O caminho de Kamala Harris para ganhar

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Bem que eu avisei que a pose de estadista de Donald Trump pós-atentado não ia durar, né?. Menos de uma semana depois do tiro de raspão que levou e das promessas de unir o país para deter a violência, ao aceitar sua nomeação como candidato, Trump já retomou o discurso raivoso contra imigrantes e democratas.

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Numa fala longuíssima, a mais longa da história das convenções partidárias dos Estados Unidos, destilou sua perversidade ao dizer que todos os imigrantes são criminosos, estupradores, maníacos, comparáveis ao canibal Hannibal Lecter.
Pois o contraste com a discrição e sobriedade com que Joe Biden decidiu desistir da campanha à reeleição ficou gritante. E agora, ao que tudo indica, a vice Kamala Harris deve ser a escolhida do Partido Democrata para ser a candidata.

Além dos endossos de alguns cardeais do partido e de delegados o suficiente para garantir a indicação, uma chuva de doações caiu em sua direção, batendo recordes históricos e demonstrando que ela tem a capacidade de entusiasmar o eleitorado democrata de uma forma que Biden não conseguia.

E o que acontece agora?

Confirmada a indicação de Kamala Harris, a gente pode se preparar pro pior de Trump.

Não é que ela tenha uma performance tão vistosa nas pesquisas até aqui. Em uma ou outra, a vice-presidente até aparece um pouquinho melhor que Biden na comparação com Trump, mas a real ameaça que ela representa a Trump não está clara numericamente.

A questão é que a campanha republicana e toda a retórica de Trump foram moldadas para bater pesado em um homem branco, idoso, democrata. Ou seja, a única — e grande — diferença era ideológica. Trump também é um homem, branco, idoso e até já foi um democrata.
Agora, mais do que qualquer coisa, Trump sempre foi misógino. E veja que não se trata de falar que ele é conservador ou que não é um aliado da pauta feminista, na linguagem mais identitária. Não. Trump nunca alcançou os padrões mais básicos de respeito às mulheres. E se hoje há uma parcela do eleitorado feminino que o apoia tão passionalmente é apesar disso, em nome de outras pautas reacionárias que ele defende e que as atende.

Trump tem em seu histórico público episódios de machismo muito explícitos. Eles vão de falas absurdamente agressivas, como aquela vazada, em que ele dizia que, “quando você é uma estrela, (as mulheres) deixam você fazer o que quiser. Pode agarrá-las pela vagina”. Isso pra usar um termo mais educadinho.

Mas chegam a acusações de agressões de fato, como a de que ele teria estuprado a escritora Jean Carroll. Nesse caso, ele foi condenado a pagar US$ 83 milhões por ter difamado Carroll ao negar as acusações.

Fora que sua única condenação até aqui é por ter ocultado um pagamento à ex-atriz pornô, Stormy Daniels, para que ela não revelasse as relações que manteve com Trump enquanto sua mulher, Melania, estava recém-parida, puérpere.

Pois bem. Kamala Harris representa, enquanto mulher, tudo que homens como Trump mais abominam. Fez sua carreira de promotora e, depois, procuradora de forma independente e vitoriosa, tendo sido a primeira mulher negra e de ascendência sul-asiática a chegar ao cargo. Os mesmos atributos foram conquistados como vice-presidente e assim seriam como presidente: primeira mulher, negra e descendentes de uma indiana.

Ela é uma mulher negra e asiática que não tem filhos. É madrasta de dois enteados. É progressista nos costumes, pró-aborto, e só ganhou proeminência mesmo no cargo de VP quando assumiu esse discurso na defesa dos direitos reprodutivos das mulheres depois que a Suprema Corte suspendeu a decisão que dava acesso ao aborto legal no país, delegando aos estados a decisão.

Imagine o que Trump, um cara agressivo com as mulheres, cuja plataforma está toda amparada no nacionalismo cristão e na defesa da família de bem que a gente conhece bem — aquela com teto de vidro, sabe? — não vai fazer direta e indiretamente para desqualificar sua oponente. Especialmente agora em que ela aparece com frescor e revigorada depois de meses de pré-campanha com dois octogenários?

Cá entre nós, vai ser duro de assistir. Mas existe um caminho pra Kamala Harris ganhar essa eleição. Fica comigo que eu te conto.

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Olha só, Kamala Harris não é perfeita, não está com a eleição ganha, não teria vida fácil mesmo que Trump estivesse calminho, como fez querer crer nos dias seguintes ao atentado que sofreu.

Ela não é sequer unanimidade no Partido Democrata, que caminha pra indicá-la, mas não sem alguns dilemas.

Primeiramente, porque o processo de indicação de um candidato, nos Estados Unidos, obedece ao escrutínio das primárias. E esse foi um imenso erro dos democratas esse ano. Por negação ou mesmo por má-fé de não querer admitir que Joe Biden não tinha condições de concorrer, o partido se recusou a ouvir o que os eleitores já sabiam e disseram nas votações das primárias: uma parte expressiva dos que votaram rejeitaram Biden claramente, escrevendo outros nomes nas cédulas ou simplesmente se autodeclarando “descomprometidos”. A cúpula democrata foi teimosa e o manteve como candidato, até que isso se provou insustentável.

Agora, pela lógica de ouvir seu público e de dar aos eleitores a chance de escolher quem deveria enfrentar Trump, o ideal seria submeter o partido a novas primárias. Só que muitos parecem acreditar, e acho que com alguma razão, que não há tempo hábil pra isso. Os mais de 100 milhões de dólares que a campanha de Kamala recebeu em dois dias, e a maioria dessas doações vindas de pessoas que contribuíram pela primeira vez, também dão a entender que o público está confortável com essa indicação, mesmo pulando a etapa de novas primárias.

Aliás, foi nesse espírito que Barack e Michelle Obama ainda não declararam seu apoio à vice-presidente. Sabendo do enorme peso que seu endosso tem, o casal preferiu esperar pra ver como o partido escolheria seguir. O apoio deve vir em breve.
O que não quer dizer que Kamala seja unanimidade no partido. Vista como moderada, sua carreira como promotora pública e depois procuradora-geral da Califórnia teve três momentos cruciais que dividem a esquerda.

O primeiro, em linha com os progressistas, foi na sua atuação contra a mamata que se queria dar aos bancos e às instituições financeiras que causaram a quebradeira de 2008. O segundo, também favorável na visão da esquerda, foi seu compromisso de não apoiar a pena de morte no estado, mesmo quando fortemente pressionada a isso, no caso do assassinato de um policial.

Mas a esquerda não gostou de sua política de endurecer as penas para pais de filhos cuja ausência escolar fosse recorrente. Muitos achavam que isso punia desproporcionalmente os mais vulneráveis socialmente.

Mais recentemente, Kamala foi colocada como responsável por Biden pra lidar com outro tema altamente divisivo, que é a entrada de imigrantes pelas fronteiras americanas. Diante da pressão do discurso violento de Trump e do fato de que a imigração realmente vem aumentando demais, ela se viu na posição de ter de defender medidas mais duras, o que também contraria progressistas.

Mas Kamala sempre foi defensora de um estado de bem-estar social e de uma agenda progressista nos costumes, especialmente nos direitos femininos.

O fato de que ela não é mãe, somente madrasta, já está pipocando nas bolhas da direita como demérito. Algo altamente anti-família tradicional. Sua risada espontânea também já despontou como característica a ser demonizada, o que dificilmente aconteceria com um homem, convenhamos. Em um movimento esperto até aqui, sua campanha tem buscado surfar nos memes em vez de rejeitá-los. E, com isso, ela vem conquistando um espaço importante com jovens no TikTok, por exemplo.

Por um lado, o fato de ela ser uma mulher negra e, agora, com apelo com os jovens deve pesar positivamente. Por outro, é fato que, em 2016, Hillary Clinton para Trump no eleitorado masculino por 11 pontos. Onze. Pra se ter ideia da dose de sexismo nessa votação, apenas quatro anos depois Trump e Biden praticamente empataram nesse público.

O que pode “salvar” Kamala em seu discurso para os homens de viés mais machista que já não estejam integralmente convertidos ao trumpismo? Justamente sua verve de promotora, de dura com o crime.

É uma típica faca de dois gumes. Ao endurecer nesse tópico, ela pode desagradar parte de sua base, mas conquistar aqueles que rejeitem uma mulher. É de se supor que, a essa altura, os democratas e independentes que realmente não queiram Trump topem Kamala apesar disso.

Ainda assim, o analista Ezra Klein sugere em seu podcast um caminho para que ela faça esse jogo duplo, atraindo homens e independentes mais conservadores sem alienar a esquerda. Em vez de falar de criminalidade, Kamala deve fazer como fez em sua autobiografia, de 2009, e falar de segurança. O direito de se sentir seguro, ela dizia, deve ser considerado um direito humano fundamental. E a verdade mais básica é a de que Trump representa a insegurança: pras mulheres, pros negros, pra democracia americana. A chance de Kamala Harris pode estar aqui.

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