Léa Freire ao natural

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Mozart, Bach, Villa-Lobos, Debussy, Jobim, Gismonti são alguns dos compositores citados por outros músicos para se referir ao tamanho de Léa Freire na música brasileira ao longo do documetário A Música Natureza de Lea Freire, de Lucas Weglinski, que chega agora aos cinemas.

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Um filme particularmente importante se pensarmos que um leitor que não é conhecedor profundo da música instrumental brasileira pode tranquilamente ter passado a vida sem se atentar para a obra dessa compositora, grande pianista e talvez a maior flautista do país na sua geração. Evito aqui o termo popular justamente porque a música de Léa Freire não cabe exatamente nas caixinhas. No filme ela brinca sobre essa definição, argumentando que para a turma do erudito o que ela faz  popular, mas para MPB é erudito, para quem é do jazz, é choro, para dos chorões, é jazz. Justamente esse grau de liberdade ao compor e improvisar que confere à sua criação um lugar entre os maiores da música feita por estas praias.

E o maior acerto do documentário de Lucas Weglinski é justamente colocar como protagonista a música de Léa Freire. Claro, é uma biografia, estão lá as imagens de arquivo, inclusive filmes incríveis de sua infância na São Paulo dos anos 1960, as aparições na TV, as cabeças falantes. Mas, do começo ao fim, o filme é conduzido pela música. Toda a trajetória de Léa, que é fascinante como narrativa, é também contada em sons, em interpretações de suas composições ou de músicas ao vivo ou gravadas que dialogam com a época que está sendo apresentada pelo discurso.

Um outro acerto é a discussão de gênero, não exatamente o musical, que perspassa todo o filme. Léa tem um papel fundamental em abrir espaço na marra para instrumentistas e compositoras mulheres. E a vida toda teve de conquistar esse lugar em um ambiente profundamente masculino. Não à toa, nenhuma das comparações que citei no começo desse texto é com mulheres. Ainda assim, as vozes femininas são muitas no filme, e vão desde Alaíde Costa, que a conheceu jovem, até a mais jovem Joana Queiroz, do Quartabê, passando pela cantora Tatiana Parra, de uma geração abaixo, ou pela pianista Silvia Gomes, sua contemporânea, que, inclusive não só dá um dos depoimentos mais emocionantes do filme como a faz interpretação mais rica de uma composição de Léa.

Uma vida extraordinária

Se a música abre uma segunda camada de percepção no filme, a vida de Léa é digna da tela grande. Filha da classe média alta de São Paulo, ela é desses talentos precoces. Nasce meio que junto com a bossa nova, começa a tocar criança e, adolescente passa a frequentar o CLAM (Centro Livre de Aprendizagem Musical), a escola montada pelos integrantes do Zimbo Trio, que ficava ao lado de sua casa. De aluna, passa a professora rapidamente. Já vinha de uma vivência no piano e por lá estuda violão e se apaixona pela flauta. Aos 16 anos, já rodava a rua Augusta e o centro da cidade para tocar na noite, acompanhada de seu companheiro de CLAM Filó Machado. Ia das boates ao samba, Filó com o violão, ela com a flauta. Nessa época é expulsa de casa e acolhida por outra gigante da canção, Alaíde Costa, que a recebe por dois anos e meio em seu apartamento na rua Augusta.

Depois dessa fase em que ela praticamente não dormia, dando aulas e tocando à noite, junta dinheiro para ir estudar em Berkeley, nos Estados Unidos. Mas não fica na faculdade. Desiste das aulas e vai fazer sua formação no Village Vanguard, ouvindo os mestres do jazz. Um ano e meio depois, volta para o Brasil e para a música. Mas no meio dos anos 1980, ao ter filhos, decide parar de tocar, e passa 11 anos distante da música, se dedicando a uma carreira na área financeira. Mas essa vida a estava deixando doente e, por recomendação médica, ela volta para a música. De uma forma impressionante, unindo o seu talento financeiro ao musical, abre um selo de música instrumental, o Maritaca Discos, onde não só lança seus trabalhos como grava alguns dos melhores discos de música instrumental brasileira a partir de 1997.

À frente da Maritaca, podendo lançar regularmente seus trabalhos, Léa chega a um grau de maturidade como compositora e improvisadora que é único. E o filme é sobre isso. E também sobre como ela vai expandindo sua paleta, chegando à composição sinfônica, compondo peças para mestres da flauta como o americano Keith Underwood, atuando com os jovens do Projeto Guri, tecendo essa teia musical e de afetos que fez com que, na pré-estreia do filme, na última terça em São Paulo, a platéia aplaudisse as músicas no meio do filme. Coisa inédita para mim, que aplaudi junto e com gosto.

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