povo estiver intimidado pelo Exército do regime e pelas milícias bolivaristas com suas motos, é uma turma muito agressiva, aí a coisa morre. Se o povo for pras ruas, se ficar nas ruas, a pressão pode tornar o país ingovernável. É a hora em que o Brasil pode entrar como mediador. É um papel honrado e importante.
Mas que ninguém se engane. Houve fraude e há um golpe em curso. Se ficar por isso mesmo, o Brasil tem igualmente um papel importante a cumprir. Não reconhecer a vitória de Maduro e tratar a coisa pelo que é. O governo democrático do Brasil existe porque um golpe de Estado, aqui, não vingou. Não pode, por coerência, por honestidade, por espírito democrático, tolerar que um golpe dê certo na casa ao lado só porque o inquilino veste as mesmas cores.
Nem todo mundo de direita é democrata. Mas alguns são. Nem todo mundo de esquerda é democrata. Alguns são. Está na hora de vermos quem é e quem não é.