Os memes do Haddad

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A gente não pode tirar férias, né? Uma semana só. Não é pedir muito. Primeira vez desde que o Meio começou. Aí o presidente dos Estados Unidos desiste de ser candidato. Primeira vez que acontece isso desde 1968. Tipo: eu não era nem nascido. Não dá. E nesse bando de notícia que ocorreu desde a quarta passada, acho que a mais importante pra gente discutir são os memes do Haddad. Ou Taxad. Sabe por quê? Porque a imprensa errou muito feio na cobertura.

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Muitos veículos, muitos comentaristas sérios, gente demais embarcou na onda errada do governo e se perdeu. E, olha, quando falo onda errada do governo, é também porque o governo errou na maneira de encarar a onda de memes fazendo graça do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. E o erro se deu de duas maneiras diferentes.

A primeira foi partir do princípio de que a onda de memes foi orquestrada. Quem estuda isso, que traça esses movimentos online, não vê qualquer indício de que tenha havido orquestração. Quem entende como memes funcionam do ponto de vista da sociologia digital, percebe logo que o cenário mais provável é o da espontaneidade. E, olha, basta olhar para a campanha de Kamala Harris para ter uma lição de como políticos devem lidar com memes. Mas, antes de entrar nesse debate, o sobre memes e viralização, tem um mais importante. Vamos comprar a premissa do governo só pelo argumento. Digamos que a onda de memes tenha sido orquestrada. Bem… E daí?

A gente se acostumou mal com os anos Bolsonaro, sabe? Havia ali uma máquina de desinformação digital usada para atacar a democracia. Só que, aí, a existência daquela máquina criou um cacoete reativo que descolou gente demais da ideia de como uma democracia funciona. Criticar um ministro da Fazenda por cobrar impostos é legítimo. Mesmo que a crítica seja coordenada, mesmo que um grupo de pessoas se organize para criticar em conjunto de forma à mensagem ganhar volume ou ir mais longe, isso é legítimo.

Numa democracia liberal, existe um conjunto de direitos individuais, direitos políticos, que são garantidos a todo mundo. Em todas, rigorosamente todas as democracias, é assim.

O direito a votar e ser votado. A partir de uma certa idade, você pode se candidatar e você pode escolher a que candidato dá seu voto numa eleição. O direito à livre expressão do seu pensamento. Suas ideias, suas opiniões, se você deseja torná-las públicas, se quer participar do debate sobre o que é de interesse de toda comunidade, você pode. A liberdade de associação. Você pode formar grupos que tenham objetivos políticos. Partidos, sindicatos, associações de moradores, ONGs. Tem uma turma com interesses e opiniões similares às suas, quer se organizar para desenvolver um determinado caminho? Pode. E, o último, liberdade de reunião. Ou seja, de se encontrar com pessoas para conversar e fazer planos envolvendo política.

Direito de votar e ser votado, livre expressão, livre associação, liberdade de reunião. Cinco direitos. Todos previstos no Artigo Quinto da Constituição brasileira. Nos parágrafos quatro, sete, nove, dezesseis e vinte e um. São tão importantes, tão marcantes, tão fundamentais, que são cláusulas pétreas da Constituição. Estão entre aqueles poucos itens que dão forma ao tipo de democracia que nós temos aqui e que, portanto, o Congresso não pode mexer nem como emenda constitucional. Ninguém pode mexer. O Brasil é uma democracia.

Na prática, eles querem dizer o seguinte. Você pode ter suas ideias e pode se juntar com uma turma para promover suas ideias. Isso acontece quando um grupo de pessoas organiza uma passeata. Acontece quando monta um jornal que defende um ponto de vista específico. Acontece também quando um bando de gente produz memes para dizer que o ministro da Fazenda gosta demais de impostos.

A crítica é legítima. Respostas à crítica são igualmente legítimas. Vejam, o governo tem duas ferramentas para garantir responsabilidade fiscal. Uma é gastar menos, a outra é arrecadar mais. O governo Lula fez uma escolha, que é a de cortar muito pouco do orçamento. É uma escolha legítima, o governo foi eleito. Pode fazer a escolha de cortar o menos possível. Tudo certo. Só que aí precisa arrecadar mais, mesmo. A conta está lá, pra não ter déficit ou sai menos ou entra mais. E alguns tipos de impostos vão ser bastante impopulares. Essas coisas baratas que vêm das lojas digitais chinesas, as pessoas gostam delas. Principalmente a classe média e classe média baixa. Aumenta o poder de consumo. A China faz as coisas muito barato e entrega na sua casa. Se o governo sobretaxar, as pessoas vão comprar menos. Felizes, não vão ficar. Quer defender que é para proteger a indústria nacional porque a indústria nacional não consegue competir com os preços chineses? Pode defender. Está tudo certo. Só não espere que vá ser popular. Muita gente não vai gostar. E vai ter gente chamando o ministro de Taxad.

O ponto aqui é só um: vamos dizer que pessoas tenham se organizado para fazer graça do ministro. Para reclamar dos impostos. Mesmo que as pessoas tenham sido pagas para se organizar, não importa. Pode. Em democracia funciona assim, sempre funcionou, está valendo. Não tem nada de errado.

Que a gente tenha se esquecido disso é só mostra de como, coletivamente, estamos perdendo a noção do que uma democracia é.

Se queremos defender a democracia, precisa começar pela defesa de princípios democráticos básicos.

Isto posto, vamos falar de memes.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Quem está na frente da corrida da inteligência artificial, China ou Estados Unidos? A IA vai em algum momento virar um ser consciente e tentar dominar a humanidade? Quais os melhores aplicativos para gerar textos, imagens, vídeos e músicas? Aqui no Meio a gente passou os últimos dois meses mergulhados nisso. No próximo dia 29 de julho nossos assinantes premium vão receber uma edição especial, o Meio Perspectiva IA. Essa é a hora de você assinar, hein?

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Sabe de onde vem essa palavra, meme? Em 1976, o biólogo evolucionista Richard Dawkins lançou um livro super-importante chamado O Gene Egoísta. Era, essencialmente, uma releitura do darwinismo, propondo que a seleção natural não se dá no nível das espécies, mas sim dos genes. Enfim, não importam os detalhes. No último capítulo, ele propôs uma ideia interessante. A de que cultura se propaga também passando por um processo muito semelhante ao da Evolução Natural. Um dia alguém aparece com um boné virado para trás, e outras pessoas interpretam aquilo como tendo um significado. O de que aquela pessoa é um pouco mais ousada, um pouco mais descolada. E começam a imitar. Um dia alguém aparece com a ideia de que um homem condenado à morte numa cruz representava o elo entre a humanidade e o divino, e aquilo se espalha. Há reprodução e contágio. Então, assim como a unidade básica de informação da vida está em um gene, ele propôs a ideia de que a unidade básica de informação da cultura poderia ser batizada de meme. Vem de mimeme, a palavra grega para imitação. Porque cultura é isso. Uma ideia tão cativante que desperta o desejo de ser imitada.

Quando começamos a assistir ao fenômeno destas unidades de informação que se proliferavam como vírus, na internet, alguém lembrou desse insight do Dawkins. Porque era exatamente disso que ele estava falando. E, olha, a gente já tem bastante ciência sobre isso. Tem muito artigo científico sobre como memes se espalham.

Nós sabemos, por exemplo, que memes com imagens têm maior capacidade de propagação do que memes só de texto. Memes com humor têm maior capacidade de propagação do que os sem. Sabemos que quando carregam uma mensagem que reverbera com as pessoas, têm imagem e humor, seu poder de propagação é ainda maior. Tem de ser simples e bater na pessoa como verdade, como uma sacada perfeita. Some a isso as próprias ferramentas das redes sociais. Algumas redes, Facebook e Twitter, por exemplo, são distribuidoras de memes mais fortes do que Instagram e TikTok. Por quê? Pela facilidade de compartilhar. Redes que têm aquele botãozinho que você clica e manda pro povo todo são as grandes espalhadoras de memes. Mas isso explica como se dá a viralização. E como surgem?

Sociabilidade. Gente, percebe uma coisa: a internet é uma máquina de sociabilização através da expressão. Sempre foi. Desde lá atrás, nos anos 1980, 90. Com as redes sociais a coisa só aumentou. Damos nossa opinião, gravamos vídeos, nos mostramos e mostramos o que pensamos. Pegar uma imagem, editar num programinha de inteligência artificial, botar uma frase engraçada e lançar na rede é a mesma coisa que publicar um vídeo no TikTok ou escrever um tuíte. As pessoas não precisam ser pagas para fazer isso. É a expressão de uma ideia, de um senso de humor, de um incômodo. O prêmio está em ser aceito. Quando o meme que você criou é espalhado, isso quer dizer que você fez contato, você foi percebido como relevante. Você faz parte da comunidade digital.

Se tem uma coisa que o bolsonarismo sempre percebeu é o quanto esta sensação de fazer parte de uma comunidade de valores comuns constrói movimentos políticos sólidos. Eles fazem isso atacando a democracia. Mas nas críticas ao ministro Fernando Haddad não há um ataque à democracia. Há um conjunto de brasileiros emitindo uma mensagem, manifestando uma opinião. Essa opinião reverbera na forma de humor, mas é uma opinião para ser levada a sério.

Olha, fizeram um monte de memes sobre Kamala Harris. Como sua campanha reagiu? Adotou. Deu aquela virada para torná-los a favor, mexeu na mensagem com humor. É assim que se reage a memes. Espalhando os seus. Incentivando seus apoiadores a reagir com a mesma linguagem de humor mambembe.

Não é ficando indignado porque brasileiros se juntaram em comunidade para reclamar de governo. Gente, em democracia, o jogo é assim. Em democracia digital, a linguagem é essa. Acostumem-se. Não vai mudar. E não é ruim. É debate público. É democracia na veia.

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