Ainda bem que Trump sobreviveu

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Ainda bem que Donald Trump não morreu. Foi por muito pouco. Sim, tem um monte de piada na internet, e piada é livre. Mas, olha, a ideia que move a maioria dos movimentos extremistas de direita é que existe um deep state, um Estado profundo, uma estrutura, um grupo de pessoas que realmente manda em um país, que se sobrepõe ao povo, e que opera para que o desejo do povo não seja jamais alcançado.

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A extrema direita americana tem duas versões para explicar como isso funciona. Uma, a versão mais mirabolante, é o QAnon, um grupo pedófilo, satanista, que se encontra no subsolo de uma pizzaria e reúne estrelas de Hollywood e políticos do Partido Democrata. Tem uma versão bastante mais sofisticada, promovida por gente muito inteligente como o homem que Trump escolheu hoje para seu vice. J D Vance. Ele propõe que existe a “catedral”, uma metáfora para um grupo de elite que está presente no comando da imprensa, das universidades e dos partidos políticos. São pessoas que estudaram nas mesmas faculdades, frequentam as mesmas festas e pensam do mesmo jeito. E são tantas, espalhadas por tantos cargos chaves, que cuidam simultaneamente de como se governa e como se fala do governo que, no fim, controlam tudo.

Os assinantes premium do Meio já conheciam Vance faz dois anos, quando escrevi a fundo sobre essa nova direita radical americana. Sem o delírio satanista, por isso mesmo mais perigosa. Vance é o Steve Bannon sem estridência. Não é muito diferente daquela ideia que o velho Olavo de Carvalho chamava de marxismo cultural. É só que lá, nos Estados Unidos, eles não acham que é marxista. Mas o conceito é mais ou menos o mesmo.

Donald Trump nunca abraçou o QAnon explicitamente, nem sai por aí fazendo debates acadêmicos sobre a Catedral, mas ele fala de um jeito que a turma de um lado e a turma do outro entende que ele está informado de tudo e está junto. E fala do Estado profundo, muito poderoso, muito soturno, que resisite à transformação que o povo deseja o tempo todo. O que aconteceria se Donald Trump tivesse sido assassinado pelo que parece ter sido uma falha grotesca do Serviço Secreto? Os caras permitiram a livre ação de um garoto de vinte anos com uma AR15, num telhado, a cento e cinquenta metros do ex-presidente. Na mira. Foi por muito pouco.

Tem uma parte do eleitorado de Donald Trump que pega em armas como a AR-15 que quase o matou. São muitas AR15, um rifle semiautomático poderosíssimo que é legal em inúmeros estados americanos. Parte deste grupo está organizado em milícias. Gosta de usar roupas militares, camufladas. E lê literalmente a Segunda Emenda da Constituição americana. “Como uma milícia bem regulamentada é necessária à segurança de um Estado livre, o direito do povo de ter e portar armas não deve ser infringido.” O texto foi escrito em 1790, numa época em que os americanos não tinham exército regular então, para se defender, era preciso convocar todos os homens e pedir para que cada um levasse seu mosquete. Ou seu rifle de pederneira. Talvez uma pistola. Tudo arma daquelas de botar bala no cano, botar pólvora, dar uma entuchada, dá o tiro, aí começa tudo de novo. Mas as pessoas ainda têm a cultura de que formar milícia, ter arma em casa para garantir um Estado livre é direito do povo. Só que não é mais de pederneira, agora é AR15. Só. Está na Constituição, e está mesmo. E Donald Trump insufla essa turma mais radical.

Aí Trump cai morto, assassinado por conta de uma falha evidente do Serviço Secreto. Ninguém vai ler como um desastre, como incompetência, como uma fatalidade. Como um acontecimento. Uma turma que já se insurgiu a ponto de invadir o Capitólio para evitar a indicação do outro pra presidência, que está convencida de que houve uma fraude eleitoral maciça para evitar a reeleição de Trump, obra do Estado Profundo. Vai achar o quê? Que o Estado Profundo matou Trump. A elite que controla tudo. Isso num país em que, de acordo com uma pesquisa de maio do Marist College Poll, 47% dos americanos já acham que estão próximos de uma nova guerra civil.

Se Trump fosse assassinado, ia haver uma explosão de violência num país com gente demais fortemente armada, já organizada em milícias, e convicta de que o Estado nacional, de que o governo, cerceia suas liberdades.

Bem, Trump não morreu. E quem terminou enlouquecendo em teorias conspiratórias não foi a direita. Foi a esquerda. Os sociólogos americanos já deram apelido para o fenômeno da turma que acha que o atentado foi armação: é BlueAnon. Mistura de azul, cor do Partido Democrata, com QAnon.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

O cientista político alemão Yascha Mounk escreveu três livros nos últimos seis anos. No primeiro, explicou como um movimento populista, extremista, ataca o Estado democrático e convence uma parte da sociedade que é em seu nome. No segundo, mostrou como democracias entraram em crise justamente no momento em que começaram a ampliar os direitos para além dos grupos demográficos dominantes, começaram a abraçar a diversidade. Isso gerou muito atrito. No mais recente, Mounk lança seu olhar para a esquerda, para o identitarismo, e mostra como, um objetivo nobre, o de ampliar direitos, abandonou um princípio essencial da democracia. O do universalismo. Em vez de argumentar que os direitos, os acessos, precisam ser iguais para todos, virou uma coisa de segregação. Cada grupo no seu lugar, organizado para disputar com os outros. Em três livros, um desenho da crise da democracia em que vivemos. Eu entrevistei o Mounk, perguntei inclusive como ele acha que ficarão os Estados Unidos com Trump de volta. Você pode assistir à entrevista em vídeo ou ler o texto. Basta ser assinante do Meio. Vá. É o preço dum chope.

Isso posto, gente, quarta-feira vou sair de férias. Viajar com mulher, filhos, enteado. É só uma semana. A primeira semana desde que o Meio começou. Na quarta da semana que vem estou aqui de volta. É rapidinho.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Foi tudo ensaiado. Imagina se não. Estava tudo pronto para sair a foto dele, punho em riste, cercado de seguranças, com a bandeira americana ao fundo. Se não é organizado, impossível acontecer essa imagem. No domingo publiquei um vídeo curto no meu Instagram sobre o atentado, já são mais de 600 comentários. Bem mais de metade me chamando de tolinho. “Acredita em tudo.” “Claro que é armação.” Tem os que vão além, né? Eu só me faço de tolo. Minha função é distrair. Imprensa, né? Sou parte do esquema.

Donald Trump e Joe Biden não sobem num palco que não esteja salpicado de bandeiras americanas quando estão em campanha. Sempre. Estão por toda parte. Numa campanha presidencial americana acompanham um candidato, por baixo, vinte fotógrafos. A maioria destes são gente com vinte anos ou mais de experiência fotografando políticos, fotografando eventos de primeira grandeza. É gente que sabe enquadrar no reflexo. Bota a câmera na frente e já vê a imagem composta, tela divida em terços, sombras e luzes, distribuição dos pesos. Um bom fotógrafo tem toda a história da Arte na cabeça. Composição clássica, renascentista, barroca. E as câmeras digitais profissionais tiram até 60 fotos por segundo. Tem mais: esses caras fazem o trabalho deles mesmo sob pressão, mesmo sob tiros. Fotografia de guerra se faz como? É assim. Sebastião Salgado estourou quando fotografou o atentado contra Ronald Reagan enfrentando os tiros. Você reage primeiro, pensa depois. Então, sim, com uns vinte fotógrafos experientes, num palco cheio de bandeiras americanas, tirando dezenas de fotos por segundo, de um momento histórico assim vão sair milhares de fotografias. E umas cinco serão imagens icônicas.

Algumas pessoas se admiram com a postura de Donald Trump, que ao ser levantado, por um ou dois segundos se ergue entre os seguranças, cerra o punho no ar e diz pra multidão: Fight! Lutem. Se não fosse encenação, como poderia? Trump é um político profissional que chegou à presidência dos Estados Unidos e passou quatro anos na Casa Branca. É um sujeito que passou sessenta anos da vida trabalhando para aparecer na TV ou nos jornais ou nas revistas. Ele é puro instinto adquirido sobre como aparecer. Saber aparecer, reagir no momento ciente de que há câmeras registrando, é o trabalho dele. E o cara é bom nisso. Ele não seria quem é se não fosse particularmente bom nisso. Se ele parece grande, bem, Trump tem quase um metro e noventa de altura e pesa 130 quilos. O cara não parece, ele é grande, ele ocupa espaço inclusive entre seguranças profissionais.

E, olha, ainda assim, vale dar um pulo no site do New York Times, ou então ir nas redes sociais do Times, para assistir ao vídeo em que o fotógrafo Doug Mills conta das fotos que tirou. Duas já são icônicas. Em uma, a bala aparece no ar. Foto tirada a uma velocidade de um oito mil avos de segundo. A outra é uma das fotos dele de punho erguido, desafiante. Mas no vídeo o Mills mostra toda a sequência de fotos. Tem lá, sim, o Trump desafiante, o rosto com dois rajados de sangue que escorreram da orelha. Mas alguns quadros depois há outro Trump. Pálido. Com cara de assustado. Porque é isso, né? Quando se está registrando 60 fotos por segundo, todas as camadas de emoção pelas quais um ser humano passa quando ele sequer processou ainda tudo o que aconteceu, todos esses momentos são registrados. Cada um conta uma história única.

Teorias conspiratórias nascem da busca por conforto. A vida é caótica, algumas pessoas precisam se ater a alguma explicação que dê sentido. Foi organizado, não foi fruto do aleatório. Pois é. O garoto que tentou matar Donald Trump parece um incel, era filiado ao Partido Republicano, o típico militante da extrema direita. Qual o sentido disso? Qual o porquê? A gente não sabe. Talvez, no fim deste processo, não exista uma razão. Ou talvez o quase assassino tenha sido alguém, como tantos desses garotos que pegam armas assim nos Estados Unidos, que quisesse fazer algo para se tornar famoso. Um desespero para escapar ao anonimato. Uma loucura.

Isso não muda o fato de que Donald Trump e políticos como ele incitam um ambiente de violência política. Isso não é algo que se controle. Quanto mais se carrega o ambiente político de uma retórica violenta, maiores as chances de transbordar em violência real. Essa violência não tem direção, ela não atinge só um lado. Brigas são comuns de estourar nos comícios de Trump. E ele incentiva. A invasão do Capitólio foi um ato de brutalidade. As pessoas entraram gritando enforque Mike Pence. O vice-presidente. E se a massa o tivesse encontrado? Ele estava escondido. Em 2017, quando um grupo de deputados republicanos e democratas estavam jogando beisebol numa quadra aberta, uma pessoa abriu tiro. Feriu seriamente o republicano Steve Scalise. Um plano de sequestro da governadora democrata Gretchen Whitmer, do Michigan, foi desmontado no último minuto pelo FBI em 2020. Houve o planejamento de assassinar o juiz conservador Brett Kavanaugh, da Suprema Corte. A casa da presidente da Câmara, Nancy Pelosi, foi invadida no mesmo ano. Em 2022. Seu marido, Paul Pelosi, com a mesma idade de Trump, foi barbaremente espancado. Trump fez piada.

A busca por conforto que leva a esquerda a acreditar que foi tudo armação não é só uma busca por dar ordem ao caos. É uma tentativa também de negar o que vê. Trump emana força, Joe Biden emana fragilidade. É o que a imagem diz. Em meio à violência, quem tem força atrai. As pessoas querem algum recurso para não ver isso. Mas é assim que regimes democráticos derretem.

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